Flor de Sal — Memórias de um Hedonista — Livro I — Capítulo 11
A VIAGEM
Tirei meu passaporte. Nunca pensei na necessidade desse documento. Nem sei, ao certo, o porquê eu tirei essa merda, mas tirei.
Minha vida está, novamente, mais para guardar o almoço e comer no jantar, mas tirei o tal do passaporte.
E quer saber?
Foda-se!
O futuro vai me mostrar se eu sou um visionário ou um otimista napoleônico de merda, como todos os sagitarianos.
“Nunca enxerguei muito claro em mim, mas sempre segui, no instinto, uma estrela invisível”, Albert Camus.
Para Santo Agostinho: “O mundo inteiro é um livro e aqueles que não viajam leem apenas uma página”.
Dados girando…
E quando a minha sorte finalmente virar, eu já estarei todo paramentado.
Quando, pois eu não tenho a menor dúvida de que a vida é feita de altos e baixos (só acho que faltou luz na minha vez na minha roda gigante, e eu estou por muito tempo por baixo, mas tudo bem).
Hoje na merda, amanhã em Paris, quem vai saber?
É esta a beleza da vida: o imponderável.
Se eu não acreditar na (mais ínfima, que seja) possibilidade, se eu não tiver fé no direito da vida de me surpreender; é melhor eu nem me levantar da cama.
Sou uma Poliana quando se trata de dar crédito à vida.
Preciso acreditar que tudo pode — e vai — melhorar.
O problema é perceber que quando tudo está bom, ainda assim existe uma certa dualidade pairando no ar.
Se está bem, tudo também pode piorar.
A dualidade é a melhor propriedade da vida.
A dualidade fundamental está em toda parte.
Na luz e na escuridão, no movimento e no repouso, no macho e na fêmea, no fogo e na água, na tempestade e na bonança, como se diz.
O importante é que quando a sorte virar, eu já estou dentro: tirei meu passaporte.
Nunca pensei em tirar essa merda, mas o Brasil está mudando e o mundo também.
Já vivi o suficiente para acompanhar as grandes mudanças econômicas do Brasil, diversos governos e moedas; da superinflação ao BRICS.
E cá estamos nós.
Já somos do primeiro mundo em, quase, tudo.
Ser brasileiro está na moda.
Vem aí grandes os eventos internacionais.
Espero que sorte, quando chegar, demore tempo bastante para eu carimbar muitas páginas do meu passaporte, ainda virgem.
Quem sabe poderei, ainda nesta vida, ver o mundo?
Eu conhecendo outros países, já pensou?
Morar em Santa Teresa foi um pouco isso.
No verão eu me sentia em uma reunião da ONU, com a presença de turistas de todo o mundo.
Mas, agora só quero ver o mundo in loco.
Chega desse complexo vira-latas.
É isso!
Estou em um momento de descobrir o mundo, de ver com meus próprios olhos outras culturas, relevos, climas.
Estou com fome de viver o novo.
E como uma fênix, preciso renascer de mim mesmo, de minha combustão Shiva.
Estou cansado de ser provinciano.
Cansado do conforto do meu mundinho conhecido.
Quero e preciso ampliar meus horizontes.
E este é um momento definitivo.
Estou na metade da vida.
Tenho mais passado do que futuro, agora.
Preciso ver o mundo.
Tirar o passaporte representa exatamente isso: conhecer o mundo.
Foda-se se não tenho grana (neste momento) nem para tomar um café expresso.
Foda-se se na geladeira parece um aquário (aliás, qual geladeira?).
Estou fodido, duro como um coco, mas sei que sou um ponto fora da curva nas estatísticas do Brasil do Lula.
E isso é muito por minha culpa.
Por ser quem eu sou.
Por eu não me adequar às expectativas capitalistas.
Mas, tudo bem.
Preciso materializar este meu momento ‘ver o mundo’ de alguma forma.
E esse documento estranho, impresso em preciosas folhas de papel moeda, me fala do imponderável, do futuro (bem próximo, espero).
Este documento não fala do meu passado nem do meu presente (presente?, putz, que merda).
Já estou com saudades de quem eu me tornarei.
E quando tudo mudar, não olharei mais olhar para trás.
Revirar o lixo de minha vida não vai me interessar mais em nada.
Esta será a última vez, aproveite!
Vai me dar sorte esse tal de passaporte, você vai ver.
Vai saber se quando ela bater em minha porta a Polícia Federal esteja em greve, já pensou?
Preciso ser precavido, você não acha?
Adiantar-me aos fatos da vida?
Preparar todos os documentos é condição sine quo non para seguir em frente.
Depois vou tomar todas as vacinas.
Quem sabe a sorte não me queira na África?
Sorte sem fronteiras, já pensou?
Hein?, Que tal?
Porque se eu for focar na minha brutal realidade atual, vou entrar em depressão.
Aí fodeu.
Aí não há saída.
Pois a saída é sempre o delírio, o sonho, o pensamento positivo, a arte…
“A arte existe porque a vida não basta.”, diria o poeta Ferreira Gullar.
Sem arte a realidade me afunda em seu balde de merda.
As coisas estão tão pretas que minha gata gorda está de dieta (antes assim, ela estava com obesidade mórbida mesmo). Isso não é um bom presságio. Gatos nunca comem a ração do pote até o final, são precavidos. Então, o certo a fazer é colocar bem pouco, só para ela ouvir o barulho da ração caindo em seu pote, enganá-la para ela não devorar toda a (caríssima) ração. Mas, eu converso com ela. Aviso que as vacas (ainda) se encontram magras, mas por pouco tempo. Digo a ela que amanhã será outro dia e ‘cada dia com a sua agonia”. Repito pra ela que tudo faz parte de um ‘efeito sanfona’ do destino.
Já sinto os ventos da mudança.
Como cantava Cazuza?
“Mas se você achar que eu estou derrotado, saiba que ainda estão girando os dados…”.
Mas, porque estou falando tudo isso?
Deu um pânico, agora.
A vida vai melhorar, não vai?
Enquanto isso a gente se embriaga.
Mas, uma coisa é certa, ninguém verá fotos de minhas viagens nas redes sociais beijando simpáticos golfinhos trincados, em aquários gigantes pelo mundo, nem ao lado de leões dopados, em zoológicos argentinos.
Disso você pode ter certeza.
Recalque?
É, pode ser…
— Emídio, traz um Free Box e uma gelada, por favor.