BONECOS DE PALITINHO E TINTA
o analógico que te tira da zona de conforto
Trabalhar na produção dos cursos da Flamingo tem nos dado a oportunidade de criar algumas provocações que tiram as pessoas da zona de conforto. Quando a ideia de organizar cursos na área criativa surgiu aqui no estúdio, queríamos apenas conectar os “fazedores” com aqueles que tem curiosidade em “fazer”. Dividir o espaço criativo com quem ativa a produção artística e é pilhado em passar conhecimento adiante. Parecia algo bem simples e objetivo, mas nos levou além das conexões que imaginamos que iam acontecer.
Nossos cursos mais procurados, o WHATAFUCK Aquarela (criação do Bruno Padilha) e o WTF Caligrafia (criação da Shai Duarte) foram idealizados para serem super práticos. A teoria aparece apenas como um suporte técnico, está ali para ser um facilitador dos resultados dos alunos. Apesar de a maioria deles chegar nas primeiras aulas com brilho nos olhos a gente sempre sente pairar aquele sentimento de “será que eu consigo?”.
Helen Birch no livro “DESENHAR - Truques, técnicas e recursos para a inspiração visual”, comenta que para muitas pessoas, desenhar (pintar) é algo para o qual é necessário ter um talento inato, como se fosse algo sobrenatural. Porém, essas pessoas esquecem que desenhar é algo que fazemos desde crianças. Apenas passamos a acreditar que não somos capazes de fazê-lo quando nos tornamos conscientes de que os outros podem julgar nossos desenhos. Segundo a autora, o resultado disso é que começamos, nós mesmos, a julgar prematuramente o que produzimos ou até paramos de desenhar, quando na verdade o importante é estar realmente interessado em fazê-lo.
Não é à toa que toda vez que alguém nos pergunta sobre as habilidades necessárias pra se inscrever nas aulas de aquarela, por exemplo, a nossa resposta mais convincente é: esse é um curso pra todo mundo, até pra quem não sabe desenhar boneco de palitinho.
Pronto, primeiro sacode que a pessoinha leva e começa aos poucos a acreditar que “vai dar, vai rolar”.
O problema é que, quando a gente usa essa “teoria” dos bonecos de palitinho o que acontece com a maioria dos alunos é colocar a própria expectativa no nível mais baixo usando a lógica de que o curso “parece ser difícil, mas deve ter sido pensado pra quem não tem habilidade nenhuma, então eu acho que dou conta”. Daí na primeira aula o professor mostra um sketchbook com alguns esboços que ele fez meio de brincadeira, “só pra treinar” e os alunos voltam a se apavorar.
Quer ter uma noção do pavor? Volta no início dessa publicação e dá uma olhadinha na imagem que ilustra o texto... Pois é, esse é o nível do “só pra treinar” do Bruno Padilha.
Tu acaba de ter uma noção do segundo sacode que a turma leva. Era para ser curso de aquarela, mas vira quase um passeio de montanha russa dentro da cabeça dessa galera. Esse tiquinho de experiência inicial já mexe bastante com algumas das certezas que as pessoas tem ao encarar o novo e é justo ai que começam a acontecer as experiências mais interessantes. Com pincel, papel e tinta as possibilidades à primeira vista parecem infinitas, mas surgem os primeiros exercícios e mais um sacode.
A aquarela te exige olhar para o mundo em uma lógica completamente diferente da que tu estás acostumado:
do todo para o detalhe, do claro para o escuro. Uma folha de árvore que antes seria apenas verde se torna também amarela, ocre, marrom e com alguns detalhes em vinho. A ideia de que a luz interfere nas cores e que ao pintar o esboço de um rosto o nariz pode ter o reflexo azul que vem da gola da camisa que a pessoa veste, provoca uma inversão na maneira automática como a gente costuma enxergar as coisas.
Mais um sacode: é impossível sair para o mundo depois de uma aula dessas e não passar a ver tudo pela perspectiva “da aquarela”.
A noção dos detalhes muda completamente e tu te pega observando coisas que antes passavam batidas. Como, por exemplo, a luz do banheiro da minha cafeteria preferia, que deixa meu batom vermelho com um tom neon que me faz olhar duas vezes para o espelho achando que esqueci a cor que escolhi antes de sair de casa.
Esse tipo de experiência que as atividades artísticas nos permitem, provocam a desautomatização das nossas percepções de mundo. Somos condicionados a olhar e analisar de maneira automática as coisas que nos cercam. Não que isso seja negativo, é apenas a maneira como nosso cérebro funciona. Mas alguns mecanismos nos deixam cada vez mais presos nessas percepções. A bolha digital em que vivemos, e não conseguimos evitar totalmente, é um dos fatores que ajudam a manter o nosso olhar para o mundo no “automático”. Apesar do conhecimento disponível no mundo digital ser gigantesco, as redes sociais, que são as principais ferramentas de conexão entre pessoas e pessoas, pessoas e organizações, te entregam apenas aquele conteúdo que elas entendem que tu quer ver. Tudo relacionado com aquelas métricas e algoritmos que já lemos e ouvimos tanto a respeito por ai.
O problema da bolha digital, em relação às percepções que ela permite, é que além de não quebrarem a barreira do “automático” nos limitam a “provar” o que chega até nós através de apenas dois sentidos: “audição” e “visão”.
Tu pode fazer um teste agora mesmo: para um minutinho pra pensar em todos os equipamentos digitais e redes que tu acessou hoje e tenta lembrar quais deles te provocou algum dos teus outros três sentidos. A não ser que a teoria da “Internet das Coisas” esteja super aplicada no teu cotidiano, arrisco a dizer que tu vai chegar a uma conclusão bem parecida com a nossa.
Faço mais uma provocação: quais são as atividades “analógicas” do teu dia que te forçam a quebrar essa barreira do automático?
A escritora Cintia Moscovich, patrona da Feira do Livro de Porto Alegre deste ano, propõe um exercício em suas oficinas literárias que vai além daqueles das aulas de aquarela. Ela convida a usar não só a visão e a audição, mas também o tato, o olfato e o paladar para observar aquilo sobre o qual se vai escrever: é para tocar, cheirar e se possível (cuidado aqui, hahaha) lamber mesmo. Pode parecer até um tanto infantil. Quando vi pela primeira vez esse exercício acontecendo, me remeteu direto a lembrança de uma criança experimentando as coisas pela primeira vez. Em algum momento da vida a gente aceitou a ideia de explorar o mundo de uma maneira limitada, ou por conta de regras sociais ou por barreiras e defesas auto impostas. O maluco dessa história toda é que não percebemos que estamos no “piloto automático” até que aparece uma oficina de contos ou um curso de aquarela que nos convida a tentar algo diferente.
“A forma como está organizada a nossa educação padrão básica nos leva a ensinar e a aprender, preferencialmente, as coisas concretas. Aquelas que podem ser acessadas e testadas. “
Essa é uma definição trazida por Cindy Meyers Foley, Diretora de Aprendizado e Experiência do Columbus Museum of Art de Ohio (EUA), no TED “Teaching art or teaching to think like an artist?”. No vídeo ela cita uma pesquisa realizada dentro do Project Zero da Harvard Graduate School of Education (um projeto que existe desde 1967 e visa estudar e melhorar a educação artística). Uma das principais coisas que se descobriu é que o ensino de qualidade de arte não deveria estar pautado apenas em ensinar a analisar arte. Mas sim, em desenvolver a capacidade de pensar de forma criativa e de fazer conexões dentro deste aprendizado. Basicamente: ensinar a pensar como um artista, de maneira… desautomatizada. É como ensinar a olhar para uma caixa de LEGO não como um monte de blocos coloridos que permitem construir inúmeras coisas, mas sim olhar para o potencial de ideias dentro da caixa.
O escritor Austin Kleon no livro “Roube como um Artista”, defende a ideia de que o computador é ótimo para editar suas criações, deixá-las prontas para lançá-las para o mundo, mas estimula o perfeccionismo por permitir muitas oportunidades de apertar a decla “delete”. Segundo ele, é como começar a editar ideias antes de tê-las. Austin desenvolveu um método próprio e muito simples para ficar longe do computador durante suas elaborações. No seu escritório ele mantém duas mesas. Uma analógica e outra digital. Na primeira estão cadernos, papéis, anotações, canetas, post its. Na segunda está seu computador, scanner e um tablete de desenho. Nenhum elemento da mesa digital pode se misturar com o da analógica. Assim ele faz toda a criação e elaboração do seu material no ambiente analógico e só passa para a mesa digital quando for a hora de executá-lo e publicá-lo.
O LEGO, a aula de aquarela, o exercício da oficina literária e as mesas de Austin Kleon são apenas algumas das inúmeras ferramentas que nos ajudam a fazer as ideias se manifestarem fora do nosso padrão cotidiano [o potencial dentro da caixa]e principalmente fora do nosso padrão digital. Porque é no analógico, no tangível e real onde a criatividade acontece.
O digital nos faz chegar mais longe e mais rápido, mas o analógico aproxima, convida pra uma xícara de chá e deixa aquela vontade de “quero voltar”.
Como a FLAMINGOwtf tem a criatividade na sua essência, estamos sempre correndo atrás de qualquer mecanismo que nos permita expandir as nossas possibilidades de criação. A gente acredita muito que cada espaço, digital ou analógico, tem seu propósito e sua hora certa de ser utilizado. Nós estamos constantemente nas redes, seja mostrando nosso trabalho, conversando e convidando nosso público para experiências em nossos cursos e projetos ou apenas mostrando o que rola no nosso dia a dia. Mas também gostamos do contato mais próximo, do olho no olho, de sentar pra tomar um café com o cliente e mostrar a proposta de trabalho num material todo feito à mão, com marca texto e post it, que vai fazer a pessoa se sentir mais envolvida, ter a percepção de que as ideias para o seu projeto são mais tangíveis.
Isso tudo não acontece por acaso, a FLAMINGOwtf surgiu da vivência de pessoas que acreditam que a alma de um bom trabalho de comunicação é conectar pessoas através da criatividade. Se ela vai acontecer no digital ou no analógico, vai depender da necessidade e do objetivo do que será realizado. Poder sacudir um pouquinho a zona de conforto das pessoas com o nosso trabalho, através dos cursos ou dos projetos criativos, só nos faz crer, cada vez mais, que é no convite para pensarmos juntos que se encontra a chave para tirar a criação do “piloto automático”. Para a gente o importante nessa mistura de “mundos” e desconstruções, é saber aproveitar o melhor de cada ferramenta. Sem esquecer que por trás de tudo existem infinitas conexões feitas pelas percepções, desautomatizadas ou não, de pessoas empenhadas em encontrar as melhores soluções, que as vezes são extremamente simples… como uma xícara de chá.