RETOMADAS E REVOADAS

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20 min readDec 21, 2021

Entre o after do fim do mundo e o esquenta de um mundo novo.

Se olhar no espelho no banheiro da festa e pensar, meu deus, eu tô muito loca. Encontrar aquela pessoa desagradável na fila do bar — conversinha fiada, sorrisos amarelos. A sensação de “não sei para que vim, mas estou aqui”. Pés inchados, fotos tremidas, celular roubado. Como diz o meme:, “não tô sabendo existir”. No purgatório dos extrovertidos chamado distanciamento social, parece que nunca sentimos tanta falta dos encontros randômicos com o imprevisto.

Estamos mesmo no fim de tudo isso? Ou é o começo do fim? Quem sabe, o começo de algo novo? É impossível passar um dia sem ouvir alguém falando em retomada. O prefixo “re” é traiçoeiro, como se estivéssemos tentando repetir um tempo que não volta mais. Mas queremos repetir? Os últimos dois anos nos tornaram novas pessoas. Ninguém é mais o mesmo — nem você e nem o outro. Nesse sentido, “re” também pode indicar renovação, uma forma de revigorar no lugar de apenas reviver. Não é o after do fim do mundo, é o esquenta para o início de um novo mundo (que não deveria parecer velho).

De acordo com o médico e sociólogo Nicholas Christakis, autor do livro “A Flecha de Apolo: vo Impacto Profundo e Duradouro do Coronavírus na Maneira como Vivemos”, estamos só no fim do começo da pandemia. Mas e o pós-pandemia? Só em 2024? Até lá, seguiremos dançando com o vírus. E nesse meio tempo, muitos de nós só querem poder voltar pro front. No galpão abandonado, no bar, no show, na cozinha da casa de alguém que acabou de conhecer. Do contrário, estaremos perdidos.

E aí tem a “revoada”. Perdemos a conta de quantas músicas com ao significante “revoada” passaram pelas listas de mais tocadas. No dicionário, revoada é um vôo conjunto e simultâneo; no funk, é uma festa sem limites. Do tubarão, dos ratão, de malandro, de ladrão, no paraíso, no colchão… Entre rolês clandestinos e agitos no salão, o que não falta agora são revoadas. A ampliação do uso do termo talvez nos lembre que humanos são, em geral, seres cronicamente gregários.

Para alguns especialistas em tratamentos do trauma, nossos sistemas são feitos para se moverem em sincronia com as pessoas ao nosso redor. O que os militares fazem? Marcham juntos, voltam à sintonia coletiva. Como diz o psicanalista Tales Ab’Sáber, assim como o esporte é a sublimação da competição/guerra, a música e a dança são a sublimação da vida erótica/sexo. É sempre uma colocação do corpo. Não por acaso, o Carnaval opera como essa grande ferramenta de reparação do tecido social brasileiro.

De acordo com o estudo “Quando eu me vacinar” (Orbit Data Science), “extravasar” é o que os brasileiros mais gostariam de fazer (64%) após tomar a vacina contra Covid-19.

Efervescência Coletiva? Exatamente. O termo criado pelo sociólogo francês Émile Durkheim se refere à necessidade de momentos de excitação coletiva que colocam o sujeito em agitação, animação — o rebuliço. Seja em protestos, festas, shows ou jogos esportivos, os eventos físicos e coletivos têm o poder de apaziguar, ao mesmo tempo que dissolve o Ego por alguns segundos.

Noites estelares de brilho inigualável, um sentimento de co-existir com 10, 100 ou 1 milhão de pessoas subindo e descendo sem retorno, sem uma gota de energia para voltar para casa, sem pára-quedas para a descida. Num samba, num baile, numa rave, num show, num festival. Velhos amigues e novos estranhos, unidos pelo descontrole de uma festa de verdade. Por essas e outras, o rolê deveria ser um direito universal.

Afinal, o que ficará disso tudo? Só o tempo tem essa resposta. Em meio a dilemas e contradições, retomadas e revoadas, existem muitas formas de encontrar, reencontrar e se entregar ao fervo. E essas são algumas das VIBES que parece que estão em plena ebulição:

GOP TUN por Ariel Martini

VIBES: ANACROROLÊS

Para além das mesmas repetições dançantes.

Anacronismo é quando um conceito ou costume de uma época parece que está localizado em outra era. E dá aquele bug temporal na cabeça. Isso ainda cabe aqui? Ou já ficou obsoleto? Ultrapassado?… Até que não foi tanto tempo assim que ficamos privados das festas, shows e experiências coletivas de lazer e diversão, né? Ou foi? O que deu tempo de mudar ou não mudou nesse intervalo?

Em 2011, o jornalista especializado em música Simon Reynolds publicou Retromania, o livro-sentença sobre como vivemos (ou vivíamos?) em uma cultura obcecada por remakes, reedições e revivals. Para o autor, a re-produção em tempos digitais também significava a morte da originalidade, abrindo as portas para um tempo sem passado.

Reynolds foi especialmente crítico aos hipsters, makers e outros arquétipos do Mass Indie dos anos 2010. O que será que ele teria a dizer sobre o atual revival sem fim da Disco Music ou da estética duvidosa Y2K, que nos fazem atravessar (mais) um infinito ciclo de reinterpretações — ou de repetições? Ugly fashion, emo vibes, Crocs, dark academia, cottagecore e tantos novos nomes nos dão aquele sentimento confuso de “espera, eu já vi/ouvi isso?”; e ao mesmo tempo “será que eu quero mesmo reviver tudo isso?”.

Relembrar é uma parte indispensável da experiência humana e as memórias nos constituem às vezes até mais do que gostaríamos. Mas a compulsão pelo retorno também pode ser um desejo inconsciente de voltar a um estado idílico, pacífico e excessivamente brilhoso que, cá entre nós, talvez nunca tenha existido.

Nostalgia é saudade, mas uma saudade idealizada — que romantiza a experiência e exclui a parte desagradável. Tem suas armadilhas e a pandemia nos colocou em uma encruzilhada temporal tão específica que, por muito tempo, a nostalgia parecia ser tudo que a gente tinha.

Aquela saudade incurável das festas foi parar nos #TBTs ou em experiências de happy hour no Zoom que, com o tempo, se tornaram bastante ingratas. Enquanto isso, muitas festas, bares e casas noturnas se despediram, possivelmente, para sempre. Mas por quanto tempo será que eles durariam se não fosse esse grande hiato obrigatório que vivemos em 2020–2021?

Ainda assim, novos movimentos também surgiram e/ou se fortaleceram nos últimos meses, mesmo diante das condições mais adversas. Difícil entender essa dança, ainda mais porque sabemos que o retorno para o baile está só começando. Mas estejamos avisados que com isso alguns antigos desejos (e frustrações) também voltarão para a pista.

Capslock

Isso é tão 2019

Bom, daí a gente voltou a se arrumar, se empolgar um pouco e panicar um outro tanto. E, ao cairmos de novo nas festas, vamos nos confrontando com algumas coisas com as quais o que nosso consciente talvez já estivesse recalcado. E quem sabe estamos com menos paciência mesmo pra algumas coisas — que poderiam ter ficado no tempo pré-pandêmico?

Sim, custa dinheiro. E cansa. E Muito. Tem também a parte do deslocamento. E os amigues que atrasam. E aquela hora que toca aquela música que você odeia. Será que ainda tenho idade para isso? Tem gente falando alto no front. E também barraco, fura-fila, briga com o staff. “Queria menos carão… mas essa parece uma batalha perdida.”, foi o que escutamos das pessoas em nossa pesquisa de campo. Bom, sem falar no estado do banheiro ao longo da noite…melhor nem comentar. Saudades de ficar em casa.

Ao mesmo tempo, também não faltam novas nóias e gatilhos. A gente precisa ficar sempre tão perto um do outro? E essa fumaça na cara? Bem que podia ser um rolê ao ar livre. Essa lógica de pagamento/consumação parece tão equivocada. Ainda que muitos enxerguem a pandemia como “A Grande Pausa”, talvez ela possa ser mais um Grande Reboot — um sistema que foi reiniciado e não sabemos ao certo o que há de novo e de antigo em suas configurações. Mas sabemos que o sistema não precisa ser mais o mesmo, até porque também não somos mais exatamente quem éramos.

E o tal do Metaverso?

Segundo um estudo da OCLB com a Mindminers, 2 em cada 3 brasileiros já participaram de um evento online e, para a metade, o primeiro contato foi durante a pandemia. Além disso, 1 em cada 5 pagaram para participar desses eventos e 79% concordam que esses eventos vão continuar a crescer mesmo com o fim da pandemia. Quais os impactos e legados de tantas interações online?

Por mais que os anjos tronchos do Vale do Silício tentem nos convencer de que reuniões em realidade virtual e encontros parassociais são a grande novidade, a verdade é que o metaverso já é uma realidade. No Fortnite, na League of Legends, no CS, no Free Fire, no Animal Crossing e até no Minecraft. O show do rapper Lil Nas X no Roblox foi acessado 33 milhões de vezes; Travis Scott teve um pico de 12 milhões de usuários simultâneos e o da Ariana Grande quase 6 milhões de visualizações, ambos no Fortnite.

Para nossa sorte ou azar, o inebriamento das telas tem consequências para as nossas relações e também na nossa capacidade de nos conectarmos ao outro. Quando transferimos nossos vínculos para o metaverso, parece que dobramos a aposta na fantasia da onipotência tecnológica: tudo tem que ser mais colorido, controlado, diversão limitada, arestas mais arredondadas. Como se até uma reunião de trabalho tivesse de passar pela lógica do entretenimento e da comunicação euforizante.

Podemos passar 12 horas seguidas no metaverso, mas se não tivermos pelo menos algumas relações nas nossas vidas que nos tragam um profundo sentimento de acolhimento e intimidade com todos seus conflitos e imperfeições e não-ideais, vamos seguir nos sentindo solitários na multidão. E para sair dessa, precisaremos de mais do que o efeito inebriante das telas: Precisaremos inclusive sair de casa.

Afinal, estamos indo em busca do quê quando saímos? Geralmente, dizemos para nós mesmos que é pra encontrar os outros, para relaxar, para vibrar e sentir junto. Mas o estado de comoção experimentado em uma mesa de bar, show sertanejo, churrasco ou sarrada nos afeta de tantas formas conscientes e inconscientes que é até difícil colocar em palavras. Quem sabe é até um flerte com a transcendência? Sair de casa pra sair um pouco de si.

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VIBES: RE-ADD NO GRUPO

Quem entra e quem fica na nova temporada?

Apatia social. Desinteresse pelos contatinhos. Indisposição para encontrar alguns antigos e/ou vontade de conhecer gente nova? Uma decepção generalizada com o coletivo, com o povo brasileiro. Preguiça de responder aquela mensagem e responder que “não, não tá tudo bem, mas tudo bem não estar tudo bem.” Melhor conversar com a Alexa?

A pandemia bagunçou todas as relações. O contexto extremo em que vivemos provocou um desvelamento das interações, expondo atitudes que geram discordâncias e aprofundam diferenças ou indiferenças. Parece que sustentar os vínculos ficou mais trabalhoso, especialmente com quem está na periferia da nossa vida social. São aquelas pessoas que não são próximas, que às vezes até esquecemos o nome, não sabemos muito a respeito, esbarramos no elevador, no ponto de ônibus, na fila do supermercado da esquina de casa — mas que são importantes para construir um senso de socialização expandido na nossa vida.

Por mais fracos e impessoais que sejam esses laços, eles também nos constituem e nos localizam em um espaço-tempo. Até porque importar-se com alguém que não é especificamente tão importante é uma forma de preservar a nossa humanidade e driblar algum entrave da nossa solidão existencial. “Estou adorando conhecer pessoas novas, depois de muita reclusão e terapia.”; foi o que escutamos um dia desses.

O psiquiatra Van Der Kolk defende ainda mais: é esse senso de comunidade que pode nos ajudar a atravessar um grande trauma, como foi (ou melhor, ainda é) esse mal-estar planetário chamado Novo Coronavírus. Quem diria que relações casuais, não-íntimas e até superficiais poderiam ser tão importantes para o nosso equilíbrio emocional?

Selvagem (por Eduardo Magalhães)

Poucos e bons e tá ótimo assim

Mas nem todo mundo está tão disposto a re-expandir o seu círculo social que foi espremido à força. De um lado, temos escutado coisas do tipo: “Sigo com um número restrito de pessoas. Muita gente tem me exaurido demais.” De fato, andar com muita gente ou conhecer pessoas novas sempre foi um desafio maior para alguns e uma grande facilidade para outros. Muitos de nós se declaram temerosos (ou preguiçosos) para voltar pro jogo do quem-é-quem-na-fila-do-pão. Têm sido tantos encontros, reencontros e atualizações que fazem o início da festa parecer um episódio distópico de Chegadas & Partidas.

E aí vale um cuidado para não fazermos uma generalização equivocada sobre essas variações comportamentais: Confundir timidez e introspecção com fobia social é um pouco como pensar que tristeza é depressão. Não dá pra patologizar atitudes, estilos de personalidade e afetos que são absolutamente comuns. Mas qual seria a barra da normalidade social? Existe uma normalidade? Em nossas pesquisas escutamos depoimentos como “Depois da pandemia, minha fobia social aumentou muito” e “Não consegui sair ainda. Pânico de ver as pessoas e não sei porquê”.

Segundo a pesquisa “Vacina. TOMAR para RETOMAR” (respondida por 2 mil pessoas com 16 anos ou mais, nas 5 regiões do país, entre os dias 19/10/21 e 29/10/21), 75% dos brasileiros se sentem “seguros” ou “muito seguros” com o aumento na taxa de imunização. Os riscos da Covid-19 seguem existindo e novas variantes (já chegamos na Ômicron) deixam muito evidente que a dança com o vírus está longe do seu fim.

A metáfora da dança foi amplificada pelo engenheiro e escritor Tomas Pueyo. Nessa analogia, uma das partes mais difíceis da pandemia da Covid-19 é a dança forçada com o vírus — aliviar e endurecer medidas, fechar e reabrir setores da sociedade conforme o aumento e a diminuição dos casos. E o mesmo vale para a socialização. Independentemente do nível de negação e de sucesso no combate ao vírus, todos os países tiveram de definir sua dança. Um baile que vamos continuar dançando até que tenhamos conseguido mais ou menos controlar o vírus em todos(!) os cantos do mundo.

Conforme aprendemos a duras penas, a parte mais difícil é se preparar para os eventos de choque que interrompem a música e nos obrigam a mudar completamente a estratégia, a rotina e as relações. Mas muitos de nós já reconhecemos que o nosso medo de sair e interagir não têm só a ver com a ameaça do vírus em si. Então, se o medo não é só da pandemia, do que mais ele pode ser?

Se você está com dúvidas sobre o que está acontecendo com sua energia social e está sentindo algum incômodo com isso, melhor investigar na terapia ou nas conversas com quem você mais confia. Escutar o “bode do fulano” e a “preguiça de interagir”; ou mesmo se dar um pouco mais de tempo na comunicação movida ao som e fúria das redes. Essa escuta atenta pode ser uma forma de reencontrar não só o outro, mas a si mesmo.

Me perdi da galera

A antropologia nos lembra que o estranhamento pode ser uma sensação desconfortável, mas muito oportuna. É sobre não enxergar o mundo com as mesmas lentes de sempre. E vamos de Marcel Proust: “A verdadeira viagem da descoberta consiste não em buscar novas paisagens, mas em ter olhos novos.” — E o que você está vendo?

Esse estranhamento pode ser divertido, mas também assustador. Corremos o risco de nos sentirmos deslocados (no lugar de descolados) e simplesmente não sabermos mais do que a gente gosta ou de quem a gente gosta de ter por perto. Ou se ainda gostam da gente. Se ainda pertencemos àquela cena. Algo na linha: “Não tenho mais nem idéia do rolê que eu curto, que amigos eu tenho e que lugares quero frequentar.”

O momento pede mesmo uma dose de experimentação. Reavaliação de Vibes. Renovar velhos hábitos ou mesmo algumas companhias. Já que saímos do automático, então o talvez seja melhor nos despedir de algumas relações que já andavam um tanto comprometidas. Antes o esforço de redescobrir e reconhecer do que o peso de ressentir. A pandemia foi um tempo de “fechado para balanço” e, se a loja está reabrindo, o que queremos diferente nessa nova temporada? E qual é a clientela do seu interesse dessa vez?

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Intimidades frias

Não há nada de novo em sentir-se sozinho na multidão, mas isso não significa que aprendemos a lidar com esse sentimento. De um lado vivemos uma hiperconexão contínua, febril e barulhenta e ao mesmo tempo um empobrecimento dos vínculos.

Segundo a socióloga Eva Illouz, vivemos em um tempo de Intimidades Frias, uma sociedade inteira baseada na premissa do gerenciamento das emoções e controle dos afetos. Nesse cenário, emoções e relacionamentos íntimos têm se tornado cada vez mais avaliados, medidos, quantificados e categorizados. É a história de um tempo em que amigues se confundem com audiência e alcance. O problema é que, quando o sujeito não consegue estabelecer vínculos íntimos ele vive uma profunda experiência de solidão. E, de acordo com um estudo realizado pela Ipsos em 28 países, 50% dos brasileiros afirmam se sentir solitários.

Repensar a forma como nos relacionamos é uma estratégia importante para tempos de subjetividades sombrias. Pode parecer difícil, mas é importante sustentarmos alguns questionamentos: Agora que estamos experimentando sair mais e para mais lugares, como vai ser? Qual é nossa disposição para as trocas e que tipo de trocas desejamos fazer? O que sabemos, é que estas novas temporadas não precisam implicar em uma regressão da nossa riqueza psicoemocional. Afinal, nós merecemos um pouco do calor da intimidade.

VIBES: MICROPOLÍTICAS DO CLOSE

Nunca foi só uma festa.

Uma bandeira amarela gigante, bem no meio da pista, com vírgulas e sem vergonha, grita: “não passarão homofóbicos, sexistas, fascistas, racistas”. Esse é o texto e o subtexto da festa dando*, em SP. E também o subtexto da Mamba Negra, a grande ferramenta de luta e celebração das cobras do afronte e do front. Uma batida parecida com a da Revérse, uma festa recifense que usa música e corpos como formas de contestação. A proposta também pode combinar com as infinitas misturas de pagode, swag e ballroom da Batekoo, o templo de celebração da diversidade de gênero, sexualidade e raça que chacoalha Salvador, São Paulo, Recife, Nova Iorque e o mundo.

Voltar a sair não é apenas retornar para a diversão. É também um exercício consciente e imprevisível de transitar, misturar, furar bolhas. De existir e de respeitar quem existe para além dos muros do seu condomínio e do seu escritório. É dar pelo menos uma volta para fora dos nossos narcisismos e sentir o espírito de um tempo mais plural — e quem sabe até mais igualitário?

Encontro Latino-Americano (por Ana AWB)

A crise que nos define

Muitos teóricos afirmam que se as guerras levam a uma enorme destruição do capital, as pandemias levam à destruição do capital humano. Esse seria inclusive um bom momento para pensarmos em como anda esse nosso tal capital. O Brasil segue em um momento econômico e político profundamente crítico, com a maior inflação em 25 anos e um grande aumento na desigualdade social. Ninguém sabe mais se a crise é conjuntura ou estrutura.

Existe um desamparo material e concreto bastante real em curso — e pra completar, os ingressos das festas voltaram ainda mais caros — “quem tem toda essa verba?”, comentam os rolezeiros que tentam sobreviver no Brasil. Será que as bolhas sociais vão ficar ainda mais estreitas? É sabido que alguns festivais que divulgaram seus line-ups recentemente foram bastante criticados nas redes sociais pela falta de representatividade de gênero e pessoas trans na sua curadoria. Closes antigos ou pelo menos limitados para tempos que demandam mais pluralidade.

Mesmo em tempos de polarizações e conservadorismo, a mudança insiste. 58% dos jovens brasileiros se consideram militantes, ativistas ou simpatizantes de alguma causa (Consumoteca). E o que isso significa na nossa esperança por tempos futuros de alegria e prosperidade?

A resposta talvez esteja em um samba complexo e bem brasileiro entre diferença e indiferença. A indiferença é uma espécie de defesa para aquilo que o outro evoca na gente e que não conseguimos reconhecer, lidar e nem gostar em nós mesmos. Então criamos “bolhas de iguais”, fóbicas e violentas. Quanto mais gente, discursos e valores iguais aos meus, mais vamos nos fechando em uma lógica de exclusão. Não parece que vai dar certo.

Dando

Ética da pulseirinha

Como muito bem diz o psicanalista Christian Dunker, a indiferença é, no Brasil, escancarada pela lógica do condomínio. É uma patologia social erguida por muros simbólicos, discursivos, e por outras formas de silenciamento do outro. Uma ética que também estrutura a diversão à base de áreas VIP, camarotes e eventos só para poucos como se a sociedade não estivesse dividida o suficiente.

Quando o outro é colocado do lado de fora, ele também é calado e invisibilizado. Não precisamos mais escutar seu sofrimento e muito menos lidar com o estranhamento que esse outro gera em cada um. E tTodes estamos sujeitos a esse movimento, seja num conservadorismo ufanista cego ou numa militância narcísica.

Aonde isso vai levar? A uma multidão de indivíduos solitários que não conseguem sair de seus próprios espelhos. Vidas que são mera reposição — ou repetição — de si próprios. Como a gente sai do terreno movediço da indiferença? Mais uma vez: bancando a diversidade e fazendo uma homenagem dilacerante para Marília Mendonça no meio da pista eletrônica para cyborgs da Sangra Muta.

Pela guerrilha do close

Estar entre conhecidos e desconhecidos também é fazer parte de uma cena. É experimentar um senso entorpecente de pertencimento a um grupo que se reconhece, mesmo no escuro. E que também se desconhece, mesmo quando nasce o sol. Esse afeto só se transforma em emoção quando está ligado a algum tipo de movimento, construção e ação e daí cria-se um senso de comunidade. Uma ou muitas comunidades são capazes de reconstruir e questionar a existência, de exercitar novas possibilidades de ser — inclusive de ver e ser visto.

Como diz Linn da Quebrada no hino Close Certo, “Se o close é pose, drink, jogo de aparência, pra mim, estar no game é questão de sobrevivência”. Sobreviver, existir, resistir, repensar, libertar. Definitivamente, nunca foi só uma festa. Não precisa ser “apenas uma festa”. No vão de um dos mais belos prédios de BH, um luminoso-instagramável insiste: “A vida vai ressurgir copulando só afetos”. A questão é: Por que manter os mesmos afetos se podemos elevar a nossa gramática emocional e psíquica?

A exposição ao plural nos enriquece, nos ajuda a sair dos estreitos buracos de sofrimento, seja a depressão, o tédio, a irrelevância, o profundo sentimento de inadequação. É quando nos expomos ao que é estranho que descobrimos o estranho que existe dentro de nós e aprendemos como podemos existir para além das normas e convenções, que respeito pode coexistir com libertação. E quem sabe a sustentação destes espaços e dessas cenas culturais torne possível mover mundos a partir das margens?

VIBES: MANIFESTO ANTI-OPRESSÃO

A diversão também no giro da performance?

Full Pass

Ingressos comprados até maio de 2022. Rolês marcados para todos os finais de semana. Pulseirinha com direito a todos os brinquedos do parque. Sobram festas, faltam dias, mas será que não está rolando um tipo de excesso? Desdobrar-se para tentar estar em absolutamente todos os eventos é não apenas impossível e/ou financeiramente inviável, mas também fisicamente insustentável. Mais noites em claro e ressacas do que talvez a gente consiga dar conta.

“Estou me preservando do desatino coletivo, o povo que tá sedento demais.” — alguém comentou nas enquetes que fizemos sobre o anseio das retomadas. O sextou, o sábadou e as férias de fim de ano se tornaram janelas importantíssimas para tirarmos o atraso. Mas qual é o limite do nosso corpo e da nossa disposição emocional para tanta curtição? Não vai dar para compensar dois anos em duas semanas.

A síndrome do F.O.M.O. vem sendo discutida na cultura desde os anos 1990. Mas como as tecnologias não cessam de nos provocar a voltar para esse lugar ingrato, estamos longe de resolver essa questão. A pandemia nos ensinou muita coisa à força; saber lidar um pouco melhor com a perda e com os limites deveria ter sido uma delas. Não deveria ser “o fim do mundo” ficar um pouco de fora, uma vez ou outra. Assistir de casa, sem tanto imediatismo e esperar com paciência por uma outra ocasião. Fim do mundo é outra coisa, né?

Gop Tun por Felipe Gabriel

Império do gozo e o cansaço compulsivo

Como fazer pra não ficarmos reféns do nosso próprio desejo por prazer e diversão? Aí entra o que muitos estudiosos chamam de Império do Gozo: Essa urgência do mantra “work hard, play harder”. O senso de merecimento conquistado, que defende que devemos aproveitar tudo ao máximo, porque estamos dando o nosso máximo o tempo todo, porque sim, 2021 foi difícil demais. Passamos por muitos momentos de tensão, angústia e tristeza e seguimos vivendo intensamente a ressaca do cansaço compulsivo.

Mas o problema é quando a lógica da produtividade também invade os momentos que deveriam ser de descontração e descompressão. Até que horas você ficou? Quantas tomou? Quantos beijou? O trackability da balada é uma bela armadilha para quem está habituado a se esbaldar no giro da performance. Nessa batida, o lazer também passa a ser sentido como o trabalho. A tirania do sucesso se apropria inclusive do nosso tempo livre.

Como diz o meme: no sleep, bus, club, another club, another club, another club, plane, next place, no sleep, another club…

No fim, a exaltação não pode virar afobação. Esse é o risco de sucumbirmos às saídas maníacas ou compulsivas só pra não perder nenhuma oportunidade. Calma, é apenas mais uma festa. Caso contrário, a gente pode sair de um estado reprimido e deprimido e mergulhar de cabeça em um estado frenético e ansioso. Além do mais, sabemos que as ondas de positividade tóxica permeiam a cultura livremente e é uma grande tentação exaltarmos a felicidade e exibirmos isso ao mundo. Só que ninguém é obrigado a estar sempre alegre, celebrativo e hipersociável. Isso simplesmente não é humano, é um avatar.

Gop Tun (por Felipe Gabriel)

Tô de boua

E aí tem as nossas variações de humor pra colocar na conta. Euforia de uns, apatia de outros. Excitação numa hora, desinteresse na outra. Simples assim. Sim, o desejo flutua e a gente vai precisar respeitar essas oscilações caso a caso, dia a dia. Nada está garantido.

O antropólogo Michel Alcoforado diz que a pandemia nos convocou a experimentar uma outra temporalidade mais planejada, menos orientada pela nossa origem latino-ibérica. Como brasileiros nos damos bem com o improviso, com o desenrolar da última hora. Mas os novos tempos colocaram mais ordem e limites nessas experiências. Como organizar o desejo de se divertir sem que essa ordem estrague parte da diversão?

Chega o tão esperado fim de semana. O QR code e o comprovante de vacina estão em mãos, a pochete pronta, amigues já estão lá e os stories rodando à mil. Mas subitamente… Você se questiona se quer mesmo participar da brincadeira. Bate até um receio: será que eu não estou tão feliz e disposto para encarar essa grande maratona do fervo? E será que preciso estar sempre feliz para entrar na festa? Ou será que entrar na festa é o que pode me ajudar a ficar mais feliz? E a gente precisa mesmo tentar estar feliz o tempo todo?

A premissa principal que vale ressaltar é a de que uma festa boa não garante que você vai se divertir. Assim como também é possível aproveitar um evento que tinha tudo para ser miado. Uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. E ainda tem um mistério interessante aí, que tem muito mais a ver com a nossa subjetividade e nosso estado de espírito, naquele momento específico, do que com qualquer certeza de diversão. No fim, é uma aposta.

Respeitar seu momento

Para tudo isso fluir melhor, vamos ter que segurar as expectativas e idealizações (pensando no rolê como um produto que adquirimos no mercado) e olhar mais para o nosso desejo de estar ou não estar, de fazer ou não fazer e também para o quão abertos estamos para a surpresa e a raridade do encontro com o outro.

Olhar para si ao invés de se basear principalmente em tudo que os outros estão dizendo e postando é uma saída inteligente para não sucumbir às opressões de que devemos fazer algo (e de que devemos imediatamente!). A nossa saúde física e mental depende de conseguirmos respeitar o fato de que o nosso ritmo individual não é necessariamente o mesmo do mundo, da agenda cultural, dos amigues, dos amigues dos amigues, dos crushes ou dos colegas de trabalho que acham uma ótima ideia fazer happy hour em plena segunda-feira.

Um resgate do equilíbrio talvez nunca tenha sido tão importante em um momento novo e diferente como esse. Ninguém merece se acomodar com uma condição precária de isolamento, mas também não somos obrigados a tentar uma satisfação sem fim e sem limites. Então, curta com moderação.

*este conteúdo foi produzido para a Beck’s, com base em questionários e entrevistas qualitativas desenvolvidas ao longo de 2021 para diversos projetos de pesquisa realizados pela float. além disso, tomamos como base inúmeros artigos, publicações e estudos, além de quase 100 VIBES que publicamos desde o início da pandemia no @floatvibes.

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