O PACTO NARCÍSICO DA GAY BRANCA

floatvibes
floatvibes
Published in
6 min readJan 10, 2021

31 de dezembro de 2020: um barco com 60 homens gays naufraga na costa de Puerto Vallarta, no México. apelidado de Gaytanic, o acidente é simbólico; e poderia muito bem ter acontecido no Rio de Janeiro ou em Boipeba.

o arquétipo da bicha branca parece uma boatparty que insiste em naufragar. mas a festa nunca acaba. sempre haverá o próxima embarcação, a próxima montação, a próxima colocação, a próxima azaração. tudo é urgente, imperdível e ligeiramente nefasto. tudo é dela; e ela não pode esperar. afinal, “elas não deitam”.

a pandemia agravou ainda mais a alienação egocêntrica e opressiva da bicha branca. a virada do ano foi marcada não só pela conquista da vacina, mas também por um grande aumento nas contaminações. foram milhares de brasileiros se aglomerando em eventos e festas clandestinas. errado? sim. e o que a bicha branca faz? ela faz igual.

Gaytanic

questionada, a bicha branca aglomeradora se defende em grupos de whatsapp: “meus amigos tão bem pelo menos”. e também se previne (e se vitimiza): “em duas semanas, os inquisidores vão esquecer, só precisamos evitar sair no @brasilfedecovid. tudo ao melhor estilo Carlinhos Maia, que justificou sua festa bombástica de natal dizendo: “é errado, mas fiz”.

o pacto da bicha branca não é simples de entender. nem toda bicha branca é igual. mas a verdade é que, parafraseando @lorelay_fox, tem muita coisa que é típica de bicha branca que toda bicha branca deveria parar pra pensar se ela não tá sendo bicha branca demais.

a bicha branca faz muito post e textão — se diz antirracista, antimachista, diversa. afinal ela sabe como é se sentir minoria em um mundo heteronormativo. mas na balada ou viagem de fim de ano, ela se reúne com outras 20 ou 100 bichas brancas absolutamente iguais. a bicha preta, gorda, afeminada, trans, pobre, baixinha e peluda demais pode até ser fofa, engraçada e empoderada — só não é “o meu tipo, blza?”

a diferença e a alteridade não cabem no espectro libidinal da gay padrão. só cabe a mesmidade de quem for parecido com ela ou com uma versão idealizada dela mesma. quem for ainda mais popular, mais musculosa, mais rica e, obviamente, mais harmonizada. ou seja, em perfeita harmonia com todas as outras.

a bicha branca sofre de um caso crônico de Eu Anabolizado, um loop contínuo de “eu me basto, porque sou o meu melhor update”. para ela, não falta nada e falta tudo. afinal, ela sempre quer e merece mais.

ela pode até disfarçar a intoxicação por positividade com um discurso de vulnerabilidade, mas o Eu Anabolizado é como um quarto espelhado cujas paredes vão se fechando até que não cabe mais ninguém ali, só ela. e quanto mais altas as muralhas, mais alienada ela fica.

por fim, o lugar da bicha branca acaba sendo solitário e opressor para ela mesma. uma prisão pautada pela perfeição narcísica, em que só entra aquilo que potencializa e exalta o seu frágil Eu — como se esse Eu ainda estivesse preso no lugar regredido de filho perfeito da mamãe.

Hélio Pellegrino, em Édipo e Liberdade, lembra que:

“a perdição de Narciso reside em querer possuir sua imagem, agarrá-la, fundir-se a ela, para restaurar a primitiva unidade onipotente com a mãe. Narciso acaba escravizado à imagem do eu ideal por quem se apaixona e, no seu afã de encarná-lo, se destrói. o impasse letal de Narciso é (…) querer preencher-se consigo próprio, repelindo a abertura ao Outro.”

ok, o narcisismo faz parte da realidade psíquica de qualquer sujeito. inclusive, está muito bem aflorado entre os pais heterossexuais que tem aquele orgulho imensurável de ter dado vida a alguém que é “a sua cara”. mas considerando que a bicha branca raramente procria, é comum que a ela recorra à reprodução e idealização de cópias dela mesma no seu grupo social.

são muitas versões dela mesma que validam o seu próprio ego em uma batalha de diferenças que são mínimas, mas que incomodam muito. aquela tá mais magra. aquela mostrou mais o corpo. tá mais jovem. transou mais. causou mais. aguentou mais o fervo. parece estar se divertindo mais do que eu. então, eu é que não vou ficar em casa se todas vão estar aglomerando. a sua réplica é de que os críticos “são invejosos que na verdade também queriam estar aqui, mas não se permitiram”.

não se trata de entrar em um julgamento moral sobre a capacidade e o talento da bicha branca em conseguir se divertir de forma tão (aparentemente) livre, mesmo em meio a uma pandemia. como provoca o perfil @gaysovercovid, ela às vezes acha que está acima da pandemia. afinal, ela tem uma autoestima invejável. ela se embeleza e se enaltece a cada passo que dá, em cada coreografia do TikTok, por mais infantilizada que isso a torne. o problema é quando tudo isso é feito a qualquer custo, inclusive excluindo e prejudicando quem não se enquadra na dança. é aí que está o seu principal ponto cego: a falta do reconhecimento dos seus privilégios. homens brancos, lembra? eles “podem tudo”, sejam bichas ou não.

em uma de suas célebres análises, o educador e filósofo Paulo Freire sintetizou a importância da educação, afirmando que quando ela “não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. a bicha branca é ambos: como homem branco, hétero e cisgênero, tende a passar por cima de tudo sem pedir licença; costuma falar de tudo o tempo todo, antes mesmo que lhe perguntem qualquer coisa.

o pacto narcísico da bicha branca é sapatear no fio da navalha entre ser opressor e oprimido. é narcísico ao ponto de não escolher lados, mas ser ambos. é ligeiramente perverso por fazer uma conta distorcida e equivocada em que sofrer a opressão da LGBTfobia “neutraliza” o privilégio de ser um homem cis branco.

nesse abuso do poder conquistado no meio heteronormativo, a bicha branca torna-se míope para as próprias agressões, percebendo a si mesma como imune e ilesa, autorizada a livrar-se dos danos causados por seus discursos e posturas opressoras. até mesmo as mais militudas. é fácil reproduz o movimento colonizador e predatório de suas origens; como, por exemplo, invadir uma ilha com sistema de saúde precário para realizar a sua tradicional celebração de fim de ano.

vale lembrar que, historicamente, o homem gay tem uma relação problemática com as demais letras da comunidade LGBTQIA+. os bares gays por muito tempo repudiaram a presença de pessoas trans. há o apagamento da comunidade lésbica nos meios de produção cultural; a normatização de corpos brancos fortes e sarados em detrimento de corpos negros ou fora desse padrão. a insistência em dividir seus crushes em “cara de príncipe” e “estragados”. como muito bem resumiu a @sapataoamiga, “a principal dificuldade de avançarmos nesse debate é a resistência da própria comunidade branca LGBTQIAP+ que vive em negação para perceber e debater o racismo que acontece”.

sim, nem toda bicha é assim. e nem todo branco age dessa forma. no entanto, essa generalização nos serve para entendermos arquétipos que podem e devem ser evitados. é, sobretudo, um convite inspirado no olhar da artista e psicóloga @grada.kilomba de entendermos que “branco não é uma cor, é uma definição política que representa históricos privilégios sociais e políticos”. é passarmos do estágio de negação “eu não sou bicha branca” para o questionamento de desconstrução “como posso desintegrar a branquice em mim?” afinal, como as identidades gays podem ser menos inconsequentes e menos opressoras com LGBTQIA+ e com a sociedade como um todo?

* nota dos autores: como era de se esperar, os autores desse texto são duas bichas brancas que estão tentando colocar a mão na própria consciência e despertar uma postura individual e coletiva que seja menos tóxica, mais autocrítica e acima de tudo, menos praticante de branquices. para nós, uma coisa fica evidente: a bicha branca podia descobrir como lidar melhor com o outro, com a sua comunidade e com a sua própria castração.

--

--