VIGILÂNCIA RESSENTIDA
é impossível ficar 5 minutos online sem ver alguma coisa que desperta indignação. e lá vem os comentários de ódio e os shares ácidos cheios de indiretas que nem dá pra entender pra quem são: “tomara que estejam felizes”, “tem gente que…”, “só esperando os (apelido cáustico para um grupo) se manifestarem”.
Vigilância Ressentida é o sintoma de uma cultura movida por indignações — uma sensação constante de que somos injustiçados e abandonados à própria sorte e de que a culpa é de alguém que jamais poderemos perdoar. ao mesmo tempo que somos vigilantes, somos justiceiros dispostos a lutar com posts furiosos em um feed de mágoas.
sim, hoje testemunhamos mais situações absurdas do que somos capazes de absorver. você até exprime revolta, mas continua se sentindo indefeso.
por mais forte que seja sua performance de indignação, você continua sem saber direito o que fazer. viver revoltado é como tentar matar a sede de retaliação com um refrigerante — você bebe algo que não sabe bem o que é, continua com sede e ainda quer mais um gole. 🥤
uma breve arqueologia dos memes nos ajuda a entender algumas viradas que nos trouxeram até aqui. há 10 anos, uma legião de fãs do Restart ficou enfurecida porque a banda não compareceu a uma tão esperada tarde de autógrafos. alguns dos fãs decepcionados resumiram sua indignação em frases hiperbólicas que fazem parte do tecido cultural da internet brasileira até hoje: “puta falta de sacanagem” e “vou xingar no twitter hoje, muito”.
#VoXingaMtNoTwitter talvez seja um dos grandes significantes desse mecanismo de tentar resolver as injustiças do mundo com emojis e queixas online. é a prova de uma rede movida a reclamações, como se a internet fosse um grande SAC do mundo. o problema é que quando confundimos barulho online com transformações reais, fazemos um pacto com a ideia de que a performance substitui a ação. e ninguém mais se escuta.
como explica a psicanalista Maria Rita Kehl no excelente livro Ressentimento, “ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. O ressentimento também expressa a recusa do sujeito em sair da dependência: ele prefere ser ‘protegido’ — ainda que prejudicado (…) O ressentido é sempre vítima, lesado, prejudicado.”
como hamsters em uma roda de injustiças, seguimos correndo em busca de mais decepções, presos em um sistema que nós mesmos ajudamos a alimentar. o ressentimento nos faz esquecer que devemos fazer alguma coisa além de esbravejar e que teremos de provocar transformações com nossas próprias mãos. no lugar de sempre responsabilizar o outro por todo o mal, cabe a pergunta: o que é que EU posso fazer a respeito disso?