Flor de Sal — Memórias de um Hedonista — Livro I — Capítulo 9

O HUMOR INGLÊS

Robson Felix
Flor de Sal
5 min readJul 31, 2016

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Desde criança assisti à minha vida em família como se fosse uma grande ópera. Minha casa era um palco onde os sentimentos impostos pelos personagens em cada cena eram determinantes para dar o tom de tragédia, ou de comédia, aos momentos familiares. Mas, naquela época, o tom recorrente era mesmo o de melodrama. Com um pouco mais de distanciamento crítico dos envolvidos, seria fácil perceber que a comédia reside no drama assim como existe drama na comédia. Charles Chaplin já dizia que “A vida de perto é uma tragédia e de longe uma comédia.”. E eu concordo. O fato é que o humor nos faz um grande favor ao nos ajudar a rir de si mesmo.

Ainda jovem, eu ficava impressionado com o peso que as pessoas davam às suas personagens, na defesa de suas razões e papéis sociais. Na minha época de criança — é fato que eu já dobro o cabo da boa-esperança— , pessoas de trinta anos, já tinham o peso de sessenta: filhos, roupas comportadas, emprego estável e dedo em riste apontado para os erros dos outros. São esses os primeiros sinais de envelhecimento.

O fato de eu ter vivido a virada de um século me permitiu ver, em um curto período de tempo, coisas fascinantes e mudanças impensadas para as gerações passadas. A vida mudou, as pessoas mudaram, conceitos foram ultrapassados, enquanto outros foram introjetados em nosso dia a dia, nos fazendo pensar como vivíamos sem isso antes, a tecnologia encurtando distâncias e nos dando o direito de ainda sermos jovens aos quarenta, cinquenta ou aos sessenta anos.

Mas, voltando ao assunto, não sei se nasci com humor ou desenvolvi esse talento, essa habilidade, em face à diversidade quantitativa e qualitativa da minha própria família. O fato é que eu me lembro de que muitas vezes ter humor era uma questão de sobrevivência social, uma opção muito pessoal, uma maneira individual de se ver a realidade em que estamos imersos. A situação não muda, mas o humor evita, ao menos, perdermos o ânimo.

Sou como já disse de uma família bem grande — estou me repetindo aqui, porque acho que isso faz toda diferença na vida de uma pessoa — e acredito que até em função desse fato, tínhamos recorrentes revezes financeiros que, vez por outra, pareciam não nos deixar muitas saídas honrosas. Mas, sempre minha pequena grande mãe revertia a situação, com sua capacidade de transformar verdadeiros barracos em castelos — talvez venha daí a minha certeza de que o bom gosto não têm relação direta com o dinheiro.

O fato é que minha mãe transformava os campos de concentração, que muitas vezes a vida nos oferecia, em verdadeiros campos de girassóis de Monet. E eu ali, pequeno, só admirando a sua arte de viver, tentando entender aquela sua capacidade especial de, quase, nunca se abater diante das adversidades. Claro que essa é uma virtude brasileira, mas eu tinha, por perto, minhas próprias cobaias. Só precisava ficar atento, e observar.

Tínhamos reais dificuldades financeiras. Mas, isso não era nada diante das dificuldades sociais que a falta de dinheiro nos fazia enfrentar.

Em função da falta de grana, sempre vinham avisos na agenda escolar e anotações dos professores nos cadernos de piano e violão. Era pressão de todos os lados, todos os dias, só para manter um alto padrão de educação.

Porém, nessa mesma época eu usava a mesma calça de escola por vários anos, descendo mais a bainha a cada ano. E herdava blusas de colégio de meus irmãos mais velhos. Era o preço de minha educação inglesa.

Eu fui uma criança franzina, fechada em mim mesmo, que se pudesse não sairia da primeira fila da sala de aula e só tiraria dez. Mas, logo percebi que para me livrar da implicância e da provocação dos mais fortes e formadores de opinião do fundo da sala, eu precisava descer do meu pedestal de isolamento e me juntar a eles. Era uma questão de inteligência social. Além do mais, havia um momento em que não havia mais bainha para descer e o fundo da sala era a melhor posição geográfica para mim, pois chegava uma hora em que o jeito era descer a calça abaixo da linha da cintura, colocar a blusa larga por cima da calça e andar meio como se estivesse de saia justa, para não pescar siri. Sentando no fundo da sala, eu não corria o risco de pagar cofrinho ou sofrer bullying por minhas roupas doadas. Estou falando de um período pré-adolescente em que ser franzino ou gordinho pode deixar sua autoestima em frangalhos, para sempre. Esse é o contexto.

E é aí, justamente aí, é que entra o humor. O meu, talvez, em função da pouca massa cerebral dos fortinhos de plantão e dos formadores de opinião da escola, desenvolveu-se um pouco mais ácido. Mas, logo constatei, como Sartre que “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”. Essa máxima vale para fatos e pessoas.

O complicado é que nem sempre estamos equilibrados o suficiente para que nosso instinto de defesa não reaja e para compreender que nem tudo o que é contrário a nós é nosso inimigo. Às vezes nos falta centro para concluir que os melhores professores são sempre os mais severos.

Lembro-me de que muitas vezes sucumbi aos pés da falta de humor, fato.

E o revés do humor é a ira, a mágoa, o ressentimento e a depressão.

Acabei de chegar a conclusão de que nasci sem humor, mas em função das circunstâncias da vida, tive que desenvolver um certo tipo específico de humor: o inglês.

Não gosto de curvas. Tendo a ser reto e pragmático. Mas, devo admitir que muitas vezes o melhor caminho entre dois pontos é formado por espirais. O humor sempre me ajudou nas curvas da vida, mantendo-me mais ou menos são, mentalmente.

Quando aos vinte e poucos anos minha namorada de quatro meses engravidou, foi uma prova de fogo para o meu humor, pois essa é a típica situação da vida que pode ter uma conotação dramática ou alegre.

E lembro-me também que este foi um período de muita intensidade emocional, pois eu ainda não tinha desenvolvido todas as habilidades necessárias para viver e já gerara um clone.

O humor me fez ver, que abstraindo-se a ópera momentânea da vida, eu tinha tido a oportunidade de ter um filho precocemente, sem previsão de grandes conflitos de geração, eu evitara o risco de ser o avô do meu próprio filho.

Na verdade, o humor é um produto de química cerebral, dizem as pesquisas.

Mas, estamos falando aqui de uma opção consciente, entenda bem, de ver a vida sob um ângulo mais leve, mais fluido.

Estamos falando da opção consciente de bloquear as emoções com o humor, entende?

— Emídio, mais uma saideira, por favor…

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