NOSTALGIA DO FUTURO

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3 min readSep 17, 2020

texto originalmente publicado no MJOURNAL

Onde você se enxerga nos próximos 5 anos? A pergunta-pegadinha da entrevista de emprego nunca pareceu tão absurda e existencial. Quando todo dia parece o mesmo dia, mal conseguimos enxergar a semana que vem e o futuro vira um conceito abstrato demais.

O tempo ficou estranho em 2020. Longos dias de tédio, ou sem trabalho, ou trabalho demais. Para quem pôde ficar em casa, parece que março foi mais longo que abril. E o “vai passar” nunca chegou pra ninguém. Como escreveu o artista chinês Ai Weiwei, “o entendimento do tempo se perdeu”. Está escuro, mas você não tem que ir pra cama. O relógio conta minutos, o calendário contabiliza mortes. Diversos estudos mostram como nossas emoções alteram nossa percepção de tempo, especialmente em tempos de trauma coletivo.

A timeline da tragédia acaba produzindo um inchaço do presente, como se tudo parasse e pegasse fogo ao mesmo tempo. Looping de espasmos.

“O futuro não é mais como era antigamente” — a frase do poeta francês Paul Valery nunca pareceu tão atual. Por um lado, a crise climática e as recorrentes tormentas econômicas tornaram o mundo movediço demais para conseguirmos imaginar um futuro inspirador e aspiracional. Nessa dança com o tempo, parece que a distopia entupiu nossos poros e a realidade se tornou frágil demais para sustentarmos o otimismo.

O lugar-comum do “novo normal” é um sintoma desse futuro estreito. A dificuldade de imaginar o novo é tão grande que a Cultura prefere voltar à ilusão de normalidade. Nossa maior saudade talvez não seja a normalidade em si, mas de um futuro que achávamos que poderíamos controlar. Ironicamente, a ideia de “novo” é povoada por imagens que parecem distorções — ou idealizações — do passado.

A obsessão contínua da Cultura de massa com o Retrofuturismo sublinha essa crise do tempo. É a corrente estética que retoma um futuro previsto em outra época. Nike, Dua Lipa, Fendi e inúmeras pessoas e instituições usando essa carta. Até os cinemas Drive-In e a corrida espacial estão de volta. É o resgate romantizado de referências estéticas passadas que (re)projetam o futuro. Uma profunda crise imaginativa. Os 414 mil membros da comunidade Retrofuturismo no Reddit descrevem essa fissura com precisão: os fantásticos e delirantes sonhos do nosso passado.

Falando em delírio, impossível não lembrar que um dos argumentos centrais do movimento de extrema direita é o resgate de passados supostamente gloriosos, a volta ao que nunca houve. Make it great again. Nostalgia não é só recurso criativo, é também posicionamento político, e isso coloca em xeque nossa capacidade de inventar um novo amanhã.

Enxergar novas possibilidades de realidade é fundamental para rompermos com problemáticas tradicionais. Afrofuturismo é um dos exemplos mais didáticos de como a imaginação é uma questão filosófica, política e, claro, estética. Imaginar o amanhã é fundamental para nos emancipar dos absurdos do hoje. É pensar em um futuro onde se possa e se queira viver. Afinal, mais difícil que viver em um “eterno presente” é viver um hoje que não tem amanhã. O futuro demanda emancipação.

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