Flor de Sal — Memórias de um Hedonista — Livro I — Prólogo
O RETORNO DE SATURNO
Sentei -me com as costas apoiadas na porta do quarto. Em soluços. Negando a vida. Era a primeira vez que eu experimentava um sentimento de desespero tão forte assim. Eu estava, praticamente, estreando na vida adulta e não sabia que poderia existir algo tão intenso quanto aquela emoção que me invadia, arrebatadoramente, naquele momento. Eu sentia um desespero absurdo. Absoluto. Sentia uma vontade de sair correndo e nunca mais parar. Eu estava com muito medo. De mim mesmo, da minha sombra, e do que eu havia sido capaz de fazer.
Eu ainda não tinha em meu repertório adulto a emoção que me chutava o peito naquele exato momento. Talvez eu tivesse vivido, até então, uma vida de merda. Talvez eu vivesse super protegido de minhas próprias emoções.
Talvez…
Quem sabe eu tivesse ficado imune a sentimentos iguais aqueles, porque, até então, eu nunca houvesse me apaixonado, de verdade. Somente isso para explicar o fato de que, até ali, a vida não tivesse me surpreendido com uma reversão de expectativa realmente tão grande quanto aquela.
Alguém já disse que nascemos limpos e nos sujamos com a vida. É uma bela imagem. Só que a imagem que melhor representava aquele momento era a vida jogando um balde de merda bem no meio da minha cara.
Mas, a boa notícia é que era preciso estar vivo para se sujar com vida. E para amar. E o amor deve ser mesmo sinônimo de sofrimento. Ao menos era assim que os poetas românticos o descreveram através dos séculos.
Racional ao extremo, eu me vangloriava, até então, de nunca ter me deixado levar, totalmente, pela emoção. Coitadinho de mim. Babaca. Idiota. Filhinho de mamãe. Otário.
Eu não conhecia mesmo nada sobre a vida real. Mas, agora o que eu mais temia havia acontecido. A realidade havia me surpreendido em uma esquina escura da vida, jogando um balde de merda em minha cara, rindo-se de mim. Sentia que, até então, viver era para mim, apenas, uma brincadeira de criança. Mas, a partir daquele momento, eu sabia que, deixaria de sê-lo. A partir daquele exato instante, a vida passaria a ser à vera.
Só havia uma explicação para tamanha inocência de minha parte. Eu vivia, até então, com uma espécie de rede de segurança emocional para me amparar se acaso eu caísse da corda bamba da vida, em direção às algemas da racionalidade. Equilibrando-me nas regras de normalidade, eu nunca havia errado o passo, de verdade. Agora parecia que eu estava compensando todo o tempo que passei sem fazer nenhuma besteira. Talvez eu não estivesse mesmo preparado para o mundo-cão. Eu que sempre achei que a vida nunca me interessaria de verdade, agora, de um momento para o outro, ela exigia de mim toda atenção do mundo. Apenas nós dois. Frente a frente. Eu, a vida e o seu próximo balde de merda pronto para ser jogado em minha cara.
A realidade me pegara, pela primeira vez, completamente desprevenido. Eu pressentia que essa seria, apenas, a primeira de muitas surpresas desagradáveis que a vida me faria. Mas, eu intuía que seria essa a vez que marcaria a minha alma e me deixaria sem chão. Seria essa a vez que minha alma seria definitivamente marcada, a ferro e fogo, para todo o sempre.
Eu começava a intuir que a juventude era o verdadeiro conteúdo do balde que a vida, agora, jogava-me na cara. Nelson Rodrigues devia estar em um dia iluminado quando, perguntado sobre qual conselho daria para jovens atores, respondeu quase sem pensar: “Eu recomendo aos jovens: envelheçam depressa. Deixem de ser jovens o mais depressa possível. O Jovem só pode ser levado a sério depois de velho”.
Era isso!
Eu precisava envelhecer.
Mas como deixar de ser jovem, assim, de uma hora para outra?
Primeiro eu precisava saber quem eu era, me autoconhecer. Eu precisava adquirir um repertório emocional próprio — por que agora parecia que havia vários de mim dentro de minha mente? Estaria eu enlouquecendo? Dizem que quem tem medo de ficar louco, nunca o ficará. Um dia eu acreditei nisso. Mas, a partir daquele momento eu já não estava mais tão certo de que essa regra era uma verdade absoluta.
Eu estava atordoado, não conseguia entender como aquele momento de extrema tensão e violência havia, de súbito, chegado até a mim — ou eu tinha chegado até ele.
Eu estava cansado, confuso, tonto, machucado por dentro e por fora. Em tão pouco tempo, fui jogado para longe de quem eu acreditava ser. Fiquei preso à minha própria razão por toda uma vida, e agora isso: a vida dura e o seu balde de merda. Eu achava que já sabia viver como um adulto — por que os jovens são tão pretensiosos? — , mas era fato que eu não entendia mesmo nada sobre a vida.
Nem de longe.
Como eu cuidaria de mim dali para frente. Algemado a quem eu acreditava ser, eu havia me perdido de mim mesmo. Racional ao extremo, agora eu me desmanchava em emoções banais, clichês, prosaicas, vulgares. Eu que sempre fui tão seguro, coberto de razão, implacável comigo mesmo e com os outros, flagrava-me frágil como uma criança de quatro anos. Como eu havia entrado naquele curto-circuito emocional? Seria apenas culpa da comoção do amor?
Eu me sentia como um animal enjaulado. Confundia-me com meus próprios instintos. Não podia contar mais com o filtro amigo, conhecido, da razão. Eu havia experimentado, em um curto espaço de tempo, alguns dos pecados mais mundanos e inconfessáveis do mundo. Talvez todos. Dos veniais aos capitais.
Eu precisava me perdoar pelo que eu havia feito. Mas, primeiro eu precisava sair da cena do crime. E rápido. Precisava deixar aquele momento no passado. Eu precisava me convencer de que aquele momento não me representava e jamais me representaria.
Algum tempo depois, entendi que eu não conseguiria sair daquela cena tão ileso e rápido quanto eu imaginava. Percebi que seria preciso ruminar e digerir lentamente o que havia acontecido naquela fatídica madrugada de outubro de 1993. Eu precisaria de muitos anos para tirar aquela triste cena de minha mente, de dentro de mim. Mas, intimamente eu receava que aquela dor jamais me deixaria em paz.
Mas, o que havia, de fato, acontecido naquela funesta madrugada de outubro? Eu não conseguia me lembrar de nada. Minha mente se recusava a me repassar qualquer mínimo detalhe, por mais ínfimo que fosse. Minha memória era um grande e profundo buraco. Eu estava em um ‘brilho eterno de uma noite sem lembranças’. Simplesmente eu havia bloqueado qualquer indício do que havia ocorrido naquela madrugada chuvosa. Meu inconsciente parecia não querer que eu me recordasse de nenhum detalhe do que havia se passado ali, naquela madrugada medonha. Eu sentia um gosto amargo em minha boca e em minha alma. Pela primeira vez em minha curta vida adulta, eu experimentava uma ressaca moral — o pior tipo de remorso. O mais intenso e mortal.
Mas do que exatamente eu me envergonhava? O que eu havia feito afinal de tão grave? E por que? Eu simplesmente não entendia o que acontecera. Não conseguia juntar as peças daquele quebra-cabeça macabro. Como eu havia me colocado ali, naquela cena de horror? Eu não tinha mais certezas. Havia apenas perguntas, sem respostas.
Mas, e Andressa? Estaria ela morta? Eu tinha hematomas e placas de sangue pisado por todo corpo, que poderiam sugerir que algo de muito grave havia acontecido com ela. Eu estava meio grogue, em total estado de choque. Eu sentia muita pena de mim mesmo e vergonha da situação em que eu havia me metido.
Que merda era ter razão.
Não.
Nunca mais eu desejaria ter razão. Nunca mais eu abriria mão de toda e qualquer alegria — mesmo a mais ilusória –, em nome da merda da razão.
Por minutos me distraí, saí de mim… e agora isso. A vida e o seu balde de merda.
Fiquei sentado, avaliando minha situação, como se pudesse me observar de longe, dirigir-me, julgar-me. Deitado no chão, em posição fetal, sem forças para me reerguer, eu chorava de soluçar, tentando juntar as peças da noite anterior e os cacos do que sobrou de mim e… tentar decifrar o que havia acontecido comigo naquela fatídica madrugada de trinta e um de outubro de um ano qualquer. O dia das bruxas.
Olhei para o lado e vi o berço de Frederico que dormia como um anjo, alheio ao ocorrido. Em nenhum momento daquela longa madrugada, ele havia acordado.
Sorte a dele.
Não.
Sorte a minha.
Eu nunca me perdoaria se ele tivesse acordado bem no meio de toda daquela confusão.
Frederico era como uma testemunha cega, surda e muda. Jazia inconsciente como se nada tivesse ocorrido. Mas, aos dez meses de idade, quem sabe ele já não captaria todo aquele clima de tensão, mesmo que de forma inconsciente? Quem sabe o cheiro de morte que exalava daquele quarto não contaminaria, no futuro, seu senso de segurança emocional?
Não.
Oxalá queira que não.
Se ele tivesse presenciado o ocorrido, jamais me perdoaria. Afinal Frederico era, apenas, uma criança. E, vamos combinar que qualquer filho ficaria do lado de sua mãe. Quero dizer... mantidos os padrões de temperatura e pressão.
Eu também ficaria ao lado dela, se ao menos tivesse chance.
Mas, como eu havia perdido a cabeça daquela forma tão estúpida? Como eu havia saído de mim, sem me dar conta, sem nenhum aviso prévio? Logo eu? Um homem-feminino? O melhor aluno da turma da tia Rosilene? Como eu podia ter feito aquilo (seja lá o que fosse ‘aquilo’) com ela? Como eu conseguiria explicar aquele corpo cheio de hematomas e quase sem vida que jazia na minha sala? O que eu diria para os pais dela? E para polícia? Polícia? Será que os vizinhos chamaram a polícia? Será que seria essa a primeira das várias anotações criminais que eu acumularia ao longo de vida adulta? Logo eu que, até então, não bebia, não fumava, nem usava drogas? Logo eu que nunca havia brigado na rua, nem cometido um delito sequer? Não. Não era justo. Será que eu havia me tornado, de uma hora pra outra, um monstro exterminador sexista? Seria eu, no fundo, apenas mais um um serial killer de mulheres indefesas? Será que as cenas de violência doméstica seriam, a partir desse momento, recorrentes em minha vida? Será que este seria o meu triste destino final?
“Que merda!”, pensei alto, tentando ‘rebobinar a fita’.
Mas, só as cenas do início do filme pareciam fazer algum sentido.
Conheci Andressa em uma festa de final de ano da minha turma de teatro do Centro de Artes de Laranjeiras — C.A.L. Nessa festa eu atuei como disck jóquey. A festa foi na casa de Arthur, um dos melhores atores da turma de formandos daquele ano. Um ator admirável, visceral, orgânico, intenso. Com pinta de galã, Arthur era alto, forte e de boa família. Sua casa em Vila Isabel era bem grande, duplex.
Eu cheguei cedo e fiquei sozinho organizando os elepês em um dos quartos, na parte superior da casa — já que eu não bebia nem curtia aqueles cigarrinhos esquisitos que a galera fazia, artesanalmente, a todo o momento.
Andressa era uma mulher voluptuosa, curvilínea, calipígia — talvez, hoje em dia, fosse digna da alcunha de uma fruta qualquer –, irresistivelmente gostosa, grande, exagerada, mulher de muitos talheres, carnuda e com quadris largos como os de tia Rosilene. Nessa época Andressa ainda namorava Arthur, mas eu não sabia disso ainda (depois ela me contou que a relação deles, àquela altura, já não estava mais lá muito bem das pernas).
Andressa — que eu não conhecia até então — chegou de mansinho por trás de mim fumando um cigarro careta. Nos olhamos e, sem trocarmos uma só palavra, nos beijamos e transamos loucamente ali mesmo no quartinho do som.
Foi assim, dessa forma abrupta, quase instintiva, que descobri algo que tia Rosilene sempre se recusara a me ensinar: a função do pênis.
Ao final de nosso êxtase demorado, Andressa me contou sobre seu envolvimento com Arthur e eu me prontifiquei a conversar com o dono da casa. Eu precisava confessar meu crime — naquela época eu era puro e inocente a este ponto. Veja você o que é a juventude.
Como se fora um duelo, chamei Arthur em um canto e o confrontei dizendo que eu estava apaixonado por Andressa. Ele sorriu e me disse algo como: “Pode levar essa puta. Ela agora é sua. Boa sorte.” Limitou-se a me informar que já não estavam juntos desde o aborto (aborto? mas, que aborto?).
Arthur me olhou sério, e falou-me ao pé do ouvido, baixinho, como se me contasse um grande segredo: “Tenha muito cuidado com ela.” — insinuou ele em tom de intimidade.
Segundo Arthur, Andressa tinha uma índole duvidosa, pois tentara aplicar-lhe o golpe da barriga, não deixando para ele alternativa alguma, senão o aborto.
Eu me lembro até hoje de como eu fiquei enfurecido com a insinuação de Arthur. Como ele a havia feito passar por um trauma tão grande quanto aquele? Como ele poderia ter sido tão cínico, calhorda, frio, desumano, com uma mulher sensível como Andressa? Como ele poderia insinuar que sua gravidez fora, na verdade, um golpe?
Senti-me desafiado a cuidar para sempre de Andressa e prometi a mim mesmo que ela nunca mais se sentiria tão desprotegida e frágil.
A partir daquele momento, fiz de Andressa a minha Scarlet O’Hara.
E agora isso!
De alguma forma estranha, eu havia conseguido ser muito pior do que Arthur. Mas, como? O que havia acontecido ali, em minha própria casa, naquela maldita madrugada do dia das bruxas?
Quando Andressa engravidou de mim, namorávamos há apenas quatro meses. Tínhamos algo em torno de dezenove, vinte anos. Eu havia acabado de sair de casa e morava com Conceição, uma amiga de faculdade, que não gostava muito de Andressa. Mas, a segunda me convenceu de que a primeira provavelmente não morria de amores por ela, porque sentia ciúmes de mim (como amigo) e sabia que teria que deixar o apartamento caso fôssemos morar juntos. Hoje acho que, na verdade, Conceição intuía — ou sabia — de algo que eu desconhecia sobre Andressa.
Conceição até tentou conversar comigo, mas eu não quis saber de nada. Eu estava cego de paixão. Achei que Andressa é quem estava com a razão. Deveria ser mesmo, apenas, ciúmes de amiga.
Quando resolvemos morar juntos, como previsto, sugeri duramente que Conceição procurasse, em pouco tempo, outro lugar para morar. Não sem antes ela ainda tentar me falar algo, mas, mais uma vez, eu não quis ouvir o que ela tinha a me revelar sobre Andressa.
Acreditei durante nove meses que a gravidez de Andressa era a confirmação do caráter definitivo do nosso amor. Eu era jovem demais, ou talvez quisesse reescrever a história dela com Arthur. Ou, quem sabe, desejasse consertar os desvãos emocionais de minha própria família. Talvez a ausência de um pai houvesse, de alguma forma, tornado-me muito frágil para com os truques do amor. Talvez eu fosse um romântico inveterado, ou quisesse remendar os vazamentos do amor com açúcar e com afeto. Talvez tanta coisa… Mas, Mishima já alertara que: “O amor é horrível. Ele não tem regras”.
Ai, que merda é essa tal juventude…
Carlos, meu irmão mais velho, quando soube da gravidez de Andressa, recomendou-me, friamente, um aborto, enquanto atracava-se com um galeto com farofa. Ele me cuspiu verdades do alto de seu ponto de vista enviesado sobre a vida. Eu o havia convidado para almoçar em busca de conselhos de irmão mais velho, mas ele me disse, duramente, que o aborto era o melhor a se fazer. Falou, olhando bem no fundo dos meus olhos, que eu ainda iria engravidar muitas “putinhas” ao longo da minha vida, e que se eu entrasse naquela viagem de assumir todos os filhos que fizesse nas “vadias” com quem me deitasse, eu estaria inapelavelmente fodido.
Rompi relações com meu irmão. Quem ele pensava que era para falar daquele jeito sobre a mulher da minha vida? Eu não seria mais um Arthur na vida de Andressa. Ah, isso não.
Resolvi, por conta própria, levar adiante aquela gravidez (como eu se tivesse esse poder?, mas, era assim que eu me sentia). Golpe da barriga era improvável, pois eu não passava de um fodido.
A verdade é que Andressa titubeou, mas acabou concordando em prosseguir com a gestação de Frederico.
E a partir daquele momento, eu passaria a viver de uma forma muito austera, antissocial, isolado da família e dos amigos. Como um senhor de meia idade, aos vinte anos, eu me impus uma responsabilidade enorme sobre os ombros. Nessa época passei a ter dois empregos. Para sustentar as manhas e manias de Andressa, passei a viver para a família e para o trabalho.
Mas, em detrimento de tudo isso, a vida seguia o seu rumo. Éramos como os casais dos filmes de comédia romântica. Tudo parecia perfeito e leve. Mal lavávamos a louça e vivíamos uma vida de refeições em domicílio. Até aí, tudo bem, pois nossa relação não dava sinais de desgaste. Nossa vida sexual era maravilhosa. Transaríamos até o último momento antes do parto de Frederico.
Mas, a verdade é que secretamente rancores e ressentimentos cresciam como erva daninha, dentro de nós.
Eu, por exemplo, ressentia-me de ter adiado todos os meus planos e projetos artísticos. Parei de fazer teatro, dança, abandonei a música. Achava que eu só poderia ter direito de retomar os meus projetos pessoais, quando Frederico estivesse crescido.
Erro clássico.
Quanto aos ressentimentos de Andressa?
Ah, esses eram ainda mais sérios e profundos. Ela se despedia, dia a dia, de seu corpo deslumbrante de Vênus calipígia. Ganhava quase cinco quilos por mês de gestação, com a alimentação calórica à base de quentinhas. Perdemos a noção da realidade. Uma vida de filme não se sustenta por muito tempo.
Como todo jovem, eu achava que sabia tudo sobre a vida, mas claro que isso não era verdade.
Sem perceber, eu repetia os mesmos erros e padrões emocionais familiares distorcidos.
Afinal, aprendemos a viver por pura repetição, por puro mimetismo.
E agora isso!
Eu ainda sentia muita raiva e culpa de mim mesmo. Culpa por eu não ter conseguido me controlar e raiva de Andressa. Como ela poderia ter feito isso comigo? Como pôde ter feito isso com a gente? Arthur estaria certo quando me alertou sobre o caráter duvidoso de Andressa? E Conceição? O que ela tentava me dizer? Será que Andressa não era mesmo confiável? Será que eu era confiável?
Que merda!
“E se Andressa estivesse morta?”, pensei voltando a ficar em pânico.
“Foda-se!”, gritei alto.
Foi ela mesma quem procurou isso.
“Vadia.”, balbuciei entre os dentes.
Naquele instante entendi que eu havia me sentado daquele jeito, contra a porta, para evitar que Andressa entrasse no quarto, quando eu me entregasse totalmente ao cansaço, para se vingar das agressões físicas cometidas por mim.
Como dói amar.
Ainda mais daquela forma tão intensa quanto eu achava que amava Andressa. Ou seria esse amor, agora, apenas fruto de um orgulho ferido? Vaidade masculina afrontada?
Ah, foda-se.
O fato é que naquele momento eu sentia muito medo. Eu sentia muito medo de tudo. Sentia medo do que a vida me reservava.
Havia um cheiro de tragédia no ar. Eu nunca havia sentido o sabor agridoce do amor antes de me apaixonar perdidamente por Andressa.
E por- que cargas d’água eu estou usando este argumento de merda — o tal do amor — para me justificar por ter feito algo tão escroto?
Lembrei-me, a esta altura, vagamente da cronologia do “crime”.
E me veio à mente a nossa fatídica discussão.
O ciúme havia, finalmente, nos alcançado com sua fulminante flecha preta.
Lembrei-me de ter gritado com Andressa por ela ter chegado de madrugada.
Dormi no sofá da sala para surpreendê-la quando (e se) ela chegasse.
Após dez meses do nascimento de Frederico talvez ela só quisesse tirar o atraso da vida. Talvez quisesse apenas sentir, novamente, a intensidade da juventude, divertir-se um pouco, sentir-se gostosa novamente.
Normal.
Éramos jovens, merecíamos viver intensamente.
A verdade é que nunca deveríamos ter acreditado na nossa relação natimorta, amor piegas.
Eu nunca deveria tê-la encurralado daquele jeito, feito um bicho.
Mas, eu era muito jovem para entender que no fundo somos todos animais selvagens, acuados e ocupados em sobreviver, prontos para atacar:
– Até que enfim… — resmunguei enquanto a surpreendia ainda com as chaves na mão, entrando em casa na ponta dos pés;
– Oi, meu amor…
– Meu amor é o caralho, Andressa. Onde é que você estava?
– Frederico já mamou?
– Vai, Andressa… me conta logo uma história qualquer.
– Foi horrível, meu amor. Eles me pegaram e me colocaram no camburão. E depois fizeram coisas comigo. Coisas horríveis… — balbuciou Andressa, fingindo chorar.
– Tudo bem, Andressa… você já me contou uma história qualquer e não me convenceu… agora me conta a verdade, Andressa. Por favor!
– A verdade? Você quer a verdade, seu merdinha? — disse ela mudando o tom de sua personagem, com o ódio surgindo por detrás de seu rosto clássico — A verdade é que você me enfiou a porra de um filho pela boceta, me deixou uma baleia gorda fedendo a mijo, merda de criança e gordura requentada de quentinhas baratas. Essa é a verdade, seu escroto!
– Andressa, onde você estava até agora? Você está mudando de assunto. São cinco da manhã, Andressa… me fala a verdade… eu vou entender, Andressa — tentei mais uma vez.
– Ah, vai entender, é?, seu derrotado — caminhou para trás do sofá onde eu estava sentado e jogou todo o conteúdo de uma garrafa de vodka que havia na cozinha em minha cabeça — Então entenda de uma vez por todas que você é um nada, um merda, um otário, um perdedor, um homem sem ambição, um loser. Não podia ter feito isso comigo, seu cuzão. Meu corpo era lindo. Todos os homens me queriam, me desejavam. Eu poderia ter tido qualquer homem que quisesse. Eu deveria ter me casado com um milionário e não com um fodido como você.
Andressa havia se transformado em um animal selvagem, e dava sinais de que iria atacar: respiração, unhas, dentes…
…e atacou.
Eu não conseguia me lembrar de nada além desse ponto. Na verdade, eu não queria me lembrar de mais nada. Por pura vergonha do que tinha ocorrido depois.
Andressa e eu tínhamos uma piada interna e um jogo erótico literário desde o início de nosso relacionamento.
O jogo erótico consistia em iniciarmos as preliminares enquanto eu lia um livro em voz alta, até que não aguentasse mais.
A piada interna era perguntar um ao outro, de um jeito carinhoso: “E se fôssemos um livro, em que capítulo estaríamos?”. A primeira resposta era sempre em forma de pergunta: “Seria um livro com quantas páginas?”. Mas, o fato é que esse era um bom termômetro para nossa relação.
Se tudo estivesse bem, a resposta seria algo próximo ao prólogo. Agora, certamente, estávamos no epílogo.
Éramos jovens demais para entender nossos desejos, sentimentos, dúvidas e medos. Eu era jovem demais para compreender o gosto amargo do amor e o tamanho do ressentimento de Andressa. Mas, apesar de minha juventude, eu intuía que ela jamais me respeitaria de novo se eu não a castigasse por seu erro. Se eu a perdoasse abriria um precedente para a sua total falta de compromisso com a nossa promessa (furada) de monogamia. Se eu fingisse que nada havia acorrido naquela fatídica madrugada de outubro, viveríamos uma vida cheia de mentiras para todo o sempre.
Andressa estava com cheiro, com cara e com jeito de quem havia traído.
Alguém já disse que: “Não basta à mulher de César ser séria. Ela tem que parecer séria.”.
Em uma fração de segundo enquanto discutíamos, eu a peguei me olhando de um jeito estranho — um jeito que para o resto de nossas vidas ela me olharia caso eu não a confrontasse naquele exato momento, algo como se eu fosse realmente um pária, um nada, um merda. E um pária não merece mesmo respeito, comiseração ou compaixão.
Não.
Eu não estava preparado para encarar aquele olhar para o resto da minha vida.
Eu preferia resolver tudo isso ali mesmo, naquela madrugada, mesmo que de uma forma irracional.
E (quase) fatal.
Eu não conseguia mais me mexer. E nunca mais me moveria mesmo, se pudesse. Se eu me levantasse dali, teria de lidar com as consequências dos meus atos, lidar com meu novo status quo de solteiro — e de corno.
Talvez Andressa merecesse o direito da dúvida, como uma Capitu dos tempos modernos. E, talvez, eu também merecesse absolvição do estigma de corno.
Só que não.
Eu pressentia que teria de conviver eternamente com aquela mácula carimbada em minha testa. A primeira de muitas máculas que a vida adulta me reservara.
Na verdade, eu não queria mais viver. Não queria mais, nem mesmo, me defender de Andressa. Se por acaso ela entrasse no quarto com uma faca, ou coisa que o valha, para me agredir, eu nada faria para me defender de seus golpes. Eu merecia mesmo morrer pelo que havia feito, por obrigá-la a me trair e por eu não conseguir relevar sua traição. Eu não merecia viver, por não ser mais capaz de acreditar no amor e por ser jovem demais para amar.
Só me restava agora pensar em algo para dizer a Andressa quando — e se por acaso — ela acordasse.
Talvez devesse pedir desculpas.
Não.
Isso não!
Implorar seu perdão não era uma opção. Eu não conseguiria ser tão cínico e hipócrita a esse ponto.
Eu precisava sair logo daquele quarto sem dar explicação alguma. E não havia mesmo nenhuma explicação a dar. Só me cabia fechar-me em minhas poucas certezas. As poucas que ainda me restavam. Essa era a minha única opção de sobrevivência emocional.
Eu precisava me levantar dali, remoer e digerir todo aquele remorso ao longo dos longos anos frios que me aguardavam pela frente. Eu precisava seguir a minha vida, envelhecer, reaprender a viver, conhecer tudo sobre os porões da alma humana, sobre minha própria sombra e sobre minha própria loucura.
Eu não queria ter que admitir que Arthur estivesse certo. Não era justo nem comigo, nem com Andressa. Seria nossa relação apenas uma profecia que se autorrealizara?
Eu precisava voltar para a minha vida e, com sorte, envelhecer de uma forma, mais ou menos, digna. Mas, aquela mácula eu levaria para sempre comigo, até o final dos meus dias. Se ao menos eu tivesse uma chance de voltar no tempo… talvez fizesse tudo diferente.
Talvez…
Fui invadido, novamente, por uma absurda vergonha de mim mesmo e tudo em minha volta ganhava um tom épico, mitológico e trágico. “Mas eu estava com a razão.”, eu tentava argumentar para um tribunal repleto de promotores (e sem defensoria alguma) que se formara dentro de mim.
Neste exato momento Frederico remexeu-se no berço, enquanto, provavelmente, sonhava com os anjos. Com os anjos? Será? Como eu poderia saber? Não sabia, apenas esperava que fosse assim.
Frederico suspirava inocência. Mas como, se aquele quarto fedia a morte? De qualquer forma, Frederico só poderia mesmo estar sonhando com os anjos, apesar de ser uma testemunha (inconsciente) da tragédia que quase ocorrera ali. Eu pensava se, de alguma forma, ele não iria absorver as energias negativas daquela nefasta madrugada de outubro. Quem sabe se o que aconteceu naquela casa não se refletiria na forma como ele, futuramente, relacionar-se-ia com o sexo oposto. Não. Com sorte Frederico ficaria bem. Afinal, ele era apenas uma criança. Ele iria sobreviver àquela nefasta madrugada.
Quanto a mim… eu já não tinha tanta certeza assim.
Até aquele momento de minha vida, eu acreditava que todos nós nascíamos prontos. Acreditava que o espírito não tinha idade. Mas, agora eu sabia que isso não era uma verdade absoluta. Um dia a realidade também tiraria meu filho dos seus sonhos infantis e o afrontaria com seu balde de merda. Era uma pena conceber que aquela pequena criatura seria, um dia, arrancada de sua inocência, de seus sonhos angelicais, por uma vida traiçoeira e o seu malfadado balde de merda.
Senti um impulso muito forte de escrever, para dar vazão a uma pulsão de morte jamais sentida antes. Um desejo de deixar anotado para a posteridade que eu não era o vilão, apenas ‘estava’ como vilão do filme. Mas, antes, eu precisava ter certeza de que o filme estava, mesmo, apenas começando. Eu precisava me certificar de que nós três sobreviveríamos a tudo aquilo.
Eu agora estava certo de que meu castigo seria sobreviver para me punir e para me redimir do ocorrido naquela madrugada de outubro de 1993.
Peguei papel e caneta e redigi ali mesmo uma carta para Frederico. Uma carta que ele não conseguiria ler de imediato, mas que eu precisava escrever para o bem de minha própria sanidade. Minha ideia era pavimentar a estrada da vida para que ele não se fodesse tanto quanto eu estava me fodendo naquele instante. Seria como um mapa emocional, um resumo de meus sentimentos e de minha vida até aquele momento. Eu precisava fazer isso por ele. Se dependesse de mim, Frederico jamais seria surpreendido por uma vida feia e o seu fedorento balde de merda. Eu não sabia se conseguiria evitar que Frederico sofresse os reveses da vida, mas ao menos eu precisava tentar. Eu precisava fazer isso por ele.
E por mim.
É estranho. Mas, devo confessar que foi a partir desse dia que eu comecei a escrever compulsivamente e nunca mais parei. Nem eu sei exatamente o porquê. Muitas vezes eu escrevia coisas sem sentido, mas isso não importava muito. Eu apenas seguia escrevendo e guardava tudo em uma caixa de papelão. Prometi a mim mesmo que jamais jogaria nada fora até que Frederico pudesse entender o que havia escrito ali. Era uma tentativa sincera de me expressar através do papel. Aqueles escritos não mereciam críticas literárias, racionais ou filosóficas. Eram apenas uma tentativa vã de levar minhas emoções para bem longe de mim, caso contrário, elas me afogariam. Eram bilhetes em garrafas com revelações de minha trajetória que um dia seriam descobertas.
Um dia eu serei salvo pela escrita.
Depois de certo tempo, as palavras me chegariam em silêncio, não mais em jorros. O importante passou a ser o que eu pensava e não o que eu falava ou escrevia.
E quase todos os dias, eu observava o que se passava em minha mente e transcrevia tudo para uma folha de papel, como que para descarregar minhas angústias e emoções. Era uma forma de conversar comigo mesmo. Uma maneira de não enlouquecer.
Eu precisava entender o que estava acontecendo dentro de mim. Eu precisava viver para me perdoar. Seria esse o sentido da vida, a partir daquele momento, para mim.
Mas, tudo bem.
O filósofo Luiz Felipe Pondé já nos alertou que não existe experiência moral sem culpa.
Fato!
Outro fato relevante era que eu precisava me apegar a algo para não sucumbir. Algo dentro de mim estava de alguma forma se dividindo, morrendo e renascendo. Eu começava a intuir algumas coisas sobre a vida, mas como uma cobra eu precisava primeiro me livrar de minha antiga casca para poder crescer. Eu precisava jogar fora algumas das minhas muitas certezas, eu precisava aprender a não me levar muito a sério. Nem a mim, nem a própria vida. Eu precisava aprender a lidar com a minha sombra.
Certamente, hoje eu sei, não nascemos prontos. Aprendemos a viver, vivendo, descobrindo quem se é e para o quê se nasce.
Eu precisava entrar rápido na faculdade da vida.
Mas, eu precisava encontrar um bom professor, um coach, um técnico, um mestre. Alguém que me dissesse para onde ir e o que fazer de minha vida a partir de então. Eu precisava de alguém que me desse a certeza de eu não estar, de fato, enlouquecendo.
Peguei a carta que eu havia acabado de escrever para Frederico e guardei em uma mochila, junto com umas poucas roupas. Foi aí, neste exato instante, que na parede do quarto, acima do berço, eu vi reluzindo em xênon um poema de Clarice Lispector que eu ha- via lido recentemente: “Pois o amor não é doce, pois o bem não é suave, pois amanhã como ontem, é amarga a liberdade.”.
Foi a primeira vez que tive uma epifania poética.
Abri a porta do quarto e saí em um ímpeto só. Andressa estava jogada no chão da sala, desgrenhada, humilhada, machucada. Dormia o sono dos adúlteros.
Certifiquei-me de que ela ainda respirava, coloquei a mochila nas costas e parti, sem olhar para trás.
No caminho, prometi a mim mesmo que nunca mais, em minha vida, eu levantaria a mão para uma mulher.
Mais tarde, essa mesma vida me levaria a acrescentar um parágrafo único a esta promessa: ‘… não sem antes ter certeza de que meu pau está bem duro e no meio de suas pernas.’.
Neste dia eu deixava para trás todas as certezas da juventude. Eu sabia que era preciso envelhecer. E rápido. Eu precisava me entregar a Saturno e descobrir se Nelson Rodrigues estava certo quando afirmava que: “Toda mulher gosta de apanhar. Aliás, todas não, só as normais. As neuróticas reclamam.”.
Eu tinha apenas uma certeza: que o caminho para a maturidade é feito de muitas dúvidas.
Talvez seja este o marco zero de minha trajetória, o ponto de inflexão de toda a minha vida adulta. Podemos chamar de qualquer coisa: epifania, alumbramento. O fato é que diante do conceito de individuação Yunguiano (que nada tem a ver com um sentido egoísta, e sim com a ideia da nossa transformação em um ser único) este é o início de todo o meu processo de desenvolvimento emocional, de tomada de consciência do ‘eu’. Yung diz explicitamente em sua teoria que: “A consciência só pode existir através do permanente reconhecimento e respeito do inconsciente. Toda vida tem que passar por várias mortes”.
Yung continua sua explicação sobre o processo de individuação no livro “O eu e o inconsciente” com a seguinte afirmação: “A emoção é a fonte principal de toda tomada de consciência. Não há transformação de escuridão em luz, nem de inércia em movimento, sem emoção”.
De qualquer forma, intuitivamente, eu sabia que para me redimir e me perdoar seria necessário ir bem fundo nos porões escuros de minha própria alma.
E retornar, se tivesse sorte… vivo.