Gilda e sua loja de lembranças

(o segundo de uma pequena temporada de histórias)

Juliana Matavelli
firstparagraphproject
2 min readMar 6, 2018

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Naquele dia, fazia frio. Entrei em sua loja para me esquentar com o calor de uma conversa. Gilda Grasso Cobra me recebeu sem nem me conhecer. Abriu seu coração sem perguntar o porquê. Sorri. Assim, descobri que ela era italiana, e no auge de seus 91 anos, mora e faz tudo por conta. Há quase 50 anos em São Paulo, Gilda casou-se e fez a vida lá: teve seu primeiro e único filho, construiu sua casa — a qual ocupa um dos primeiros terrenos vendidos da Vila Madalena — e foi até homenageada pela Câmara Municipal da cidade. Dia após dia, Gilda foi escrevendo sua história. Hoje, divide parte dela entre as paredes de sua loja de lembranças.

Gilda, seu olhar doce e a homenagem feita pelo Bloco do Boi. Foto: Ju Matavelli

Viúva desde os 45, Gilda aprendeu a se tornar independente ao administrar os tantos desafios da rotina, e conforme me contava sobre eles, um filme se passava em seu coração. Entre mãos, contava as pessoas que já tinha visto ir embora: pai, mãe, irmão, marido e até neto. Se emociona. Às vezes, a vida aperta. Eu, um tanto sem graça, ouvia tudo aquilo e imaginava o quão incrível era sua memória; apesar de tanta história, dona Gilda não gaguejou. Tim-tim por tim-tim contou detalhes, cenas e pormenores de todo seu enredo. Confesso que a narração me trouxe admiração: enquanto eu, em meio a multidão da cidade me sentia muitas vezes isolada, ao perguntar se ela se sentia sozinha, dona Gilda respondeu que não. Aqui ficou a grande lição de uma conversa que começou tímida, mas logo se tornou uma sala de aula.

Do rio límpido e saudável que passava na porta de sua casa, agora fica aquele carregado de saudade e boas memórias. Dona Gilda em sua inocência gargalha e, empolgada com tanta prosa, diz que a vida vale a pena. De repente, ela se levanta e vai até sua outra casa buscar uma homenagem que recebeu de um grupo de Carnaval chamado Bloco do Boi. Volta feliz, mostrando-me o feito e relembrando a situação. No auge da recordação, tive vontade de falar um bocado de coisas bonitas a ela, tantas quantas aquelas que já havia plantado em mim. Mas sorri e, inspirada, agradeci por aquele momento. Às vezes, a vida também solta.

01.07.2017

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