Flor de Sal — Memórias de um Hedonista — Livro I — Capítulo 13
AO MESTRE COM CARINHO
Eu estava em meio ao retorno de Saturno, mas não sabia.Nem ao menos eu entendia o que isso significava. Eu não poderia imaginar que a partir desse período a minha vida daria cambalhotas.
Ao me separar, deixei tudo para trás: apartamento, roupas, móveis, filho, paz, alma, coração. Depois de levar a primeira rasteira da vida, senti que eu precisava de musculatura emocional. Eu precisava me aperfeiçoar na mais nobre arte que é viver. Desconstruir tudo o que eu julgava saber sobre a vida, e só depois reconstruir minhas certezas, era o que eu precisava. E para tanto, era-me necessário recomeçar do zero. Reaprender totalmente a arte de viver.
Definitivamente eu não estava preparado para viver as fortes emoções que a vida adulta e o amor me reservavam. Então só me restava focar nas atribulações de um trabalho do qual eu não gostava. Burocrático, rotineiro, chato.
Ao menos eu estava solteiro novamente. Não precisava mais me justificar para quem quer que fosse, nem fingir ser alguém que eu não era. Não mais. Ao menos na minha vida particular eu era livre. Para alguém que desejava viver a base da tentativa e do erro, essa era a melhor configuração de equipe que eu poderia desejar.
Agora eu e Andressa só nos encontrávamos pontualmente. E para tratar somente de assuntos inadiáveis à continuidade da vida de nosso filho: pensão, creche, visitas, remédios…
Eu sabia que nem ela nem eu, jamais esqueceríamos o que havia acontecido naquela fatídica madrugada de outubro de um ano qualquer. Mas, nunca mais tocaríamos nesse assunto. Era como se tivéssemos feito um pacto velado de não mexer naquela ferida aberta com cheiro de merda humana recente, nem para limpá-la ou suturá-la. Essa era uma ferida que não sarava, não cicatrizava. Eternamente exposta e purulenta.
Mas, à revelia do meu sofrimento, a vida insistia em seguir o seu rumo. É impressionante como, irritantemente, a vida insiste sempre em seguir seu rumo, independente de como nos sentimos.
Foi então que entrei em depressão. A primeira de muitas. Fiquei em um luto emocional profundo. Por muito tempo. Mais tempo do que eu gostaria e muito menos do que eu deveria.
Eu me culpava por ter ido embora de casa, após aquela fatídica madrugada de outubro sem trocar uma só palavra com Andressa. Sem olhar para trás. Sem tentar nenhuma desculpa, retratação… nada. Eu havia apenas fugido, deslavadamente.
A essa altura, não me importava mais saber com quem es- tava a razão. Eu só precisava recomeçar. E do zero. Eu havia entendido que estava tudo errado em minha curta trajetória de vida adulta. Felizmente, a própria vida parecia ter desarticula- do o meu erro.
O nada é sempre um ótimo lugar para se recomeçar. Agora eu só precisava me desapegar de tudo e continuar seguindo em frente. Esse era o grande conselho de Saturno, o carma: “siga sempre em frente.”.
Foi neste contexto que conheci Fabiano. Eu não sabia ainda, mas ele seria o meu mestre, o meu coach, o meu mentor dos porões da alma humana. O melhor que eu poderia desejar — ou que a vida poderia me apresentar. Ao menos através de seu exemplo negativo, eu saberia o que não fazer de minha vida, saberia com quem não me parecer. Mas, o mal é sempre o caminho mais sedutor. Fácil e rápido.
Fabiano estudou nos melhores colégios do Brasil e do mundo afora, era filho único de uma família adventista, religião a qual ele fora apresentado ainda no berço e seguiu até que, segundo ele, uma de suas mulheres o forçou a transar em uma cama preparada magicamente com pétalas de rosas vermelhas, biscoitos fandangos e champanhe rosé. Fabiano contava essa lenda em tom de chacota, como quem se justificasse por se desviar do caminho de Deus.
Fabiano havia estudado para ser pastor, antes de rebelar-se contra a sua igreja e a sua própria família. Aos dezoito anos, perdeu-se na Babilônia, como gostava de contar dramaticamente. E a partir daí, seguiu uma vida profana de anjo caído do céu. E passou a subverter ‘A Palavra’.
Fabiano era gerente nacional de recursos humanos da empresa de seguros-saúde em que eu trabalhava. Ele era um homem inteligente, poderoso, falava diversas línguas, havia feito pós-graduação e MBA em administração hospitalar. Sabia a Bíblia de cor e salteado, de trás para frente. Declamava ‘A Palavra’ brilhante- mente, citando os números dos capítulos e dos versículos do livro sagrado sempre nos momentos mais inesperados. Como um anjo negro, subvertia as passagens bíblicas a seu bel prazer, usando-as para convencer a quem quer que fosse a fazer o que ele bem entendesse — o que, via de regra, não eram coisas de Deus. Ele era um Steve Jobs do mal, com seu campo de distorção da realidade impossível de se resistir. Fabiano hipnotizava o seu interlocutor de forma extremamente sedutora. Mas, na realidade, talvez, fosse apenas a emanação do seu poder e de seu sucesso que ofuscasse as pessoas. Afinal, como diria Foucault: “O poder é amável. Se ele fosse só repressivo, precisaríamos admitir ou o masoquismo do sujeito (o que é, afinal, o mesmo) ou a interiorização do inter- dito. É aí que ele adere ao poder.”.
Entrei esbaforido na sala de Fabiano para pedir um empréstimo à empresa. Eu precisava resgatar, ao menos, minha vida mate- rial, após a separação. A minha alma eu teria mesmo que deixar para trás. Ninguém poderia me ajudar nessa questão. Ao entrar na sala chorando como uma criança de quatro anos, Fabiano me olhou da cabeça aos pés e sorriu melifluamente como se tives- se achado afinal o raro exemplar humano que sempre buscou. Pediu à secretária café e água para nós dois enquanto ele falava sobre frivolidades. Só depois de resgatada, ao menos parcial- mente, minha dignidade, Fabiano se propôs a ouvir os meus infernos íntimos.
E ao começar a contar-lhe a minha história, Fabiano gargalhou-se virando, totalmente, sua cabeça para trás, como se o meu problema fosse o menor de todos os que já ouvira como gerente de recursos humanos daquela grande empresa. Diante de meu, recorrente e compulsivo choramingo, colocou o blazer e pediu para que eu o acompanhasse. Como se eu não parasse de chorar, ele me disse ao ouvido em um tom extremamente jocoso e sádico: “É assim mesmo. No começo dói muito, mas de- pois piora”.
Fabiano pediu para sua secretária desmarcar todos os seus compromissos daquela tarde, sob a desculpa de que estava de saída para uma inesperada e urgente reunião. Pediu também que ela avisasse ao meu superior — subordinado de Fabiano–, que minha presença era imprescindível em uma reunião de última hora.
Eu fiquei confuso e só me dei conta do teatro mágico a que Fabiano estava prestes a me apresentar, quando uma mulher loira e de biquine fio dental, perguntou-me se eu gostaria de ‘subir’ para relaxar um pouco. Estávamos nas Termas Rio Antigo.
Fabiano me olhava, de roupão, tomando um uísque, saboreando um charuto, fazendo as unhas, enquanto cortavam seus cabelos grisalhos. Foi o primeiro de muitos porres. Chafurdamos nos prazeres mundanos durante toda aquela tarde e noite. “Tudo por conta da empresa, verba de representação. Aproveite.” — falou-me com seu charme perverso.
Entre um uísque e outro, Fabiano afirmava que eu era muito jovem para entender que as mulheres se resumiam à putas. E que se subdividiam entre profissionais e amadoras. Dizia ele que eu precisava de um tratamento de choque de realidade. “Nada como esse lugar sórdido para você começar a crescer e perceber a vida por um novo ângulo.”, pontuou.
Fabiano mostrou-se insensível ao meu problema. E era exatamente isso o que eu precisava. Eu precisava de uma certa dose de indiferença para me lembrar de que meu problema não era maior do que os contratempos da vida de ninguém.
Era fato que eu não precisava de piedade. A minha autopiedade já me bastava. Eu precisava de experiência de vida, de casca, de musculatura emocional. Eu precisava mesmo era de realidade.
Eu precisava envelhecer. Urgentemente.
Fabiano era meu duplo invertido perfeito. Naquela primeira
noite, eu já me perguntava o porquê de meu fascínio por ele. E me lembrei do que disse Sartre quando foi perguntado sobre o seu profundo interesse em Flaubert a ponto de dedicar-lhe anos escrevendo a sua biografia: “Porque ele é o oposto do que eu sou. Temos a necessidade de nos confrontar com o que nos contesta”.
Bonito, grisalho, atlético, gentil, inteligente, elegante, bem sucedido e sofisticado; aos poucos fui entrando no mundo de Fabiano, absorvendo sua vasta cultura, sua aura de sucesso e de sofisticação. Aprendi a comer em bons restaurantes, com os mais diversos talheres e taças, a escolher bons vinhos e harmonizá-los com a comida. Desenvolvi, aos poucos, uma personalidade envolvente e sedutora espelhada na imagem do meu mestre soturno. Mas, como dizia Aristóteles: “Em todas as coisas, contra o que mais devemos nos precaver é o prazer e o que é agradável, pois não podemos julgá-los com imparcialidade.”.
Durante um longo período Fabiano me protegeu de sua loucura. Acho que por mais ou menos três anos ele me escondeu o que acontecia no submundo de sua alma. Omitiu a origem de sua alegria constante e insana, a fonte de seu poder de sedução incontestável e de sua eterna disposição para os problemas do seu dia a dia e de outrem. Em todo esse tempo, cresceu em mim uma grande admiração e uma espécie de síndrome de Estocolmo. Eu estava perdidamente apaixonado pelo meu captor.
Na realidade, eu sentia uma sincera gratidão por Fabiano ter me ensinado a viver. De forma distorcida, a bem da verdade, mas até aí tudo bem. Ao menos ele tinha me dado um escudo, um anteparo contra a minha própria fragilidade. Eu acreditei, por um bom tempo, que sua empatia, impetuosidade e sagacidade eram, apenas, frutos de sua inteligência acima da média.
Um dia ele me apresentou o primeiro de seus muitos mistérios. Apresentou-me a uma de suas fontes inesgotáveis de energia.
Não.
Infelizmente não fui eu quem o desmascarou. Bem que eu gostaria que tivesse sido, mas não foi assim que aconteceu. Eu não tinha mesmo nenhuma perspicácia, malícia ou vivência necessária para desmascará-lo. Eu ainda não conhecia muita coisa sobre a vida, não seria mesmo capaz de penetrar em um personagem tão profundamente sórdido quanto o de Fabiano. Simplesmente eu não conhecia os subterrâneos da alma humana, apesar de já consumir, de forma compulsiva, Dostoiévski, Nelson Rodrigues, Camus, Hesse…
Não.
Devo dizer, para o bem da realidade, que não fui eu quem o confrontou com a sua verdade. Foi ele próprio quem me revelou a sua total fragilidade. Mas, estava claro para mim que havia algo de estranho em sua eterna felicidade. Comecei a perceber que ele não mantinha o equilíbrio emocional por muito tempo. Eu percebia que ele parecia estar sempre na ponta de um precipício, prestes a se jogar. E eu notava sinais contraditórios, nem sempre sutis, de que, um dia, realmente ele se lançaria ao vazio.
Fabiano alternava de humor quando contrariado, não resistia à frustração por muito tempo, acusando logo o golpe. Notei também que sua vida pessoal não era tão perfeita assim quanto ele fazia questão de demonstrar. E como sua vida pessoal pode- ria ser perfeita, se ele não parava em casa?
Até que um dia, no almoço, Fabiano me confessou seu drama. Ao chegarmos a um dos vários restaurantes em que éramos habituées, Fabiano esticou suas duas mãos e me mostrou o quanto tremiam. Questionou-me como eu nunca havia reparado naquele detalhe escandaloso. E só então, como num passe de mágica, revelou-me, sarcasticamente uma de suas doenças: o alcoolismo. Contou-me o porquê de irmos sempre aos mesmos restaurantes. Era como uma cortina de fumaça. Um truque que, segundo ele, era bem simples: “Todos os garçons já me conhecem e são treinados em minha manha, e claro, são muito bem recompensados por sua discrição.”, confessou-me seu truque com um irritante sorriso de canto de boca. E classificou o álcool como sua droga de preferência.
E tudo se tornou um pouco mais claro e óbvio para mim. Veio–me à mente o rosto de todos os garçons dos diversos restaurantes que frequentávamos e constatei que todos faziam a mesma marcação de palco. Todos já conheciam a tal rotina: traziam à mesa um copo longo servido pela metade, na cozinha, e uma garrafa de água mineral também pela metade. Minha inocência era tanta que nunca percebi que no copo já servido — que Fabiano bebia de um só gole, como se estivesse com muita sede –, havia vodca e não água. Tudo bem que vodca não deixa cheiro no hálito, mas uma pessoa menos inocente teria reparado nesse truque simples.
“Okay…”, retruquei tentando esconder meu espanto, “…ninguém é perfeito, não é mesmo?”. Fabiano sentiu um certo desconforto no ar e sorriu amarelo.
Para atenuar a situação, confessei alguns de meus próprios pecadilhos. Contei-lhe que, esporadicamente, eu fumava maconha, e que havia sido ‘aplicado’ na erva por Morena Rosa, minha namorada-casada. Duplo pecado. Achei que isso bastaria para que ficássemos quites. Olhei no fundo de seus olhos como se dissesse: “Tá vendo? Todo mundo tem os seus segredos”. Ele sorriu novamente, dessa vez com mais vontade, chamou o garçom e pediu mais um drinque diretamente, dessa vez sem subterfúgios ou truques.
Fabiano parecia aliviado. A partir daquele momento ele não seria mais corroído pelo auto-engano e pela própria hipocrisia.
Não precisava mais interpretar o personagem do bom moço.
Ao menos para mim. Senti alívio por ele. Por não precisar mais se esconder de mim. Como um ladrão que desejava ser preso, Fabiano havia se deixado capturar. E parecia feliz em ser pego. Não falamos mais sobre o assunto naquele dia, apenas bebemos compulsivamente.
O fato de eu nunca ter percebido nada, era, na verdade, para mim uma grande demonstração da inteligência de Fabiano. Afinal, como dizia Fliegende Blatter: “É mais fácil dez sábios ocultarem a sua sabedoria, do que um ignorante esconder sua ignorância.”. Ou ele era um grande gênio, ou eu um grande idiota. E eu não queria acreditar que a segunda alternativa é que era a mais provável.
Mais tarde eu aprenderia que todos os viciados têm seus truques e artimanhas para disfarçar suas compulsões. Eu mesmo, muito em breve, passaria a tê-los. Era apenas uma questão de tempo.
Fabiano não me contou sua doença em tom de tristeza, ou como um pedido de ajuda, mas sim para tripudiar sobre a minha total ignorância a respeito dos subterrâneos da alma humana. Ele parecia querer me mostrar que ninguém é, exatamente, o que parece ser. Já éramos parceiros de noitadas, mas ele não me permitia, ainda, participar de tudo que se passava, realmente, no porão mais sórdido de sua alma.
Passamos a almoçar juntos todos os dias. Eu era o seu álibi perfeito. Após o expediente, íamos para algum boteco sórdido e bebíamos de forma industrial. Éramos parceiros simbióticos, complementares. Fabiano precisava de alguém que ainda tivesse certos pudores, alguma pureza, e que lhe desse alguma noção, mesmo que distante, de seus contornos humanos. Eu, por minha vez, precisava de alguém kamikaze, que se arriscasse para além de seus próprios limites humanos. Eu precisava de um exemplar humano sem limites físicos, mentais ou financeiros. Precisava de um alter ego que conseguisse ir além do que eu tinha tido a coragem de ir até aquele momento, alguém que chegasse até a borda do precipício e que, de preferência, voltasse.
Talvez, bem no fundo, fôssemos apenas duas almas em busca de um antídoto para a melancolia que nos carcomia, invariavelmente, todos os dias. Sentíamos um vazio enorme dentro de nós que precisava ser preenchido da maneira mais urgente possível: líquida, pastosa ou gasosa. Espelhávamos-nos, um no outro, de forma doentia. Éramos como bombas-relógio programadas para explodir a qualquer momento. Percorríamos diariamente o roteiro do tédio: termas, botecos, restaurantes chiques… consumindo sexo, álcool… e vida.
Eu já o admirava muito. E ao saber de seu segredo, admirei-o mais ainda.
Talvez eu o idolatrasse por conseguir se parecer com a massa amorfa durante oito horas diárias de expediente. Eu o incensava por ser cínico com os cínicos, por superar profissionalmente os burocratas graduados com atitude de bancários. Mesmo com toda a sua loucura e doença, ele era, de fato, superior aos demais.
Seu personagem foi sendo tatuado, em minha alma, como um estigma. O segredo do seu sucesso, dizia ele, era o fato de não perder de vista a sua função social. Louco sim, mas mantendo a produção. O trabalho sujo — mesmo sob o efeito de mui- tos remédios para a alma — tinha que ser feito. “O trabalho é o preço da culpa-judaico-cristã.”, dizia ele.
Era difícil não ser atraído pela aura de glamour de Fabiano. Ele era, de fato, muito inteligente — uma inteligência usada para o mal, a bem da verdade –, além de ser muito bonito fisicamente era bem nascido e um exemplo de sucesso para toda a comunidade.
O tempo foi passando e eu fui percebendo que o seu problema não era apenas o álcool. Descobri que o seu real problema era o mesmo que o meu: o tédio. E isso nos uniu mais ainda. Eu, a princípio, só bebia e fumava maconha, mas entendia a sua fuga do tédio, através da compulsão por várias outras coisas. Mas, Fabiano me mostraria, pouco tempo depois, a escada que levava ao calabouço mais profundo da alma humana.
Devo dizer em defesa de Fabiano, que ele nunca me forçou a nada. Analisando de forma distanciada, com certeza o seu exemplo de sucesso me induziu mais do que eu pudesse perceber, mas diretamente ele nunca me induziu a nada.
Mentira!
Um dia eu havia brigado com Morena Rosa, a minha namorada-casada, por motivos banais para amantes proibidos. Morena Rosa, apesar de ser casada, não admitia que eu tivesse outros relacionamentos. Morena Rosa era extremamente possessiva, manipuladora e ciumenta. Eu não entendia o porquê de seus ciúmes doentios e argumentava que ao menos ela me traía com o seu marido. O que no começo era uma simples chantagem por parte dela, mais tarde tornou-se um sentimento doentio de posse. Caminhávamos, sem saber, para algo muito mais patológico. Brigávamos muito, e em uma de nossas muitas brigas, fui ao encontro de Fabiano para desanuviar. Eu não sabia, ainda, mas Netuno em meu mapa astral estava negativo.
Fabiano estava no sindicato do chope do Leme me esperando. Meio melancólico, cometi o erro de contar-lhe o ocorrido com Morena Rosa. Em tom de confidência, eu disse a ele que a amava e coisa e tal. Fabiano deu uma de suas gargalhadas sardônicas e me relembrou sua regra básica: “Todas as mulheres são putas. Ademais…”, continuou ele, “…esse ‘papo careca’ de namorada-casada é um contrassenso, um desserviço para toda a sociedade constituída”.
Fabiano fez uma pausa intelectual para que eu absorvesse bem o golpe de sua repreensão, pediu um Domecq para mim e outro para ele, e me passou, discretamente, um pequeno saco plástico com um pó branco, junto com um canudo fixo, feito com uma nota de cem dólares. “Experimente isso e sairá rapidinho desse ‘bode’”, disse ele. Eu olhei, entre lágrimas, aquele saquinho com o tal pó branco, sem maldade alguma. Resmunguei que eu não estava com pressão baixa, bêbado, ou coisa que o valha. Disse-lhe que eu não precisava de sal de cozinha, bicarbonato de sódio ou sal de frutas. Porém Fabiano sorriu diabolicamente e me deu instruções claras e simples. Não havia o que errar, segundo ele. Eu só precisava inalar aquele pó branco diretamente do saco com o canudo fixo feito com cem dólares, ali mesmo, discretamente, na mesa ou no banheiro do bar. Após fazer isso, me afirmou ele, tudo em minha vida mudaria.
Pouco tempo depois, voltando do banheiro, eu já me sentia o dono do mundo. Desdenhava de minha briga com Morena Rosa: “Namorada-casada? Isso é mesmo um contrassenso. Não faz nenhum sentido. Ninguém pode namorar uma mulher casada. Hahaha…”, retruquei com uma autoridade que não era minha. E bebi de um só gole a minha dose de Domecq e a de Fabiano.
O fato é que aquele pó mágico não era sal, açúcar ou farinha. Era a mal afamada cocaína.