Como a ficção científica me ajudou no design de novas interações e serviços.

Luana Moura
FJORD Fala
Published in
9 min readJun 30, 2017

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Johnny Mnemonic — 1995

Em anos de trabalho com design e interação eu vivi experiências incríveis, dignas de um roteiro de cinema, que adoraria poder compartilhar. No entanto, algumas foram tão intensas que fica difícil exprimir em único texto, então decidi criar esta série de artigos, onde vou falar sobre como aprendi com o Sci-fi em diversos aspectos do design: previsão de novas tendências, metodologias de ideação, expectativas dos usuários e impacto de novos contextos.

Este artigo não é apenas sobre Sci-fi, mas também sobre como utilizar-se de contextos culturais para extrair informações preciosas sobre cultura e comportamento.

Once upon a time…

Quando eu era criança, filmes, desenhos animados e livros me fizeram querer ser uma cientista louca, que criava invenções para ajudar os amigos e familiares em tarefas simples e complexas. Queria seguir uma carreira científica como Física ou Astrônoma.

Então eu virei uma Astronaut…. pera… Designer?

Pois é, acabei me tornando designer de serviços e interação, e está tudo bem! Porque ainda me vejo a mesma cientista louca que queria ser quando criança. E vou explicar por quê…

Todo design começa com a ficção

Pelo menos até um serviço ou produto ser prototipado (criado de fato, na realidade) .

Para explicar este assunto vamos primeiro trazer algumas definições:

Apesar de ser um assunto polêmico que não vai ser tratado neste artigo, a definição de ficção na wikipedia é:

“o termo usado para designar uma narrativa imaginária, irreal, ou para redefinir obras (de arte) criadas a partir da imaginação.” Já a definição de Ficção científica é: “um gênero da ficção especulativa, que normalmente lida com conceitos ficcionais e imaginativos, relacionados ao futuro, ciência e tecnologia, e seus impactos e/ou consequências em uma determinada sociedade ou em seus indivíduos”.

Já quando falamos sobre design podemos entrar em uma infinidade de definições nos aspectos do design para comunicação, o design thinking, o design de serviços, etc… mas uma das definições que eu mais acho precisa é

“o planejamento da criação de um produto ou serviço com a intenção de melhorar a experiência humana respeitando um problema específico.”

Pinturas de Chesley Knight Bonestell, Jr.

Tendo as definições feitas, é simples perceber que elas se correlacionam através da experiência de indivíduos. Muitas metodologias como desenhos conceituais, jornadas futuras, a previsão de tendências, mapeamentos do futuro e o “Design especulativo” são utilizadas hoje por diversos designers, imaginando possíveis ou prováveis futuros, comportamentos, serviços e produtos. Neste contexto, a ficção pode ser uma ferramenta forte para coleta de insights e informações sobre o principal alvo: o ser humano.

O sci-fi explora toda a amplitude do conhecimento humano.

“A história da ficção científica é também a história da mudança de atitudes da humanidade em relação ao espaço e ao tempo. É a história do crescimento do nosso entendimento e da nossa posição no universo.”

Críticos Robert Scholes e Erik S. Rabkin

Design & sci-fi são como colegas de classe

Interfaces gestuais / Star Wars

Os dois são visionários e exibidos, seguem caminhos distintos mas paralelos. Enquanto o design foca sua atenção na aula de user experience, funcionalidade e viabilização, o sci-fi foca na aula de criatividade e abstração. Por isso, ainda que seja rico coletar insights deste gênero, é preciso se lembrar que são narrativas que nem sempre se preocupam com detalhes que o design se preocupa. É possível aprender sobre usabilidade ou identificar novas tendências por exemplo, mas para conseguir identificá-las é preciso entender seu contexto, o porquê da forma de como ela foi representada e muitas vezes até mesmo inventar novos cenários para torná-las plausíveis.

Entendendo as influências e correlações

O Design é sempre sobre pessoas, e nada como a ficção, para nos ensinar sobre elas. Podemos analisar obras como livros, séries animadas de cartoons até animações 3D, filmes e pinturas, olhando sempre para o retrato que elas nos trazem sobre a sociedade, seu momento e seu comportamento para tirar insights e inspirações.

1 ) O sci-fi é inspirado pelo paradigma atual

Metropolis — 1927

Nos anos 20 e 30 o mundo passou a se transformar em uma era elétrica. Botões, alavancas e maçanetas saíram das indústrias e entraram no dia a dia das pessoas. Como resultado, isso passou a ser encontrado no sci-fi também.
Outra grande influência foi a guerra. Muitas obras retratavam distopias e mostravam salas de comando que representavam war rooms.

Buck Rogers — 1939

Em filmes como Metropolis (1927) e séries como Buck Rogers (1929), a comunicação era reinventada mas tinha ainda influências do contexto atual como a televisão muda, o telefone e o cinema.

2) Também é inspirado por experiências individuais

Em 1986, Michael J. Ackerman estudava cadáveres de sentenciados a morte nos EUA para 0 projeto Visible Human Project. O projeto consistia em congelar os corpos analisando-os em “fatias” que foram categorizadas em um software para consulta de médicos.

X-men — 2010

As imagens e o software deste projeto foram utilizadas no filme X-men (2010), a imagem foi utilizada para representar um escaneamento de visitantes que chegavam em uma prisão.

O mesmo caso de inspiração individual aconteceu com a obra de Damien Hirst, famoso por fazer exibições de animais morto “em fatias” preservados que serviu como inspiração do produtor do filme “A cela”.

Além de ser inspirado por indivíduos, o sci-fi também pode inspirá-los em projetos pessoais.

Uma das mais famosas inspirações são as invenções de Julio Verne, entre suas páginas, se escondem dados científicos, descrições e, acima de tudo, um grande amor pelas inovações tecnológicas e pelo progresso da humanidade.

Verne surpreendeu o mundo com histórias de aparelhos e veículos como o submarino, módulos lunares, painéis solares, telejornais, video-conferência e a pistola laser que anos mais tarde, acabaram tomando forma fora da ficção, do mesmo modo em que anos mais tarde faria Isaac Asimov.

Podemos ver um exemplo mais prático quando conhecemos a história de Douglas Cardwell um dos inspirados por sci-fi. Ele trabalhava no desenho de mesas de areia, utilizados para estratégia de Generais em locais de conflito. Tudo mudou na sua carreira quando foi assistir X-men com seu filho em 2000.

Ao assistir uma a cena onde uma estratégia era discutida analisando uma plataforma que se moldava psiquicamente mostrando a topografia de Nova Iorque, Douglas decidiu encontrar soluções similares para seu projeto, conseguindo quatro anos depois criar uma mesa mecânica que se ajustava de acordo com projeções e mapas em banco de dados economizando milhões no custo da criação destas mesas que antes era de areia.

3 ) O sci-fi cria novas expectativas

Qualquer um que tenha visto um episódio da série de TV original “Star Trek” reconhecerá a semelhança entre um telefone celular e o comunicador do programa, o dispositivo que a tripulação da Frota Estelar usa para conversar em grandes distâncias sem fios. A primeira versão do telefone tinha seu flip de baixo pra cima, e antes de ser finalizado foi ajustado para parecer exatamente com os comunicadores da série.

Motorola StarTAC

Por que o telefone Motorola StarTAC parece um comunicador 'Star Trek'?

Porque os engenheiros que construíram queriam seus próprios comunicadores, e esta era a chance de conseguir um!".

A ficção cria expectativas de como serão os serviços e produtos e se você quiser criar algo que esteja dentro destas expectativas, é melhor começar a assistir muito sci-fi!

4 ) Gera discussões e possibilita novos contextos sociais

Os filmes de ficção científica podem nos permitir estudar questões sociais, humanas ou psicológicas familiares que quando examinadas em contextos desconhecidos, dão clareza a vários aspectos. Este é um tema que é muito falado e tem diversos exemplos em muitas obras, mas para exemplificar selecionei três:

Diversidade na força de trabalho

Star treck original series — 1968

Se você assistir a série original de Star trek agora, provavelmente não pensaria duas vezes sobre a diversidade cultural da equipe. No entanto, a diversidade era inédita na época e incluiu a Tenente Uhuru (uma negra), tenente Sulu (um asiático) e Ensign Chekov (um russo). Nesta época, o Movimento dos Direitos Civis estava em pleno andamento, os Estados Unidos também estavam no meio da Guerra do Vietnã e da Guerra Fria.

Interações amorosas com Inteligências Artificiais

Her — 2013

O assunto "Máquinas são capazes de amar?" vem sendo abordado por diversas obras de ficção. Mas quando analisado no filme Her, percebe-se que esta pergunta evolui para uma maior ainda: se as máquinas podem ser um dia mais capazes de amar mais do que os seres humanos que as criaram.

Legal essa teoria toda, mas e na prática?

Existem algumas formas práticas onde o sci-fi pode ser uma ferramenta de pesquisa, geração de insights, e desenho estratégico:

Entendimento de expectativas (e geração de tendências)

A tecnologia e o comportamento retratados em best-sellers e blockbusters tendem a configurar grandes expectativas na audiência de como serão novos produtos, serviços e paradigmas. Entender isso e decidir o quanto destas expectativas devemos atender é crucial.

Lições de interface

O sci-fi explora demasiadamente interações do homem com a tecnologia e novos serviços. É possível ter insights muito valiosos com interfaces visuais, gestuais e de voz até mesmo suas características visuais, de forma ou de comportamento.

Design especulativo

Através de técnicas de narrativa e métodos para criar histórias de ficção conseguimos construir futuros e nestes futuros novas ferramentas, contextos e necessidades. Livres de amarras, conseguimos pensar no impensável e aí então nos questionar e trazer nossas conclusões para a realidade.

Responsabilidade criativa

Com tantas utopias e distopias apresentadas por inúmeros autores fica evidente que quando criamos histórias precisamos entender a responsabilidade que elas carregam e nos lembrar que como designers também temos a mesma responsabilidade. Prever o impacto, influência e mudanças no contexto social são deveres que não podem ser ignorados.

Nós designers solucionamos problemas, mas e se nós o colocássemos mais em pauta? Vamos utilizar a ficção para nos inspirar em ideias, histórias e métodos mas também vamos utilizá-la para saber pra onde estamos indo. Vamos fazer o nosso melhor pra criar coisas responsáveis, desenhando para a terra ou para o espaço.

Nos próximos artigos da série cada um destes assuntos serão abordados com mais detalhes. O que você gostaria de saber? Tem alguma sugestão? Escreva pra gente!

Referências e leitura adicional:

Livros

Artigos

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