Lilith em leão

Na casa 9

Robson Felix
Flor de Sal
4 min readApr 8, 2018

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Eu sempre acreditei que um bom artista precisa, necessariamente, ter conhecido o abismo.

Claro que não precisa ter caído nele, mas ao menos um dia o candidato ao Dolce Far Niente vitalício, tem que ter sentido o desespero bem perto de si, tem que ter olhado bem nos olhos do cara que divide seu corpo com você e que te pergunta o tempo todo: “Você tem certeza que o que está fazendo é o certo?”, o seu abismo particular.

“Se você olhar muito tempo para o abismo o abismo começa a olhar para você”, dizia Nietzsche.

E somente quando o abismo começar a olhar para você é que você vai compreender um monte de coisas sobre si mesmo.

O autoconhecimento resultante do desesperador encontro com você mesmo é algo presente e ativo, quase real, quase tangível, pessoal e intransferível.

Eu sabia, intuitivamente, que somente quando não tivesse mais nenhum limite externo é que eu me depararia com as verdadeiras questões da vida.

Somente quando (e se) eu abrisse mão de emprego, carreira, dinheiro, comida, posses, felicidade, família, filhos, ego, sexo… enfim, tudo aquilo que tende a ser uma definição externa de quem eu sou, somente após sublimar tudo isso é que eu teria a possibilidade de me encontrar comigo mesmo.

Pois bem, eu me encontrei comigo.

E ao me olhar no espelho, não gostei do que vi.

Dentro de mim havia um inquilino com uma chave no pescoço que comandava minhas intenções como se fosse o dono da “casa”.

Como eu nunca desconfiei que havia um hóspede em meu cárcere privado, dormindo comigo no único catre existente?

E esse é um hóspede do tipo “mulher solteira, procura”, aquele tipo que usa minhas roupas, minhas cuecas, meu corpo e minha vida.

Pior, ele me imita em tudo, em sua tentativa sincera de ser eu.

Devo dizer que diversas vezes o peguei jactando-se de sua imitação de mim.

Logo ele, o impostor.

Louco isso, não acha?

Também acho, mas infelizmente, não há outra forma de explicar tamanha surpresa ao me deparar com meu duplo, sem me deixar levar por questões espirituais ou esotéricas.

Mais louco ainda é perceber que alguém que está comigo desde sempre e que durante toda uma vida confundiu-se comigo não deseja, necessariamente, o meu bem.

A partir deste encontro era de bom tom que eu desconfiasse até de minha sombra.

Neste momento acordei de um sono profundo, tive uma epifania, uma iluminação, não sei…chame como quiser.

Talvez eu tenha ficado mais consciente de mim mesmo, a partir de então.

Só sei que foi assim o encontro com meu oponente: O EGO.

De pronto, tomei um susto.

Depois percebi que apesar de ser bom no que ele fazia (tentar ser eu) o ego não jogava para o time (no caso, eu).

Pelo contrário, parecia torcer para que eu me enveredasse por caminhos (físicos e mentais) tortuosos, em seu enredo de emoções vazias, na tentativa de ter um corpo físico (no caso, o meu).

Precisei dar um passo atrás para ver sua atuação com mais clareza, para entender que, como acontece em algumas fotos que me mandam perguntando se sou eu e mesmo sabendo que eu não estive em naquele lugar (então definitivamente não sou eu), fico em dúvida, tamanha a semelhança da imagem comigo.

O fato é que apesar de parecer comigo, nem sempre (ou quase nunca) esse tal de ego quer minha evolução, o meu bem, a minha paz.

Na verdade ele deseja seus próprios desejos.

Na real ele está (apenas) focado em ser ele, mesmo que seja através (ou apesar) de mim.

Decepção.

O ego é a parte mais animal deste pobre centauro que vos fala.

Pensei então matá-lo, mas logo percebi que seria um erro.

Sem ele eu nada saberia sobre mim, eu não teria histórico de minha própria vida.

Toda uma história de cinquenta anos se perderia, pois era propriedade do ego.

Como um João Gilberto no ocaso da vida, eu havia vendido toda a minha obra para (ou por) um charlatão qualquer.

A sensação era algo como se eu passasse toda a vida em coma, inconsciente de mim mesmo, confiando cegamente em uma projeção, uma imagem.

Mas, quando acordei, logo percebi que nossa separação seria litigiosa.

Não tendo outro caminho, resolvi negociar:

— Talvez tenhamos que caminhar para um lugar onde possamos ser mais livres e permeáveis à outras pessoas — tentei — mesmo sabendo que talvez não tenhamos, ainda, adquirido a maturidade, distanciamento, nem o espaço necessários para que possamos trilhar, de imediato, por este caminho, é este o lugar que precisamos buscar— menti.

O fato é que até hoje estamos negociando o fim de um casamento de quase cinquenta anos.

O mais provável é que continuemos morando juntos, afinal são tempos de crise.

Depois de todo este processo o que é para mim o mais difícil é a merda do apego.

Me dói a ideia de me livrar de mim mesmo.

Talvez seja melhor eu me livrar da ideia de que o EGO seja EU.

De qualquer forma, estou cada vez mais ciente e consciente de que esta é minha missão na vida: desenvolver o máximo de mim, pobre alma errante.

Ao menos é isso o que diz minha Lilith em leão, na casa nove: “conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo”.

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