Original Netflix: Saara

Andrea Wirkus
flip-e
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3 min readApr 15, 2018

Longa franco-canadense traz simpáticas cobras como protagonistas de uma metáfora que poderia muito bem botar a gênese bíblica no chinelo

As cobras que aparecem em desenhos e animações, além de personagens coadjuvantes, têm sempre algumas escamas na maldade. É só lembrar, por exemplo, da Kaa, a cobra que fica tentando hipnotizar o Mogli para almoçá-lo, no desenho homônimo de 1967. Ou ainda do Sir Hiss [que, aliás, também manja de hipnose], conselheiro real do Príncipe John, o leão usurpador do trono de Nottingham, no filme Robin Hood (1973).

Sir Hiss e Kaa são, no fundo, versões de uma mesma cobra hipnotizadora

Em Saara, os dois protagonistas, Ajar e Eva (!), são duas cobras que se sentem deslocadas em seus próprios habitats. Enquanto Ajar é uma naja do deserto, alvo de chacotas do próprio clã porque ainda não trocou de pele, Eva é uma cobra verde que mora em um oásis e morre de tédio com o tipinho enjoado de seus familiares ricos… Ela quer saber o que existe além das fronteiras daquele pequeno paraíso e Ajar, habituado às dificuldades do deserto, deseja entrar no oásis em busca de uma vida melhor.

Os dois, então, se disfarçam e tentam adentrar clandestinamente o território um do outro sem sucesso. Depois de uma intensa perseguição, Eva é sequestrada por um grupo de tuaregues e Ajar, fascinado pela criatura que acabava de conhecer, cruza o deserto para tentar salvá-la, ao lado de Pitt, seu amigo escorpião.

O interessante desta animação é que, diferente do que acontece com personagens sequestrados (que normalmente aparecem em pequenas cenas cômicas tentando escapar, ou tendo conversas pouco produtivas com o bandido), o período em que Eva passa enclausurada inaugura uma segunda narrativa dentro da trama. Ao tentar fugir, Eva escuta a flauta do encantador de serpentes e não consegue levar a fuga adiante, revelando-se uma dançarina muito talentosa e sensual, algo que imediatamente provoca alvoroço entre o grupo de cobras dançarinas igualmente dominadas pelo encantador de serpentes. Aliás, as cenas mais geniais do filme são as das danças performadas por Eva.

Agora, junte os elementos: Eva, uma fêmea que não se contenta com as fronteiras do paraíso; Ajar, um macho apaixonado que enfrenta todas as adversidades pela mulher que ama e, finalmente, o encantador de serpentes, um homem feito à imagem e semelhança de deus, que carrega consigo a flauta, objeto responsável por todo encantamento e submissão das cobras. Estranhamente familiar, não? Especialmente quando nos perguntamos por que deus colocou a árvore do fruto proibido no Éden…

A metáfora é grandiosa, no entanto eu creio que poderia ter ido um pouco além se o foco em Eva fosse majorado — ela que, apesar de vítima do feitiço do encantador de serpentes, toma verdadeiro gosto pela coisa após o contato inicial com a música. Depois das primeiras cenas de dança de Eva, as sequências de Ajar e Pitt no deserto ficaram muito padrãozinho e golpearam a dinâmica, quiçá também o ineditismo do filme.

Ficha técnica

Saara — 2017
Netflix
Avaliação: ****

Lembrando que:
***** ótimo, assistam!
**** bom. assistam e tirem suas próprias conclusões!
*** ok.
** ruim, não recomendo.
* aff, passem longe.

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Andrea Wirkus
flip-e
Editor for

do tipo inquieto, um pouco infantil, compreensivelmente irascível.