EU ANABOLIZADO⁣⁣

floatvibes
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3 min readOct 23, 2020

fatos curiosos sobre você, stories do seu café da manhã, textões com suas opiniões, tiktoks em que você experimenta looks e joga os calçados pra cima. é. tudo. sobre. você. legendas sobre autocuidado e autenticidade até tentam disfarçar o autocentrismo, mas no final das contas, é sobre mostrar como você está bem (ou gostaria de estar).⁣

o Eu (Ideal) Anabolizado está intoxicado pela positividade. esse é um estranho casamento entre “eu me basto” e um senso moderno de bem-estar, onde o importante é estar bem consigo mesmo, acreditar no seu potencial, ser de bem, positivo, good vibes. nessa brisa, o sofrimento do mundo torna-se energia negativa. as críticas à nossa imagem são ataques de recalque e inveja do outro, tentativas de destruir a autoconfiança que conquistamos a duras penas.⁣

Paris Hilton

a premissa é simples: se eu me cercar de coisas / pensamentos / conteúdos / pessoas positivas, talvez eu consiga eliminar todas as angústias da minha vida. um narcisismo hiperdilatado em contraste radical com um senso atrofiado de realidade. tudo que ameaça essa redoma de paz e harmonia deve ser ignorado ou destruído. mas o grande paradoxo é que, ao enaltecer o nosso poder, parece que ficamos ainda mais frágeis.⁣

é assim que nos tornamos a versão yoggi da madrasta da Branca de Neve, que interroga ao espelho se existe alguém mais belo e equilibrado do que Eu. o problema é que o algoritmo desse espelho nos revela infinitos recortes de vidas mais perfeitas e otimizadas que a nossa. mais exemplos do que conseguimos suportar. fecha o aplicativo. respira. abre de novo. no esquema neoliberal, estamos sempre competindo, inclusive com o nosso Eu Ideal. ⁣

a lógica do autoaperfeiçoamento diz que devemos nos tornar a melhor versão de nós mesmos. e no balanço da EUtopia, até a espiritualidade virou um processo de fortalecimento do Ego. mas como defende a fantástica madama @br000na, “quando a espiritualidade não é emancipatória, ela torna-se apenas mais um produto.”

o perigo aqui é que vamos ensurdecendo e nos isolando. como descreveu o psicanalista @chrisdunker, “o meu Eu vai inflando e ao mesmo tempo o meu mundo vai diminuindo. onde isso vai levar? numa multidão de indivíduos solitários, uma multidão de indivíduos que não conseguem sair de seus próprios espelhos, que levam vidas que são mera reposição de si mesmos.”

Alessandra Leão

nesse contexto, a pergunta que fica é: como sair da bolha de iguais para lidar com as diferenças? e, claro, dá pra levar a sua autoimagem menos a sério?

se a dor do mundo nos afeta, criamos estratégias de desafetação. tentamos ficar imunes às notícias da nossa angústia e às evidências de nossas impotências. mas elas sempre voltam. nunca foram embora, por mais eficiente que seja o filtro de beleza da semana.

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