Flor de Sal — Memórias de um Hedonista — Livro I — Capítulo 7

A PERSONA

Robson Felix
Flor de Sal
4 min readJul 17, 2016

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Por onde começaremos a revirar o lixo emocional de minha “triste” história de vida? Melhor começarmos pela infância, não te parece óbvio? Afinal, não era Freud quem dizia que todas as distorções da alma humana tecem suas teias na mais tenra idade?

Então, vamos a ela.

Alguns de seus leitores, precipitados, poderão especular que somente uma mãe atenciosa ao extremo poderia causar tamanha deformação em meu caráter. Porém a aposta mais provável de meus detratores é que tenha ocorrido justo o contrário. Afinal, diriam meus inimigos, a função dos pais é apenas dar contornos humanos ao caráter selvagem de seus rebentos.

Talvez os eles estejam certos.

Não acredito, como Rousseau, que “O homem nasce bom e a sociedade o estraga”.

Tendo a acreditar na teoria de Hobbes que afirma que “A natureza humana é egoísta, amedrontada e traiçoeira, porque a vida, quando em desordem, traz à tona a sua precariedade essencial”.

Como Hobbes, eu acredito que o homem é mau em sua essência e a sociedade o faz melhor (pouca coisa, viu?).

Pois bem, voltemos então à velha infância, mas não agora.

Antes, só mais um alerta: não espere de mim (nem de minha memória), nenhum pragmatismo, coerência, ou mesmo a mínima cronologia.

Esse processo de revisão de vida em que eu estou submerso é sofrido, ademais somente uma mente doentia poderia demonstrar alguma coerência revirando lixo caseiro.

O que definitivamente não é o meu caso.

Quero crer em minha sanidade até o fim dos meus dias, mesmo em detrimento de minha, eventual, coerência.

Então, vamos discorrer conforme os fatos se sucederem em minha mente e quem sabe, quando da revisão de suas notas, você os ordene de alguma forma mais inteligível, coerente e eloquente, para o seu leitor, segundo o seu entendimento.

Mas, não se afobe com tal responsabilidade, pois é pouco provável que qualquer rearranjo dos fatos facilite ao seu leitor o entendimento de minha personagem subterrânea.

Não obstante, vou lhe dar uma outra boa dica sobre quem eu sou.

Eis aqui mais um sintoma aparente de minha secreta loucura: procuro fazer somente o que me dá extremo prazer.

Acredito que este deveria ser o norte de qualquer ser humano médio.

Mas, como nem sempre isso é possível, surgem então as distorções da alma, as neuroses, as paranoias e os surtos coletivos.

Pago e sempre pagarei, ao menos enquanto eu tiver forças para tal — e a cada dia tenho menos forças, confesso — , o alto preço desse precioso luxo nos tempos de hoje: o prazer de ser quem se é.

Fantasias de grandeza?

Pode até ser.

Afinal, como já disse Domingos de Oliveira: “O homem só é livre mesmo na imaginação”, ou parafraseando Camus: “Devemos viver com lucidez no absurdo, gozar a vida plenamente, já que ela é privada de sentido, e desfrutar a liberdade máxima aqui na terra, pois não há liberdade eterna”.

Então, ao menos eu finjo ter liberdade.

Como já disse, não saberia viver de outra forma. Preciso da ilusão de liberdade.

“O quanto perco em luz conquisto em sombra”, diria Carlos Pena Filho.

Às vezes, tento crer que até preferiria ser igual à massa amorfa de manobra fácil, bovina e ignara.

Mas, em pouco tempo mudo de ideia.

“A massa só serve para parir os gênios. Depois que os pariu volta a babar na gravata.”, Nelson Rodrigues.

Algo dentro de mim resiste a esse papel secundário.

Talvez o tal hospedeiro em meu cérebro ou um encosto (vai saber?), se preferir.

Ou quem sabe alguma maldição dos tempos de minha ascendência africana, de minhas raízes negras neste país mestiço.

Veja só, já estou eu divagando novamente.

Então eis aqui outro sintoma que me faz crer na presença inevitável de um hospedeiro em minha mente: a dispersão a que o tédio me submete.

Fazer o quê?

“A grandeza do ser humano quase sempre tem as suas raízes no irracional”, Robert Musil.

O fato é que eu nasci quem sou e estou fadado a ser quem eu sou até que a última inimiga me vença.

Somos passíveis de mudanças, mas dependemos de alicerces bastante sólidos, lastro, para fazê-las.

Pois então vamos aos relatos sórdidos.

Vou te contar a minha trajetória de vida, a melancólica história de como eu me tornei quem eu sou… este cínico, sátiro, perverso…

Mas, não hoje.

Hoje eu estou muito cansado, amanhã continuaremos de onde paramos.

Passar bem.

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