RESSACA DO WELLNESS

floatvibes
floatvibes
Published in
6 min readApr 12, 2022

— e para além dos rituais de bem-estar, você está bem?

sucos (ou smoothies?) superfaturados. academias butique. um culto superficial à saúde mental. produtos erotizados como “pró-saúde sexual”. conteúdos e apps que tentam controlar todo e qualquer movimento do nosso corpo. inúmeras obsessões alimentares… e férias paradisíacas compensatórias. — é como se a ideia de estar bem hoje se traduzisse na capacidade de ser notável e atraente para o maior número de pessoas possível, e pagar caro por isso.

o culto do autocuidado é um dos ideias mais fortes das últimas décadas, uma máquina de dinheiro e sofrimento que parece finalmente tão esgotada quanto nós — quem aguenta mais um passo de skincare, afinal de contas?! se as redes estão sendo mais movidas a ódio e a inveja, é como se também precisassemos de doses mais intensas do antídoto, versões mais caricatas de descanso e relaxamento — e apatia. se na psicanálise o oposto do ódio é a indiferença, na internet o avesso do esgotamento parece ser o wellness.

frente aos infinitos rituais e produtos oferecidos por essa indústria, surgem inúmeros questionamentos: o culto do autocuidado faz com que a gente se sinta bem ou nos lembra de como não estamos bem? permite que mais pessoas sintam-se melhor ou apenas aquelas que podem pagar para se hospedar no retiro? questiona padrões ou apenas sofistica o aprisionamento?

os paradoxos do wellness são evidenciados na história da influenciadora de fitness do filme polonês SWEAT que, quanto mais tonifica sua performance e seu corpo, mais solitária se sente. ressaca do wellness é Mood Ring, música da cantora Lorde sobre como, mesmo com tantos cristais, palos santos e anéis de humor, seguimos apáticos, sem conseguir sentir nada. mas, claro, meditando. é a influenciadora que incentiva e embala distúrbios alimentares como rituais de autocuidado e, depois de cancelada, vira trader no mercado financeiro.

por um lado, wellness tornou-se o mantra de uma Cultura que queria viver melhor, ao mesmo tempo que também virou o argumento central para vender produtos que sempre se afirmam versões melhores de algo que já existe — você não precisa apenas de um hidratante facial, mas sim daquele que ainda te faz se sentir bem. mas por mais belos sejam os tons pastéis nas embalagens e propagandas, parece que o mal-estar contemporâneo segue se aprofundando. e não há chá ou máscara facial capaz de anestesiar a falta de sentido dos dias — talvez o refrigerante de canabidiol possa. wellness é um movimento que está na fronteira entre libertação e controle.

wellness, em inglês mesmo, porque essa articulação empacotada e consumista do bem-estar é extremamente norte-americana, mais um dos produtos culturais que engolimos, reproduzismos e até passamos no rosto. acordamos e dormimos com essa fantasia de eliminar todo sofrimento de nossas vidas. é claro que existem muitas interpretações brasileiras, flertes — ou apropriações? — com nossas formas de ancestralidade, mas a essência ainda faz parte do sonho de otimização como expressão de liberdade que tece a cultura dos EUA.

se no século 19 otimizar significava “tornar mais otimista”, nos anos 2020 é sobre “transformar algo ou alguém em sua melhor versão”, pilar central do discurso a sociedade do desempenho. só que em um mundo em que empacotar personalidades e transformá-las em produtos engajadores pode ser uma atividade altamente rentável, vender uma imagem de que se está muito bem também pode aumentar sua visibilidade. é o efeito colateral de um tempo em que o trabalho foi ressignificado como prazer, um tempo em que melhorar a sua aparência e mercantilizar até o seu lazer tornaram-se trabalhos supostamente divertidos. tudo isso coroado por uma perigosa erotização co capital.

tudo isso mascara uma apatia generalizada em que nos encontramos, o culto ao anestesiamento com medicamentos, substâncias lícitas e ilícitas, episódios, trabalho, likes. e também uma cultura em que wellness se tornou um dos maiores significantes de classe e status econômico. é como se a ideia de estar bem hoje se traduzisse na capacidade de ser notável e atraente para o maior número de pessoas possível. como se estar bem fosse mais sobre aguentar uma maratona de reuniões do que para uma corrida de 42km.

em Falso Espelho, a escritora Jia Tolentino aprofunda as armadilhas da hiperidealização wellness para as mulheres no ensaio “A otimização constante’:

“a mulher ideal, em outras palavras, está sempre em otimização. ela tira proveito da tecnologia, tanto na forma como transmite sua imagem quanto na melhoria meticulosa da própria imagem. (…) seu corpo não requer mais as tradicionais melhorias da moda ou roupas íntimas estratégicas; ela foi pré-formatada por exercícios que garantem que há pouco para esconder ou reordenar. (…) tudo nesta mulher tem sido controlado a ponto de poder dar a impressão de espontaneidade e, mais importante, a sensação de ter trabalhado para livrar sua vida de obstáculos artificiais, muitas vezes ela se sente legitimamente despreocupada. a mulher ideal sempre foi conceitualmente sobrecarregada de trabalho, uma coisa inorgânica projetada para parecer natural. historicamente, a mulher ideal busca todas as coisas que as mulheres são treinadas para encontrar diversão e interesse — domesticidade, autoaperfeiçoamento físico, aprovação masculina, manutenção da simpatia, várias formas de trabalho não remunerado.”

wellness é uma eficiente estratégia de anabolização do Eu (Ideal). o problema é que, enquanto estamos tão ocupados com o processo de nos tornarmos nossas melhores versões, acabamos “esquecendo” da pergunta fundamental — quem, de fato, queremos ser? sem falar que todo esse trabalho psíquico de idealização-frusstração-reidealização gera bastante cansaço, oportunidade amplamente capitalizada pelo mantraneoliberal do “só depende de você”. e é assim que, segundo um estudo da Consumoteca, 41% dos latino-americanos sentem que não estão fazendo tudo o que podem por sua felicidade.

as semelhanças entre o discurso gratiluz e os mantras do empreendedorismo são impressionantes. por um lado intraempreendedores seguem na auto-otimização para que possam “ser a mudança”, enquanto jovens místicos repetem insistentemente que “a saída está dentro de você”. é interessante essa visão binária e dicotômica de dentro e fora, eu ou o outro, como se nossa psique não fosse estruturada exatamente no conflito entre eu, o outro e o grande outro (ou a Cultura). nesse sentido, é como se o culto do bem-estar (e do Mystic Mall) tivesse se tornado alienante e até opressor. no meio de tanta “luz”, não somos mais capazes de enxergar nada — nem mesmo a realidade.

a ressaca do wellness é um sentimento de desconfiança e ceticismo que vai tomando conta das redes. é uma postura pró-espiritualidade e contra a espiritualidade mercantil. é uma visão de autocuidado que não se encerra em “tudo bem não estar tudo bem”, pq até esse grito de libertação tornou-se um slogan. a ressaca do wellness é o esgotamento do discurso afirmativo, positivo e tóxico que transforma qualquer ritual em mais um gatilho de consumo. é uma postura pós positividade tóxica. é a constatação de que o relaxamento, o autocuidado e a saúde mental não precisam ser reduzidos à lógica da performance. é aceitar que não existe vida sem negatividade e que é impossível estar sempre bem.

--

--