GOLPISMO

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8 min readApr 1, 2022

por que a trapaça está tão em alta?

Inventing Anna, inspirado no caso da golpista russa que enganou a elite de NY, é uma das séries mais vistas de 2022 até agora. outro hit do ano é O Golpista do Tinder, documentário sobre o israelense Shimon Hayut que se passava por milionário russo e arrecadou mais de US$10 mi de suas vítimas. na mesma vibe, o Hulu lançou The Dropout sobre Elizabeth Homes e a Theranos, a startup que prometia revolucionar o mercado de saúde. avaliada em US$ 9 bi, a empresa provou-se uma grandiosíssima fraude. rápida ascensão, algumas falsas verdades e um tombo épico — essa é a história que parece estar nos engajando nos dias de hoje.

é isso que vemos também na série WeCrashed, da Apple+, que conta a trajetória surpreendente e catastrófica do WeWork, uma das startups mais bem avaliadas da história (US$47 bi). enquanto isso, Super Pumped, no Showtime, gira em torno do controverso Travis Kalanick, ex-CEO da Uber que foi deposto com, adivinhe, um golpe. a temporada de fraudes (scam season) anda agitada. mas por que estamos tão fascinados por tais narrativas?

essas são histórias reais (ou quase reais) de pessoas mais ou menos favorecidas que conseguiram enganar elites financeiras e intelectuais para colocar os seus golpes em movimento. sim, todo mundo pode ser um alvo, e a trapaça está mais próxima do que a gente imagina. Vanessa Bohns, psicóloga especialista em persuasão, fez uma análise do discurso das vítimas de Anna Sorokin Delvey e Shimon Hayut e concluiu que muitas delas queriam de fato acreditar em seus algozes. como se, em um nível inconsciente, elas já desconfiassem que havia algo errado.

nos últimos anos, a cultura de massa tem sido irresistivelmente movida por um fetiche pela denúncia. um golpe gera muitos prejuízos, mas há um grande prazer em ver o desmantelamento de narrativas grandiosas e ambiciosas. testemunhar a falência do sujeito self-made. sim, é fascinante torcer por um anti-herói que consegue hackear o sistema e ir do zero ao topo. mas também parece ser muito sedutor acompanhar esse sujeito cair, em nome da justiça. como preconiza Gloria Groove, “melhor do que a subida, só mesmo assistir a queda”.

em definição, o golpe é uma interação oportunista que articula ganância e manipulação, substituindo a cooperação pela competitividade, gerando mais e mais desconfiança. e aliás, a confiança global na mídia e nas instituições nunca foi tão baixa na história, segundo o barômetro da Edelman, realizado em 28 países. paralelamente, a proliferação e exposição da lógica dos golpes (e uma falta de empatia pelas vítimas) vêm tomando conta das redes, da cultura e da sociedade. se as instituições estão em crise, é como se os golpes tivessem se tornado uma das únicas instituições que “dão certo”. essa é a Era do Golpismo, onde todo acontecimento pode ser um PR stunt, um truque de relações públicas, um gatilho de atenção para nos distrair enquanto alguma outra coisa acontece por baixo dos panos.

quem tem estômago para acompanhar nosso presidente da república sabe muito bem o poder dos truques. a lata de leite condensado, os discursos no cercadinho, o 07/09/21, o frango com farofa. se o Brasil é um meme que nunca dorme, nunca tivemos um presidente tão acordado e disposto. até porque os golpes já são velhos conhecidos do nosso país: evocam a malandragem, uma mistura perversa de colonialismo e a fraca introjeção da lei.

a grande novidade é a espetacularização dos golpistas. é como se Augustinho Carrara (A Grande Família) tivesse ganho um banho de loja e se tornado milionário. ou fosse, secretamente, parte da família Odebrecht. ou melhor ainda, um fundador e um disruptor. o termo em inglês “con artist” (artista do golpe) nunca fez tanto sentido. não basta dar o golpe, é preciso dar um show. e se possível, convencer as massas de que o “golpe é para o nosso bem”. 😉

essa virada do golpista-fantasma para o golpista-performático foi bem analisada por Oscar Schwartz em um artigo a respeito das duas décadas que passamos obcecados por TED Talks. para Schwartz, o megatemplo das “ideias que merecem compartilhamento” se construiu em cima de teses inspiradoras e interessantes (inspiresting) que nem sempre tinham embasamentos concretos. o TED — ou “o Starbucks da intelectualidade” — fomentou uma confiança infundada em pessoas que poderiam supostamente criar novos mundos apenas com força de vontade e uma oratória bem elaborada. uma filosofia que encorajou visões ousadas e também a negação da realidade.

e obviamente o Golpismo não é só PF, é também PJ. por exemplo, o batterygate da Apple, em 2016, quando a internet descobriu que a empresa vinha reduzindo a performance de iPhones antigos nas atualizações de software. outro exemplo: a Purdue Pharma, farmacêutica criadora do analgésico opioide OxyContin, que desencadeou uma grave dependência química responsável por mais de 500 mil mortes nos EUA.

nesse contexto, não somos apenas consumidores céticos, somos também consumidores cínicos. trocamos a descrença defensiva nas empresas por um fingimento generalizado: “eles dizem que estão do nosso lado. e a gente acredita enquanto for conveniente ou até a coisa explodir.” me engana que eu gosto.

o show é tão rápido que não dá nem pra entender direito. comprometemos a nossa capacidade crítica em prol do que gera mais especulação e entretenimento. não precisa ser real, só precisa criar lastro. não é sobre entrega, é sobre engajamento.

em 10 anos, “engajar” tornou-se um dos grandes imperativos do nosso tempo. uma mudança tão rápida que talvez a gente mal consiga dIstinguir as diferenças entre “engajar” e “enganar”. enganar seguidores é também um eficiente gatilho de engajamento e entretenimento: no TikTok, #pegadinha tem mais de 7 bilhões (!) de visualizações; #prank mais de 247 bilhões (!!!). sem falar nos grandes “criadores de conteúdos” que são acusados de cópia, plágio e outras formas de “curadoria” que, intencionalmente ou sem querer, engajam nas redes. sempre sem dar créditos às suas fontes, claro, à céu aberto. e ainda tem quem consiga sair desses escândalos com ainda mais seguidores. estamos literalmente aplaudindo a falcatrua?

como escreve Symeon Brown em Get Rich Or LIE Trying: Ambition and Deceit in the New Influencer Economy (Enriqueça ou morra tentando: ambição e fraude na nova economia da influência), em uma cultura movida pela influência, “enganar pode ser muito lucrativo e está se tornando cada vez mais extremo”. a questão é: qual é o limite dessa corrida? quando uma trapaça vai longe demais?

quantos influenciadores não são acusados de microgolpes na suas bases de seguidores? de sorteios de iPhones a laxantes vendidos como bebidas funcionais, todo cuidado é pouco com aquele médico ou terapeuta que você conheceu pelas redes sociais.

a verdade é que, só em 2021, foram mais de 4 milhões de tentativas de fraudes no Brasil (Serasa Experian), um aumento de 16,8% em relação a 2020. isso significa uma tentativa de fraude a cada 7 segundos. o Brasil é ainda recordista em mensagens fraudulentas (phishing) e sequestro de perfis em redes sociais. são diferentes facetas de uma única lógica.

vivemos em um mundo que parece tomado por um apetite maior por riscos em troca de larga escala, curvas exponenciais, hitar. não é só sobre “ter sucesso”, mas sim sobre ter uma vida de milhões. um ideal que move principalmente a juventude atual. uma mentalidade que pode ser resumida por um dos criadores do Fyre Festival: “vamos apenas fazer isso e ser lendas”. ironicamente, pessoas de 18 a 29 anos têm caído em mais golpes online do que indivíduos com mais de 45 anos (Security.org).

o jogo aquece ainda mais quando entra em cena o cryptocasino, um setor sem a regulamentação do mercado de ações em que muitos cowboys do teclado criam esquemas movidos a promessas falsas e sequestro de carteiras. crimes relacionados a criptomoedas cresceram 79% e atingiram um patamar histórico em 2021de mais de US$ 14 bi (Chainalysis). são golpes que enganam celebridades como Elon Musk ou pessoas dispostas a ajudar as vítimas da guerra na Ucrânia. em tempos de Golpismo, até a guerra pode ser um truque. afinal, o comediante eleito presidente, Zelensky, é chamado de “Churchil de Camiseta” pelo NYT e se compara a Matin Luther King no congresso dos EUA. na Era do Golpismo, todo mundo merece seu próprio PR stunt.

podemos pensar no Golpismo como o melhor-pior produto de um mundo que explora o recurso natural renovável do nosso narcisismo, um mundo em que nossos Eus, nossas relações e nossas personalidades não são apenas monetizáveis, mas necessitavam ativamente de monetização. para a autora Jia Tolentino, se a incerteza sempre foi a peça-chave do feitiço mágico da cultura dos EUA (e do neoliberalismo), nas últimas décadas, o cenário mudou de prosperidade para colapso iminente. se vamos todos bater, talvez seja melhor acelerar, apostar alto, ir para o tudo-ou-nada. ou, quem sabe, rir de quem se deu muito mal nesse jogo.

no fim, as redes sociais e a própria mídia de massa se tornaram uma espécie de show de mágica às avessas. sabemos que o que vemos ali (ou melhor, aqui) não é a realidade, mas queremos acreditar mesmo assim. conhecemos as manobras para o engajamento, as estratégias de clickbait, os faceapps… mas seguimos aqui… rolando o feed de um espetáculo que tomamos como A verdade. parece até um Club Silencio Lynchiano movido a excitação, frustração e exposição. como escreveu a socióloga Silvia Viana, em Rituais de Sofrimento, vivemos uma certa lógica de desmistificação invertida: “primeiro é revelado o truque e depois é exposto o verdadeiro segredo: a resistência do encantamento à revelação”.

se na era da distração vale tudo pela atenção, a realidade também se transforma para atender a essa demanda. e, por mais que a gente goze cancelando o culpado do dia, sabemos que somos todos atores nessa arena. o que não nos damos conta é que, enquanto somos tragados pelo espetáculo, tem sempre alguém ganhando dinheiro às nossas custas. cobrando o ingresso do show. a economia da influência é mesmo um golpe de mestre.

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