Futebol, eu não sei o que fazer com você

Wladimir Dias
Fluxo de ideias
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4 min readJul 26, 2022

Oi, futebol. Antes de mais nada, deixo claro que você já foi meu melhor amigo, porto seguro. Nunca vou me esquecer disso, ou deixar de ser grato. E não, agora não é mais. Te assistia e lia e ouvia e jogava (virtual e fisicamente) o tempo inteiro. Gastava quase todo meu parco dinheirinho em uma coleção de camisas (e outras quinquilharias) que a cada dia faz menos sentido. Buscava a menor oportunidade de ir ao estádio com o maior dos apetites. Implorava, e costumava ser atendido, para faltar aulas quando algum jogo importante acontecia em horário conflitante.

Durante muito tempo, você foi meu assunto. Monopolizava minhas conversas e me ajudava a construir uma imagem perante os outros, uma persona. “Para temas futebolísticos, consulte o Wlad”. Também era um parceiro infalível na missão de não me deixar sem assunto.

Em tempos de autoestima inexistente, essencialmente durante toda a adolescência e o início da fase adulta, em que sentia ter pouco ou nada a oferecer aos outros, você estava lá. Inclusive, quando precisava transbordar minhas emoções, era através de você —normalmente na figura do Galo — que eu o fazia.

Eu sentia que as pessoas não entendiam; que julgavam que eu te dava muita importância e que eu não poderia ser agressivo como, muitas vezes, era nos meus momentos com você. A verdade é que só viam o que estava na superfície. As notas eram boas (exceto em Física). A saúde, aparentemente, também. Ninguém notava a ansiedade, a tristeza, a raiva, a tensão, a pressão, a solidão. Aliás, as pessoas viam. Só não enxergavam. E, sem você, talvez eu tivesse explodido como uma panela de pressão com as válvulas entupidas.

Não me ensinaram a lidar com as minhas emoções. Ninguém perguntou se estava tudo bem, quando não estava. O choro em silêncio não foi ouvido. Havia sinais. Só não havia tempo e, honestamente, quem poderia se manifestar também não sabia bem como ou o que fazer. Tudo bem. Somos falíveis e, na medida em que nunca me faltou o material, não posso reclamar tanto. É preciso aceitar os privilégios que tive e tenho. No entanto, tê-los não fez do mundo um lugar cor de rosa.

Photo by Tamas Pap on Unsplash

Fez do mundo um lugar preto e branco.

As histórias de heroísmo, de superação, de tristeza e alegria. Os alívios e decepções. Os gritos de libertação e ira. Essas coisas que as pessoas encontram nos mais diversos lugares, encontrei em você. Aprendi a encarar a vida como um campeonato, e, às vezes, como copa. Em determinados momentos, perserverar, observando progressos pequenos no curto prazo e vitórias importantes no longo. Em outros, dar tudo ali mesmo, quando a chance, que não volta, aparecesse.

Meus textos, em geral, ainda são sobre você. Os sonhos profissionais, também. Mas estou cansado. Hoje, a vida tem mais sons, palavras e os sentimentos já não ficam guardados, espreitando um gol para desaguar. As informações que enchem minha cabeça não são mais só sobre você. E esse processo é doloroso. Por vezes, quando me dou conta de alguma informação até então ignorada, penso: “Eu já deveria saber disso, meu ‘eu antigo’ saberia”. A sensação é quase de ingratidão a quem (sim, vou personificar. Se alguns tiveram amigos imaginários, eu tive você) esteve lá nos momentos mais duros.

Em especial, você, bem como o Galo, permitiram que um elo entre pai e filho nunca se quebrasse, definitivamente. Não gosto sequer de pensar o quão mais pesados teriam sido os silêncios dessa relação na sua hipotética inexistência.

Sei que nunca vou te abandonar. Em momentos diferentes, você foi pai, mãe, um irmão, tio, amigo. O abraço da arquibancada que me deixava pertencer. E eu queria pertencer. Ainda quero. Sigo habitando lugares em que sinto que não me encaixo. O Direito é um deles. O que mudou é que, agora, tenho recursos para lidar com isso. Parece triste dizer isso, mas não preciso mais de você.

Como não precisar do meu principal marcador identitário sem gerar uma crise de identidade?

Talvez, e digo talvez por se tratar de uma dúvida genuína, isso venha de um lugar, ou da falta de lugar, de uma existência que se aproxima das três décadas com a sensação de não ter realizado nada. Ou de ter, sim, caminhado, mas, em grande parte das vezes, em conformidade com as expectativas de outros. E isso, futebol, já foi seu grande trunfo. Você foi, e de certa forma é, meu lugar de rebeldia. Manter um blog é meu jeito de dizer ao Direito: “Ok, eu te suporto, mas não te quero”.

Mas, ao fim, preciso aceitar: já não quero conversar tanto sobre você. Ou assistir a tantos jogos e ir ao estádio tantas vezes e ouvir histórias e comprar tantas camisas e me aprofundar em assuntos táticos e, inclusive, escrever tão frequentemente. Não quero que todas as minhas analogias se manifestem através de você.

Não sei o que fazer com você. Apesar disso, te amo. Sempre vou te amar.

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Wladimir Dias
Fluxo de ideias

Advogado, mestre em Ciências da Comunicação e Jornalismo Esportivo, pós-graduando em Escrita Criativa. Escrevo n’O Futebólogo e penso no Fluxo de Ideias.