Flor de Sal — Memórias de um Hedonista — Livro I — Capítulo 6

O AMOR

Robson Felix
Flor de Sal
11 min readJul 10, 2016

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A esta altura do campeonato você já deve estar se perguntando se sou realmente capaz de amar alguém, certo? E talvez a melhor resposta para essa pergunta seja a que Sidarta, personagem do livro homônimo de Hermann Hesse, deu à prostituta Kamala sua professora nas artes do amor , quando questionado sobre sua incapacidade de amar:

“Pode ser que seja assim. Sou igual a ti. Tampouco sabes amar. De outra forma, nunca serias capaz de fazer do amor uma arte. Possivelmente, criaturas como nós não poderão jamais amar. Os outros homens, por tolos que sejam, têm essa faculdade. Nisso reside seu segredo.”

Mas, felizmente, ou infelizmente, já dizia Matisse que: “Sempre existirão flores para quem quiser vê-las”.

Apaixonei-me algumas vezes, sim. Não muitas, confesso.

Embora eu tenha tido, em números absolutos, uma quantidade grande de mulheres, o fato é que eu me apaixonei menos do que gostaria em toda a minha vida. Na maioria das vezes, meus relacionamentos foram tão superficiais que chegavam a descer à promiscuidade. Infelizmente.

Sem conjecturar sobre a profundidade dos meus relacionamentos, eu amei e amo muito, seja por anos a fio ou por um dia, apenas.

Permita-me aqui algumas citações de um grande mestre e pensador Nelson Rodrigues sobre o tema em questão: “Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”, ou “Todo amor é a história de uma derrota, porque o homem, há milênios ama errado.” ou ainda “ Quem ama traz em si o apelo da morte. É o sonho, uma nostalgia e, numa palavra, a vontade de morrer com o ser amado”.

E veja você que eu não me escondo por detrás de uma carinha de bom moço, não.

Não mesmo.

Eu deixo bem claro, logo de início, quem eu sou para as mulheres com quem eu me relaciono.

E via de regra, todas aceitam o meu estranho jeito de amar.

Talvez até o prefiram.

Descobri, por experiência própria, que a verdade tem uma forma muito peculiar de estimular um relacionamento emocional em qualquer nível. Você ficaria surpreso em ver o quanto o amor pode crescer em um solo sincero. Sem jogos. Sem máscaras.

O desejo, como quase tudo na vida, não suporta a mentira por muito tempo.

Padeço de uma doença emocional mais comum do que se possa imaginar: a síndrome da mulher impossível, cujo principal sintoma é a irresistível atração por mulheres que estão sempre de partida. Talvez isso me dê a liberdade necessária para amar intensamente, quem vai saber? Afinal, é a consciência da morte que nos distingue dos animais, certo?

O estranho é que tenho a sensação de que todas as vezes em que eu me apaixonei foi pela mesma alma ou espírito. Como naquele filme com o Denzel Washington (que não vou lembrar o nome), sabe? Em que ele duelava com o mesmo espírito através de vários corpos. Lembra? Então? Acho que, através da vida, eu me apaixonei pelo mesmo espírito, incorporado nas mais diversas mulheres, quase como uma maldição, numa continuidade das relações anteriores. Um mesmo espírito feminino, em corpos completamente diferentes, já imaginou? Quase como uma transmigração de almas.

De onde eu me encontro, chego a pensar que existam apenas dois ou três tipos de mulheres, ou dois ou três tipos de desejos. Estou delirando, não é mesmo? Então vamos deixar isso quieto… por enquanto.

Já lhe disse que não tenho exatamente um tipo ideal de mulher?

Não?

Então anota aí… pois não tenho mesmo.

Minha única exigência é que a candidata seja inteligente e bem humorada para que ela consiga lidar com a minha maneira peculiar de ver a vida, sem muitos contratempos ou melindres.

Outros pré-requisitos também são necessários às minhas candidatas à amantes, embora secundários. Por exemplo, a mulher — ou a desavisada — que pretenda se relacionar comigo, precisa ser bem resolvida, independente financeiramente e analisada emocionalmente. E aí já entramos no terreno das utopias, diriam os menos otimistas — já que para alguns, não existe mulher bem resolvida. Mas, tenho a sorte de ser um otimista Napoleônico, ao menos no que tange ao amor.

No momento estou sozinho.

Mas, é uma solidão, sem desamor, sabe?

É isso!

É esse o tipo de solidão que eu sinto neste exato momento.

Na ausência de alguém, o sentimento de amor, por si só, já me basta. É da capacidade de amar que é composta uma solidão emocionalmente saudável. Ademais, sempre posso me refugiar em alguma musa inspiradora, em algum amor platônico ou coisa que o valha. Amo a simples possibilidade de me apaixonar, novamente.

Agora, por exemplo, estou envolvido em um amor platônico.

Primeiro foi por sua simples figura, compondo um belo quadro, que minha atenção foi direcionada (então não é assim que o amor acontece?). O simples existir de alguém que é capaz de nos fazer ver a beleza da vida novamente. Ou não estaria o amor na própria simplicidade? Mas, Clarisse Lispector já nos alertara que “É necessária uma vida inteira para aprendermos as lições mais simples”, afinal, complementaria o escultor romeno Constantin Brancusi “A simplicidade é a complexidade resolvida”.

Não me cabe mais nenhum pudor em dizer que a presença de minha musa me inspira amor. E amor todos nós intuímos bem o que possa ser, certo? Ou você tem dúvidas sobre o amor? Tudo bem. Todos nós as temos. Até que estejamos bem diante dele, o amor. Mas, nem por isso se deixe levar pelo cansativo e cancerígeno desamor. Já o experimentei, confesso. Assim como experimentei outras drogas. Mas, não o recomendo. O desamor é um veneno fatal para a alma de qualquer ser humano médio.

Em um segundo momento foi pelo jeito como minha musa lidava com os seus três cachorros que me envolveu novamente nos mistérios do amor. Todo o quadro era como uma foto em movimento. O resto da paisagem estava fora de foco… enquanto os quatro, dançavam como em uma película em terceira dimensão. Eles eram tão harmoniosos quanto diferentes entre si, como só se é possível nas mais belas pinturas, dos maiores gênios da arte.

Mas, ela jamais desconfiaria que, quase, todos os dias, pela janela de meu apartamento do décimo andar da Felipe de Oliveira, eu buscava decifrar os enigmas que só as musas possuem. Em silêncio eu os observava. Apenas eu e minha solidão.

E, claro que ela não desconfiaria nunca que eu a desejava, pois nunca trocamos uma só palavra.

Só eu tinha a consciência de sua existência.

Todos os dias, em uma mesma hora, minha musa pontualmente levava seus três amigos caninos para passear em frente à minha janela, na Praça Demétrio Ribeiro. E todos os dias eu me apaixonava mais um pouco por aquela menina-mulher. E o que me encantava naquela cena cotidiana prosaica, era como seus três cachorros eram tratados por ela. Educados e carinhosos, eles entendiam perfeitamente o que ela queria dizer. Era como se minha musa fosse dedicada à busca da mais perfeita paz e sintonia entre as espécies.

Eu assistia, de longe, calado, à confirmação da teoria da reencarnação. Eles certamente já se conheciam, viveram e se amaram em outras vidas, antes de se separarem em espécies diferentes. Definitivamente, desde o primeiro dia, percebi que ela ocuparia, por algum tempo, o posto de minha musa platônica. Ela me ajudou a constatar que eu ainda era capaz de amar.

Fiz música, filme, poesia… mas, tudo isso para uma musa é muito pouco. Minha vida seria dedicada a ela, se assim ela o desejasse. Mas, é claro, ela nunca desejaria isso. Eu sei, não me iludo. Entre os muitos súditos que ela deveria ter, nesse vasto mundo de meu Deus, eu certamente era apenas mais um. E invisível. E ainda bem que nossa relação era assim. Realmente prefiro assim. Em troca da minha invisibilidade, eu daria a ela a eternidade das musas.

A cena se repete até hoje. Todo santo dia ela faz tudo sempre igual. Sua rotina, tenho certeza, nunca falhará. Apesar de minha janela agora permanecer fechada, e da minha pouca vontade de me levantar do sofá, conservei em minha retina todo o frescor de sua imagem para não ser mais preciso renovar aquela cena em minhas retinas, diariamente. Um único detalhe menos importante me faria mudar de ideia: ela cortara o cabelo.

Eu sabia que desta forma distanciada nossa relação seria preservada eternamente. Preciso deixar claro que desejo de minha musa apenas a sua bela imagem. Não a quero fisicamente. Se a conservar longe de mim, a terei para sempre. E garanto que assim ela jamais envelhecerá, jamais padecerá pela fresta de uma rotina insana, de vidas que se encontram e se afastam. Desta forma, eu não poderei fazer mal algum a ela. Minha musa será eternamente minha fonte de inspiração, e estará para todo o sempre em minha mente, eternizada. Só assim, apenas assim, eu serei capaz de amá-la por anos a fio, sem lhe fazer nenhum mal. Se a mulher perfeita é a mulher ausente, o amor platônico é a relação ideal.

O que variava em cada passeio de minha musa inspiradora com seus cachorros é a sua disposição física dela. Quando ela está menos inspirada vai, apenas, até a pracinha. Quando o seu sol interior está mais radiante ela desfila por entre os carros, até a ciclovia da Princesa Isabel. É o dia da alforria dos bichanos. Ela os liberta de suas coleiras e se senta em algum lugar para fumar um cigarro. Sim. Minha musa fuma. Imagine você o poder dessa imagem diante do meu arquétipo primário subversivo e animal.

Não consegui, ainda, desvencilhar-me de seu símbolo amoroso. Mas, acho até que cometi um ato falho ao colocá-la no passado. Talvez eu já esteja pronto para o amor novamente.

Um amor platônico só faz sentido quando você está sozinho. Senão você imprime alguma dualidade ao seu relacionamento real. E eu não sou mais capaz de me dividir, afetivamente.

Já reparou que no final das contas é a mulher quem decide a vida de um casal? Ela diz: “Ah, benzinho… eu prefiro o vermelho…”, e pronto. Lá vai você para a concessionária comprar o carro dos seus sonhos, mas na cor que a sua mulher escolheu.

Nunca subestime o poder de uma mulher que fala sem se alterar. Que insufla e instila no homem sua própria vontade, de forma que ele seja levado a acreditar que a ideia partiu de sua mente masculina e rasa.

Orgulhoso ele diz: “É, decidi. O vermelho é mais bonito mesmo…”, e ela apenas o olha embevecida de si mesma, sorrindo de soslaio. Esse tipo de casal (nem um pouco imaginário) certamente viverá feliz por muitas décadas.

Quer saber o que eu acho? No fundo o homem se sente mais seguro ao lado de uma mulher assim que o deixa brincar assim de vez em quando, pelo quarteirão de sua vaidade, mas com a certeza de que sua coleira estará sempre nas mãos de sua amada. Sem discussões desnecessárias, sem brigas pelo poder.

Não é de fato um desejo físico o que eu sinto por minha musa.

O que eu sinto é um afastamento crescente do desamor.

Eu explico.

Olhar para a minha musa todos os dias é a minha melhor terapia enquanto um amor real não aparece. Ela me traz paz interior, calma e serenidade. Observar o espírito solar de minha musa é o que me é necessário para a manutenção de minha sanidade emocional. Preciso me apaixonar todos os dias, estar em estado de paixão, para viver.

Mas, paradoxalmente, sua maneira de lidar com seu próprio corpo foi outra coisa que me encantou. Ah, mas que corpo… ela é um exemplo raro de um encaixe perfeito entre corpo e alma.

Um dia, eu estava saindo para dar uma pedalada pela praia e a encontrei em um sinal da Barata Ribeiro. Fiquei um pouco nervoso, confesso. Mas, logo percebi que não havia motivos para isso, pois ela ignorava totalmente a minha existência. Já eu? Eu conhecia mais detalhes sobre minha musa do que ela mesma. E no meu silêncio constrangido, observei-a mais uma vez, só que dessa vez de muito perto.

Foi aí que pude constatar os detalhes e os contornos de seu corpo, observei de perto o que eu via de longe. Notei que suas pernas eram muito bem torneadas, esculpidas como uma estátua grega. Não só suas pernas, mas também seus ombros e suas costas eram bem trabalhadas. De perto, devo dizer que achei seu corpo… um tanto assim… masculino. Mas, quem desdenha quer comprar, não é mesmo? Nesse caso, quem desdenha quer comer. Ou não.

Percebi, também, outros detalhes que, de longe, passaram despercebidos. Seus cabelos estavam, um pouco, ressecados e sua pele carecia de cuidados.

Decepção?

Não mesmo.

Como quem pratica esportes ao sol e não exagera no ego, sua vaidade era apenas com sua saúde física.

Bem, se ela não se magoou com essa minha última indiscrição, agora irá se aborrecer de verdade. Observei também que sua pele não era muito boa, havia alguns melasmas misturados com sinais recentes de erupções de acne. Até aí tudo bem, também. Certamente os hormônios que pareciam saltar por todos os seus poros fizeram algum estrago em seu belo rosto. Mas, o tempo cuidaria disso, certamente. Ela era jovem demais para se preocupar com os hormônios de seu corpo.

Felizmente, para ambos, o que sempre me impressionou foi a sua unidade. E sua integridade estava intacta, mesmo de perto. Minha musa era a representante mais perfeita da nova estética feminina, e não parecia ter mais do que vinte e poucos anos. Talvez vinte e dois. Aos vinte e sete, os problemas de pele já estariam resolvidos, certo? Ou será que ela toma bomba e seu clitóris já estará avantajado ao extremo com esta idade? Melhor não pensarmos nisso agora.

Novamente… sei que é isso o que está pensando, depois de minha descrição detalhada de seu corpo… nunca pensei em possuí-la, sob pena, como já disse, de minha musa materializar-se em uma mulher vulgar. Se acaso eu a possuísse — Deus me livre e guarde desse infortúnio — verei toda a sua beleza esvair-se diante da rotina decadente de uma relação piegas. Eu não suportaria a dor de vê-la transformar-se em uma mulher vulgar: ciumenta, insegura, falastrona e com as alterações de humor típicas da TPM. Apenas mais uma mulher, como todas as outras.

Exatamente por isso desejo apenas a sua imagem e não o seu corpo.

Ah, mas que corpo!

A consciência corporal de minha musa a fazia pisar com passos largos e firmes, ainda que masculinizados. Talvez tenha sido mais um detalhe que levei em conta no meu conjunto de critérios inconscientes para sua eleição como minha inspiração do momento. Careço de uma mulher forte, que possa proteger-me de mim mesmo.

Se ela é tão perfeita assim, só posso estar enlouquecendo ao desejá-la sem querer possuí-la, você não acha? Mas, pense comigo, se eu nunca a tiver, ela será eternizada em minha mente. Eterna como um elenco de muitas paixões platônicas que experimentei ao longo de minha pobre vida e que ainda carrego comigo.

Acho que aconteceu exatamente assim na minha primeira paixão platônica. Ela era de ascendência japonesa e estudava na mesma escola maternal do que eu. Prescindi de seu corpo por total desconhecimento de que o sexo fosse algo necessário. Eu sequer sabia da existência dos órgãos genitais, naquela idade. Acho que eu ainda estava no final da fase anal, infantil. Mas, até hoje eu me recordo dela.

Mas, o amor verdadeiro prescinde fácil de qualquer tipo de contato físico, por se tratar de um sentimento realmente puro. Acho que foi dessa forma, platônica, que aprendi a amar. Depois virei um cínico. Hoje finjo amor para ter sexo.

Minha musa resgatou a inocência de que necessito para voltar a amar de verdade. Acho que todo mundo é passível de passar por uma fase de endurecimento emocional, não é verdade? O segredo talvez seja não permanecer por muito tempo preso a esse tipo de sentimento tão negativo.

É assim que acredito que seja um amor verdadeiro: platônico.

A paixão carnal por um objeto único é imperfeito por si só.

Esmaece com o tempo, como uma foto exposta ao sol.

Nelson Rodrigues, o sábio, diria que “O sexo atrapalha o amor” ou ainda “O sexo sempre foge e deixa o amor só”.

Quem sou eu para discordar do mestre?

Outro dia ouvi o filósofo Pondé dizer em uma entrevista que: “Quanto mais um homem ama uma mulher mais inseguro ele fica em relação a ela. Então a conta é a seguinte quanto mais confiança no outro, menos amor. O amor traz insegurança, medo e ciúmes”.

Talvez por concordar com ele eu prefira o amor platônico.

Para descontrair vou te repassar uma piada machista de boteco que me contaram outro dia:

Existem apenas três tipos de mulher: a puta, a que dá para todo mundo, inclusive pra mim; a filha da puta que dá para todo mundo, menos pra mim e a chata… a que só dá para mim.

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