Flor de Sal — Memórias de um Hedonista — Livro I — Capítulo 5

A SOLIDÃO

Robson Felix
Flor de Sal
5 min readJul 3, 2016

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Gosto muito da solidão. Fato! Considero a solidão realmente um exercício muito producente de autoconhecimento. Gosto da minha companhia, de me ouvir, de me entender, de perceber exatamente o momento em que estou vivendo e de como as coisas estão caminhando em minha vida. E para tanto me é necessário estar sozinho.

Definitivamente eu me habituei à solidão e aprendi a gostar dela. Afinal, já dizia Ibsen, na peça ‘O inimigo do povo’: “O grande homem é o que está mais só”.

Acredito que desde criança eu sou um ser solitário. Minha família, apesar de grande, sempre foi muito dispersa. A diferença de idade nos distanciou de interesses comuns, afastou os irmãos do convívio.

Para piorar, eu ainda sou o caçula. E temporão.

Lembro-me muito bem de meus momentos de solidão na infância. Principalmente no período de luto das relações afetivas. Nesses momentos, consigo me lembrar da criança solitária que eu fui. A que sempre brincava sozinha.

Desde sempre intuí que o comportamento padrão emocionalmente gregário que a sociedade nos impõe é só para vender mais margarinas. Não existe e nunca existirá o ‘viveram felizes para sempre’. Se as histórias infantis que terminam assim continuassem para além dessa frase estúpida, todos os casais da realeza dos contos de fadas iriam parar em divãs ou em varas de família, discutindo a divisão de bens materiais e pensões alimentícias milionárias. Leríamos tristes histórias infantis de princesas com seus acordos pré-nupciais em riste e príncipes broxas, dependentes de ansiolíticos e pílulas azuis.

Mas, não me entenda mal. Não sou assim tão pessimista no que tange às relações afetivas. Estou mais para, como diria o político britânico Harold Wilson: “Um otimista do tipo que leva capa de chuva”.

Acredito sinceramente que o amor sempre vencerá, só me é necessário um tempo para que eu possa negociar o tal amor com minha amiga solidão. É necessário um tempo para nos conciliarmos nos períodos de hiatos emocionais. Um tempo, só meu, para que eu possa voltar a acreditar no amor e para que eu consiga me observar de longe, e perceber a diferença (se é que existe) entre quem eu sou na verdade, quem estou sendo no momento e quem eu serei em um futuro próximo. Um tempo para ajustar minhas rotas no GPS do destino e para compreender as causas da minha (eventual) esquizofrenia, diante da vida. Não fosse o fato de estarmos sempre em mutação. Somos uma obra em aberto. Um projeto eternamente inacabado. Então é sempre necessário viver os lutos afetivos dignamente, de forma frontal, se possível.

Mesmo quando estou em uma relação afetiva confortável, gosto de assegurar o meu direito ao silêncio e a solidão. Preciso ficar só para ler e escrever. Definitivamente sou uma pessoa viciada em letras impressas. Ademais, penso que uma relação só é boa quando existe espaço suficiente (também) para a presença da solidão. “A grande, a perfeita solidão, exige uma companhia ideal”, diria o mestre Nelson Rodrigues.

Nunca devemos prescindir de nós mesmos.

Mentira!

Eu sempre faço isso.

Eu sempre me esqueço de mim quando amo.

Sou um romântico inveterado.

Sempre caio na mesma esparrela emocional: vou doando espaço demais para o outro até que não haja mais ar suficiente para nós três (pois a solidão também precisa respirar).

A solidão é a nossa única biógrafa realmente isenta. Nem os terapeutas sabem tanta coisa sobre nós mesmos, quanto ela. Só da solidão não conseguimos esconder a verdade.

Hoje mesmo, por exemplo, a solidão me olhava com um sorriso nos olhos enquanto, na televisão, sem som, uma pessoa de gravata, sem paletó e de óculos escuros; falava compulsivamente em uma tomada externa. Atrás dessa pessoa havia uma ‘figuração inteligente’, igualmente engravatada — sem paletó e igualmente de óculos escuros — , mãos cruzadas à frente do corpo e fazendo cara de conteúdo.

Precisei de alguns minutos para realizar toda aquela cena em plano americano.

Só quando entrou na tela informações de uma conta corrente e sugestões de valores para depósito, é que me dei conta de que se tratavam de pastores evangélicos.

Tudo bem.

Nada contra.

Afinal o dízimo é algo bíblico, não é mesmo?

Mas a questão era: por que diabos estavam todos de gravata em uma tomada externa em um dia ensolarado como aquele (a ponto de exigir óculos escuros)? Por que aquela imagem captada sob o sol a pino do meio- dia me parecia tão antinatural? Com aquele maçarico de plutônio empapuçando a camisa daquele pelotão de homens engravatados, não é de se estranhar que todos estivessem mesmo de óculos escuros.

Nada fazia sentido naquela cena.

Foi aí que a solidão me surpreendeu analisando a cena e me olhou com um olhar de reprovação por eu estar sempre em busca de sentido em tudo.

E mais uma vez, ela, a solidão, estava com a razão — que merda!

A vida prescinde mesmo de sentido.

Era isso que a solidão sempre tentou me ensinar, atinei naquele exato momento.

Acredito, cada vez mais, que toda relação que morre carece de um luto profundo, um tempo respeitosamente doloroso para curar as feridas internas e consertar as asas da paixão. Sem esse tempo, corremos o risco de repetir os mesmos padrões emocionais equivocados das relações anteriores nas futuras. Esse é um perigo muito mais comum do que imaginamos. Mesmo com um período de luto digno, corremos o risco da repetição de alguma sabotagem emocional. Os padrões emocionais estão muito arraigados em nós. Por isso é sempre interessante digerir nossas perdas de forma digna, direta, frontal, brutal (se for o caso), porém sincera. São nas perdas que nos tornamos novamente flexíveis, humildes, falíveis e humanos.

Mas, aceitar perdas é um processo dolorido, lento e, de fato, muito solitário.

Até por isso, um período de luto se faz necessário para que possamos nos perdoar pelos erros que pontuaram as cenas do roteiro de nossa perda.

Normal.

A vida é desapego, diriam os budistas.

Mas, a solidão é mesmo a única amiga de uma vida inteira que preenche as ausências e as lacunas emocionais.

Permanentes ou não.

Na verdade a última e a maior solidão é mesmo a morte. E com ela não devemos nos preocupar, pois alguém já disse que: “A morte é sempre futuro ou passado. Quando presente ela já não é mais”.

– Emídio… mais uma gelada, por favor…

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