Flor de Sal — Memórias de um Hedonista — Livro I — Capítulo 2
O ÓCIO CRIATIVO
Sempre tive certo receito do sucesso. Confesso. Como diria o mestre Fernando Pessoa “Nunca tive dinheiro para poder ter tédio à vontade.”. O sucesso — diferente do fracasso, que é libertador — nos escraviza para sempre com suas algemas de grifes famosas banhadas a ouro. Ficamos reféns de nós mesmos quando o sucesso nos visita. O sucesso pode ser fatal intelectualmente, moralmente, fisicamente... em todos os sentidos. E o pior… se algum dia você for (realmente) um sucesso existirá uma legião de pessoas que dependerá de que você se lembre disso todos os dias. Você se tornará escravo do seu próprio sucesso. É uma maldição. Você poderá até (um dia) pensar em largar tudo, mas seu entourage não o deixará desistir do seu (merecido) sucesso. Você será refém daquilo (que você um dia já você arriscou fazer e que deu certo), por muito tempo… quiçá, pelo resto de sua vida. Quer dizer, você está fadado a ser uma cópia de si mesmo. Pior, ser uma cópia (ruim) de um momento de sua vida (aquele que deu certo um dia). Se tiver sorte, conseguirá seguir sendo um fantoche, uma caricatura, de si mesmo, até o fim de seus dias.
Se tiver sorte.
Já o fracasso?
Ah, o belo e doce fracasso.
Esse lado da moeda é lindo.
É uma faceta linda de nós mesmos, porque nos humaniza, nos dá musculatura emocional, experiência, autoconhecimento… o fracasso é o melhor professor de todos os tempos. Devemos fracassar muitas vezes antes de alcançarmos o sucesso, para que o olimpo não escorregue de nossas mãos feito grãos de areia.
Alguns poderão até dizer que isso é discurso de perdedor.
É, pode ser…
Mas, é fato que o sucesso nos deixa, um tanto quanto, indulgentes.
Geralmente o pobre quando começa a ganhar algum dinheiro, engorda… já reparou? Parece que aquele “filho de uma égua” daquele pobre de espírito, mas com dinheiro no bolso, come todo o dinheiro que ganha. Conheço pessoas que chegaram aos três dígitos na balança junto com a progressão geométrica de sua conta bancária. O problema aqui é claramente de autoindulgência. Os novos ricos se acham merecedores de alguma compensação na vida. Afinal, eles são um sucesso. Só que seguindo por esse caminho, os novos e abençoados ricos não viverão muito para desfrutarem do que conquistaram. A autoindulgência os leva aos vícios mais sórdidos (opa, quem sou eu para falar disso, não é mesmo? mas eu vou falar assim mesmo)... quase todos os fodidos que ganharam algum dinheiro na vida, acham que merecem um prêmio extra por tirarem o pescoço da merda — como se o fato em si já não fosse a sorte grande — e se entregam aos prazeres mundanos mais degradantes para as almas encarnadas, as que negam os limites auto-impostos pelo livre-arbítrio. Essas pobres almas logo após ganharem algum dinheiro já desejam ostentar o fato de ser o preferido da sorte: comem demais, bebem demais, fumam inveteradamente, ficam promíscuos, revelam-se pedófilos ou passam a correr atrás dos travestis da rua Augusto Severo, sem coragem de assumir sua homossexualidade enrustida… procuram os travestis para serem passivos, enquanto suas esposas os aguardam em suas belas casas na Barra da Tijuca, entupidas de botox e silicone. Quase sempre, esses maridos novos-ricos, traem e abandonam as mesmas mulheres que comeram com eles o pão amassado pelo capiroto, no início de suas trajetórias ‘afortunadas’.
“A ignorância degrada os homens somente quando se encontra associada à riqueza. O pobre é sujeitado por sua pobreza e necessidade; nesse caso, os trabalhos substituem o saber e ocupam o pensamento. Em contrapartida, os ricos que são ignorantes, vivem apenas em função de seus prazeres e se assemelham ao gado, como se pode verificar diariamente. Além disso, ainda devem ser repreendidos por não usarem sua riqueza e o seu ócio para aquilo que lhes confira maior valor.”, Schopenhauer.
Enfim, esse parece ser o roteiro do filme “Advogado do Diabo”, não é mesmo?
Refletindo mais um pouco, constato afinal que não tenho medo do sucesso.
O que tenho é medo de mim.
Mas, só importa o fato é que, ao contrário da maioria, preparo-me noite e dia para o fracasso.
Procuro me lapidar ao seu lado para quando vier o tempo de bonança (eu não tenho dúvidas de que tempos melhores estão por vir).
Mas, quero ser bem sucedido em algo que realmente eu queira fazer até o final da vida, sabe?
Vivo à procura de uma vocação, não de dinheiro.
Sucesso pra mim é encontrar o que você veio fazer aqui, na terra.
Afinal, para que estamos aqui neste mundo?
Certamente não foi para comer feito um porco, foder como um jumento ou trabalhar como um burro.
Enquanto eu não encontro algum sentido na vida, vou levando-a como ela se apresenta a mim.
Não, não reclamo do meu destino.
Sei que a vida é dura e o sistema, bruto.
Por isso apenas reflito.
Outra constatação que me parece óbvia (com relação ao fracasso) é a que nos deixa claro que: é a adversidade que desenvolve quem realmente somos.
O fracasso tem lá seus méritos, mesmo.
Veja você que há dias venho tentando adivinhar o que está se passando na tela da minha televisão. Choveu e ventou a semana passada inteira e a antena coletiva deve ter se deslocado. Então só vejo “fantasmas” na tela… mas, tudo bem, minha televisão nunca pegou direito mesmo (só que agora está pegando muito, mas muito, mal e em apenas um canal).
Eu gosto de acreditar que os insights da vida virão em momentos de adversidades como esses, fruto da mais absoluta ausência de opções.
Acredito cegamente que essa é uma das maneiras de Deus trabalhar — Deus não, né? desculpa mas, estou cada dia mais convencido de que essa Teoria Geral de Todas as Coisas, de Einstein… realmente exista.
Então, procurar insights, é um exercício ativo de imaginação observar os “fantasmas” da televisão e tentar adivinhar o que está passando por detrás dos chuviscos, como no “Teste de Rorschach”.
Mas, podemos ajudar Deus (ou a uma das variáveis da fórmula de Einstein) ao desenvolvermos uma habilidade nova todos os anos, por exemplo... de preferência no extremo oposto de nossa realidade medíocre.
Desta forma, ampliamos o nosso campo de visão sobre as sutilezas da vida.
— Emídio, mais uma gelada, por favor…
Por falar em adversidades, estou morando em um apartamento de temporada na Princesa Isabel que é uma merda.
A descarga nunca funcionou (desde que eu cheguei) e toda vez que cago, preciso jogar água na privada com uma panela.
A instalação elétrica é fodida, e apesar de ter muitos bocais de luz pela casa, apenas a do corredor funciona.
Isso sem falar no bioma da casa.
São famílias (e mais famílias) de várias gerações de baratas francesas e de aranhas urbanas que coabitam o lugar comigo, pois acredito que a ecologia do lugar (obviamente anterior a mim) deve ser preservada.
Tudo isso, além de uma gata gorda e muito carinhosa que se aninha aos meus pés todos os dias, desde que Amora — uma menina de Belo Horizonte que trabalhou e dividiu apartamento comigo — apareceu com ela lá em casa. Acredito que Amora passou por mim só para me dar a tal gata obesa de presente (assim como Andressa só entrou na minha vida para me dar Frederico.
Amora me contou que a gata estava em frente a uma casa perto do lugar em que morava, na época, e ela não teve dúvidas, resgatou a nossa gata gorda de seu (suposto) abandono.
Porém, meus instintos me dizem que ela não estava abandonada.
Instinto não, indícios, pois a tal gata é castrada, educada, carinhosa. E têm mais… fica olhando para o nada como se estivesse em busca de suas próprias referências.
Mas, acho que (à essa altura) ela já se acostumou comigo e com a casa.
Sim, porque Amora partiu e não levou a gata.
Tudo, bem… gosto de gatos.
Na verdade, eu já tinha um outro gato que peguei na rua Santo Amaro, ainda filhote, chamado Eike Obama.
Ike partiu, agora só tenho a gata gorda.
Eike preferiu seguir sua vida — e longe de mim o condenar por sua opção de vida— quando passei uma temporada na casa de uma amiga russa no Bairro Peixoto.
Eike preferiu buscar seu rumo e constituir sua própria família.
Tudo bem, não o culpo.
As gatas do Bairro Peixoto são realmente lindas, muito sedutoras e ricas.
Enfim, bem mais interessantes do que eu. Fato!
Mas, como eu dizia, toda essa falta de estrutura trabalha meu corpo, minha mente e a minha imaginação. Não me deixa ficar acomodado diante da vida cotidiana ou entregue ao pseudo-conforto. Eu apenas aceito a adversidade em minha realidade. Não reclamo de nada, nunca. A vida está sempre certa. Além do mais, não há tempo para reclamar. Quem foi mesmo que disse que viver é muito trabalhoso? (talvez tenham dito, perigoso?, bom foda-se) Eu apenas me adéquo à realidade, por mais dura que ela seja, e pronto.
É fato que todo ser humano se acostuma com tudo na vida, seja algo bom ou ruim.
E é aí que está a merda humana.
O ser humano têm que ser um João Gilberto e viver em um apartamento de 120 m2, como ele (tá certo que é no Leblon, mas foca no tamanho).
Nelson Rodrigues mais uma vez estava certo quando dizia: “Eu não acredito no revolucionário (ou no autor) sempre bem alimentado. Eu acho que um passado, uma experiência de fome, sempre é útil na vida”.
Mas, o pior do apartamento em que estou morando é que a campainha toca o dia todo, a qualquer hora. O prédio é misto e não há muito controle na portaria (eu diria nenhum controle) sobre quem entra e quem sai.
E, para piorar, no prédio, funcionam (ou funcionavam, sei lá) alguns desses “centros de lazer”, sabe? O apartamento onde moro, inclusive, já foi uma dessas casas da luz vermelha, se é que você está acompanhando. O fato é que sempre (todos os dias de minha vida, desde que moro naquele ap) batem à minha porta perguntando pelas ‘moças’.
O que me leva a crer que das duas uma:
a) no apartamento em que eu moro funcionava o melhor puteiro da região, que ficou na memória de seus frequentadores até hoje;
b) sua divulgação ainda está nas ruas (ainda até hoje). Eu, pessoalmente, acredito na segunda hipótese. O que não me deixa muito o que fazer para tentar conter esse vazamento da minha intimidade.
Até porque, em Copacabana, existe uma mídia muito funcional que é feita em orelhões.
São filipetas coladas na parte interna dos orelhões com fotos da internet de mulheres nuas lindas e textos de algum redator genial, merecedor de um “Leão de Ouro” em Cannes, do tipo:
- faço ‘Kelvi’ até o final (seja lá o que isso for);
- apertadinha e sem decepções (Oi?);
- Roberta “quase mulher” (porque não colocar logo travesti?);
- use sua imaginação.
Desconfio que devem existir milhares de filipetas como essas com o meu endereço ainda nas ruas, via essa mídia orelhões (quem vai saber?).
Não havia muito o que fazer em relação à essas visitas inesperadas.
Qualquer dia (quando eu estiver de bom humor), eu ainda faço uma enquete com esses mal-encarados que insistem em bater em minha porta, todos os dias de minha vida... eternamente.
O problema é que como já me acostumei com este tipo de engano, nem me preocupo mais em atender a porta.
Antes eu me assustava.
Agora eu cago… literalmente.
A campainha dispara o meu intestino de uma forma estranha.
Mas, um dia eu ainda pergunto (a esses filhos da puta sem mãe), o por quê que eles cismaram que o meu apartamento é um puteiro?…
No início eu me sentia a própria Bruna Surfistinha, no filme homônimo, pois cada vez que eu atendia a porta, eu me deparava com um ser (mais mal-encarado do que o outro) diferente.
E o pior é que todos acham que eu os estou enganando.
Eles ficam olhando para dentro do apartamento como se eu escondesse todas as meninas dentro de um armário.
No final do ano passado, bateu um caboclo lá em casa (com cara de quem tinha cheirado umas vinte carreiras) com uma garrafa de Black Label debaixo do braço, que balançava mais do que navio.
Eu o atendi e o dispensei.
Ele fingia que ia embora e tocava a campainha de novo, desconfiado que fosse algum tipo de pegadinha do malandro.
Fez isso umas cinco vezes.
Imagina?!
Roberto, o rapaz da imobiliária (de tanto que ele vem me cobrar o aluguel em atraso, ficamos amigos) me garantiu que há mais de um ano o puteiro que funcionava em meu apartamento foi desativado.
Ele me contou uma história que seria trágica se não fosse cômica… uma família de turistas domésticos havia acabado de alugar o apartamento por temporada, logo após a desativação do puteiro. Eles tinhas acabado de entrar no apartamento, a campainha logo tocou. Um cara mal-encarado perguntou pelas ‘meninas’ e o novo inquilino respondeu que estava havendo algum engano. Não havia meninas. Mas, o caboclo não se deu por rogado e saiu-se com esta: “E aquelas duas ali?, não estão trabalhando hoje?”, apontando para a mãe e a mulher do cidadão…rapaz… quase deu morte, mas tudo terminou bem, segundo o rapaz da imobiliária.
Assim que eu melhorar de humor, pergunto a quem tocar a minha campainha: “como chegou até o nosso centro de lazer?”.
Desejo saber de onde vem tanto recall, por pura deformação profissional.
Mas, por enquanto, preciso me concentrar em te passar esses apontamentos antes que me cortem a luz ou que eu seja despejado daquela merda de apartamento, por motivos óbvios.
Estou em um dos meus períodos sabáticos.
Faz quase um ano que pedi demissão da agência de publicidade em que eu trabalhava.
Não dava mais, sabe como é?
Eu ia acabar surtando ou fazendo alguma merda.
Já não acredito nas coisas que os carreiristas me vomitam, então é melhor liberar minha vaga para quem ainda acredita.
Estou cada vez menos tolerante, e ao mesmo tempo, sensível.
Talvez por consequência de uma certa impaciência que a maturidade me trouxe.
Cansei-me de tanta merda burocrata.
Mas, acho que não é algo só da idade, não... acredito que sempre fui assim mesmo, mas as drogas e as distrações da vida, tornaram-me um pouco mais tolerante.
Agora não posso contar nem mesmo com essas muletas emocionais.
Elas já não me interessam tanto assim.
Só me restou o cigarro e o álcool como lubrificantes sociais.
Sempre fui um cara diferente.
Diferente, por buscar saber quem eu sou, onde estou e porque nasci neste mundo de meu Deus (ou da teoria de Einstein).
Procuro sempre me deslocar para fora do meu eixo, do meu conforto, do caminho mais fácil, só assim me exploro a fundo em direção ao autoconhecimento.
Mas, sempre paguei preços inflacionados por ser assim, digamos, diferente da massa bovina.
Só fui um funcionário dócil no início da minha carreira, mas isso já faz muito tempo.
Depois chutei o balde, graças a Deus.
E agradeço aos céus por ser deste jeito.
Por causa dessa minha busca, dessa minha curiosidade em saber quem eu sou, tornei-me publicitário. Mandei tudo à merda e caí de cabeça nessa carreira louca. Fui estagiar para ganhar salário mínimo, quando já tinha mais de trinta anos e Frederico já era nascido.
Tendo a mudar tudo em minha vida de quando em quando para enganar o tédio.
Influência de Saturno.
Quando tudo está uma merda, ‘chuto o balde com a merda’ e foda-se.
Quantos baldes de merda a vida tentar me jogar, tantos eu chutarei.
Foda-se.
Baldes emocionais, profissionais, chuto-os todos.
O fato é que quando faço isso, minha vida parece ficar mais animada, saio da linha de conforto de uma vida que já não estava tão confortável assim.
Viver à espera de um ‘salário de merda’ no final do mês, não é exatamente algo confortável.
Ficar aturando pessoas que eu não admiro e que fingem ser sérias, não é nada confortável.
Não quero mais ser adestrado por este tal de ‘mercado’.
Não quero ficar igual à massa amorfa.
Isso dá câncer.
Por outro lado, não posso deixar de pagar as minhas contas — nota mental: não posso me deixar cair nas algemas da racionalidade, não posso me entregar .
Gostaria muito de ser diferente, não é fácil ser quem eu sou.
Gostaria de acreditar naquele monte de merda que o tal mercado tenta me vender, mas não dá mais.
Algumas pessoas acham que eu sou meio louco, excêntrico, fodido metido à besta, pobre orgulhoso.
Tudo bem.
Devo ter um punhado de tudo isso na minha composição… mas, ofato é que não sei ser diferente do que eu sou.
Perdoem-me e não me sigam.
Meu caminho não é mesmo para qualquer um.
“O homem que trabalha somente pelo que recebe não merece ser pago pelo que faz”
Concordo plenamente, Abraham Lincoln.
Para ser quem eu sou é necessário, também, um pouco de sorte.
E como bom filho de Júpiter, conto com a sorte como se fosse matemática pura.
A sorte nunca me abandonou.
Chego próximo do precipício, mas não caio.
Júpiter me resgata e me protege.
Ao menos agora eu tenho a meu favor o conceito do ócio criativo.
Já posso me justificar pelos meus períodos sabáticos, de pura estagnação.
Mas, mantenho-me produtivo mesmo nesses períodos fora do mercado formal. Faço umas músicas, vídeos, escrevo algumas coisas, busco aprender novidades. A merda é que não sou remunerado em minhas buscas pessoais. Mas, o importante para mim é nunca deixar de buscar. Trabalhar para si mesmo, ir ao encontro dos próprios interesses intelectuais é o que vale. Não é porque não estão te pagando, que você não deve buscar. Ao contrário. O mundo de hoje em dia é dos empreendedores. E cabeça de empreendedor é autônoma, pensa por si mesmo e busca a sua própria verdade.
Já tive muitos períodos sabáticos em minha vida, e aprendi a lidar com eles.
Por mais incrível que pareça, foi minha mãe quem me ensinou a lidar com os períodos de estagnação da vida, ela dizia: “O segredo da vida é boiar... quando tudo parece ruim boia e deixa a maré te levar.”, pois perceba que ela já me dizia isso muito antes do Zeca Pagodinho (ou melhor, meu compadre Serginho Meriti) eternizar esta máxima com a música: “Deixa a vida me levar”… boiar quando tudo está ruim na vida é sinônimo de inteligência emocional… sempre dá certo.
O difícil é controlar a ansiedade e a depressão, mas conseguindo isso é batata.
A partir daí, estamos prontos para sermos quem somos predestinados a ser.
Meu primeiro período sabático foi involuntário.
Fui demitido após seis anos trabalhando em uma empresa de seguro saúde que nem existe mais.
Parafraseando Washington Olivetto: “A primeira demissão a gente nunca esquece.”.
Coincidiu com o meu retorno de saturno, então foi mais foda ainda... tudo em que eu acreditava desmoronou bem diante dos meus olhos, tudo ruiu e eu caí em uma inércia involuntária.
Pensando bem, hoje acho que foi mesmo depressão.
Se liga que quando você é manicure ou mecânico, você consegue ganhar dinheiro, mesmo desempregado, fazendo pequenos trabalhos, sabe?
Mas, e quando você é auxiliar administrativo, como é que faz?
Esse período precipitou minha incursão nas drogas.
Ou melhor, para ser politicamente correto: meu laboratório antropólogo e antropofágico nas substâncias psicoativas.
Foi o período mais sombrio de minha vida.
Mas, foi também nesse período que descobri um certo poder de sedução sobre as mulheres, a fase em que refinei minha ‘pegada’, um período em que tive várias amantes e namoradas ao mesmo tempo.
Mas, a mulher de fé era mesmo Morena Rosa.
Ela era uma mulher e tanto, casada, e mesmo assim segurou minha onda naquela fase underground.
Ela ia me visitar levando cestas básicas, além de tentar me reanimar a base de muito sexo.
Mas, depressão e sexo não combinam.
Fato.
Mas, não quero falar dela agora.
Quero focar nos meus períodos sabáticos.
Esse primeiro período durou cerca de dois anos, fiquei na mais completa merda, sem pagar aluguel durante todo esse tempo.
Mas, como diria o poeta Julio Aukay: “O sofrimento fortalece o caráter, as frustrações rejuvenescem as esperanças, a fé restitui o caminho perdido em qualquer lugar e o silêncio é a sabedoria de quem não tem o que falar”.
E por sorte eu tinha um bom advogado.
Gustavo era um amigo de infância e como era advogado, me ajudou a ganhar tempo me defendendo no processo de despejo… ele quase perdeu sua carteira da OAB, mas conseguiu o tempo que eu precisava para sair da depressão e reagir.
O que seria de nós sem bons amigos e bons advogados?
Pois eu tinha os dois encarnados em uma só pessoa.
Minha sorte começou a virar quando Valéria, proprietária do apartamento de baixo e que às vezes fumava maconha comigo, apaixonou-se pelo pedreiro que estava fazendo sua reforma e decidiu comprar o apartamento em que eu morava para ele (comigo dentro e tudo) por um valor irrisório — uma vez que o processo poderia se arrastar indefinidamente — e me fez uma proposta irrecusável para eu sair do apartamento por vontade própria.
É claro que eu aceitei, nem pensei duas vezes (eu não queria prejudicar ninguém, só estava tentando sobreviver. E se estava bom para todas as partes… eu partiria sem problemas).
De lá fui direto para o hotel dos descasados em Santa Teresa, mas essa já é uma outra história.
Aprendi a lidar com meus períodos sabáticos e com a minha própria loucura.
Por exemplo, o exercício físico… segura a minha cabeça.
Eu preciso mover meu corpo para não enlouquecer, preciso me cansar fisicamente, caso contrário a energia fica só na cabeça, sabe?
Uma rotina física não me deixa cair em depressão, nem me entregar ao ócio (no pior sentido da palavra).
Mas, isso não é novidade para ninguém: “Mens sana in corpore sano”.
Aprendi a ser produtivo mesmo no ócio, a exercitar o músculo cerebral.
Aprendi a não me sabotar em períodos assim.
Antigamente eu me enfurnava dentro de casa e não queria ver ninguém… o resultado é que eu definhava física, intelectual e socialmente a olhos vis tos.
Mas, com o tempo, a gente aprende a lidar com nossa própria loucura. É só observar-se para perceber que existem muitas pessoas dentro de nós, e que precisamos lidar com todas as nossas facetas, descobrir como negociar conosco para que nenhum dos nossos “eus” se sinta prejudicado... caso contrário, o desequilíbrio entre Eros e Tanatos nos levará para o buraco... fatalmente.
Este mês a academia já está paga e mês que vem eu me exercito na praia mesmo. Depois de malhar, tomo um shake de whey protein e alguns comprimidos de aminoácidos, quase sempre minha primeira e única refeição (chique isso, não é?), que me ajuda a não me abandonar à depressão em longos períodos de inércia.
Enquanto eu estiver me movendo, estou me curando.
Sou um fodido sim, mas de primeira classe.
Aprendi a jejuar, meditar e a esperar como um Sidarta do Século XXI.
Mas, eu preciso ao menos cuidar de mim mesmo para não adoecer, não apodrecer, não definhar… preciso me lembrar de tomar banho (ao menos uma vez todos os dias), de escovar os meus dentes e de me alimentar, de vez em quando…. têm dias que me lembrar disso tudo não é fácil — quando você não tem uma necessidade social para continuar existindo, você pode simplesmente se entregar…como é o caso, agora.
Bruna, minha namorada atual, só vem amanhã.
É uma pena, mas vou ter que abandoná-la… eu a amo, como nunca amei ninguém mas, até por isso, preciso partir: “O ser humano está em eterna agonia com o seu próprio desejo”, disse Nelson Rodrigues (e sem me conhecer, hein?).
O fato é que as mulheres não suportam o fracasso masculino (não por muito tempo), posso ver em seus olhos.
Mas, será que ela me acha um explorador de mulheres como acham suas amigas?
Provavelmente sim… mas, quer saber?, foda-se.
O único que não pode achar isso sou eu.
Se eu me entregar a esse baixo astral vou acabar patinando de vez na merda.
Eu sou o único que não pode desistir de mim.
Gosto de viver em busca do meu destino.
Sou mesmo diferente da massa amorfa e pago um preço alto por ser assim.
Sou ‘o retrato de um artista quando jovem’ — nem tão jovem assim, e nem tão artista…mas, ainda um retrato–, não tenho tempo para as coisas da vida prática, quando tenho uma missão a cumprir, tenho algo que faz a minha vida valer a pena, e não posso deixar ninguém destruir isso.
Essa é a perspectiva certa de viver, sacou?
Mas, o fato é que ando meio misantropo… nem ligo, envelhecer deve ser assim mesmo.
Outra vantagem desses períodos sabáticos é o descanso do olhar… a reclusão me permite dar uma refrescada no olhar.
É fato que somos bombardeados por milhares de informações visuais o tempo todo em nosso dia a dia, o que nos leva a enxergarmos apenas um borrão… tudo fica igual, pasteurizado, blur... banalizamos a imagem, percebe?, o antídoto?, descansar o olhar de vez em quando... ficar recluso por um tempo ajuda... depois dessa quarentena tudo vai parecer novo, de novo, tudo volta a ser novidade... depois de um tempo recluso, é só sair para eu me sentir como uma criança deslumbrada novamente… é um ótimo exercício, devia experimentar... experimente!, sim, porque levei quase quarenta anos para entender que toda imagem é manipulada, sabe?, quase uma vida inteira para aprender que não existe a perfeição plástica que as revistas masculinas sempre tentaram me vender… durante décadas fui enganado pela ditadura do photoshop (precisei dominá-lo para entender isso, ainda bem que me proponho a aprender algo novo todos os anos… dessa forma, vou desmistificando a vida).
Sou favorável a períodos de descanso da vida.
Não gosto da ideia de existir uma caricatura minha, andando pela rua como um autômato, fingindo ser muito ocupado e importante, dando prioridade a metas e ambições que não são minhas, sendo pago para entregar bem mais do que o seu trabalho (se deixarmos, roubam a nossa alma… ou pior, nós mesmos a entregamos por algumas migalhas: férias, décimo terceiro, planos de saúde), não me vejo representando esta farsa.
Precisamos, de vez em quando, olhar para dentro, para perceber que nossas expectativas e metas mudam com o tempo, constatar que não há garantias em permanecermos sendo aquele que deu certo no passado, precisamos optar todos os dias pelo nosso destino (só assim, mudando, é que conseguimos manter a nossa integridade, até mesmo para optarmos pelas mesmas coisas e darmos valor ao que temos), de outra forma, ficamos à mercê de interesses que não são nossos.
Como o famoso pensador grego Níkos Kazantzákis eu poderia gritar: “Não espero nada. Não temo nada. Sou livre”… mas, esta afirmação seria uma falácia: ninguém é livre!
Agradeço todos os dias à existência de alguém sensível como Domenico De Masi, pois antes dele, eu era apenas um vagabundo, preguiçoso…
— Emídio,… mais uma gelada, por favor…