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Wladimir Dias
Fluxo de ideias
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5 min readNov 14, 2023

Sempre temos que consertar os mapas, repintar as fronteiras de nós mesmos, divagava. Naquela manhã, censurado pela omelete saída antes da hora da frigideira oleosa, e com escassos restos de teflon, e pelo café ralo, olhava pela janela a imensidão de um céu azul, sem nuvens, saudado por intensos raios de sol que anunciavam um dia estereotipicamente bonito. Nos dias tidos como perfeitos o contraste lhe era maior. Sempre temos que consertar os mapas, repintar as fronteiras de nós mesmos, repetia mentalmente. Onde estava com a cabeça quem cunhou o conceito de “compromisso inadiável”? O infeliz poderia, ao menos, ter dado à circunstância caráter noturno.

A aniversariante tinha nascido sob o calor escaldante de um sol que, a pino, atravessava a pequena janela da maternidade e mais do que iluminar, cegava. Os pais lhe contaram e ela lhe contara. Durante os anos, ela construira intimidade com a astrologia e parecia-lhe importante celebrar os 30 anos em hora próxima à do seu parto. Disse algo sobre um tal “retorno de Saturno”, que somado ao fim de um suposto “inferno astral” propiciava condições ideais para um momento de limpeza e renovação e catarse. Ele não entendeu nada, não quis entender. O que não tem remédio, remediado está. Isso quem dizia era a sua avó. Nunca ousou discordar. Não se lembrava do porquê de a amiga lhe querer tão bem, mas ia vê-la cumprir anos, levando seu inseparável e discreto cantil de cachaça, claro. Se a felicidade dali fosse muita, teria de buscar refúgio.

Antecipando o sofrimento, abriu o armário. Camisa de malha preta, calça jeans, All Star surrado e cinto de lona postos, foi em busca de um presente, afinal não era um ogro nem, tampouco, insensível. Também não daria motivos para falatório alheio. Justamente para não constranger seus poucos conhecidos com tais formalidades, evitava festividades. Acontece que se via em sociedade e precisava se submeter a algumas convenções, mesmo as que celebram o fato de que estamos um dia mais perto da morte. Comprou um livro e uma garrafa de sakê para a aniversariante. Calculou que, chegando cedo, conseguiria sair de fininho em pouco tempo. Vou, me deixo ver, volto, concluiu.

Tomou uma cerveja no centro da cidade e beliscou alguns pedaços do que simulava porcamente as famosas tapas espanholas. Um punhado de azeitonas excessivamente salgadas, uma fatias grudentas de salame e algo anunciado como jamón serrano, mas que não passava sequer por mortadela. Ao aproximar das 15h, tomou um Uber e partiu.

Tocou o interfone, ouviu o destrancar da porta eletrônica. Hesitou ao reconhecer vozes. Vozes, não. Risos. Mal passara da porta, quando foi abalroado pelo que se convencionou chamar de abraço de urso, não que se tenha certeza se tais mamíferos, um tanto vorazes, são dados a afetuosidades. A aniversariante estava feliz felicíssima por vê-lo.

Não era só o sol que ofuscava, também as cores, enquanto as gargalhadas e a música pop ensurdeciam. Logo, encontrou um cantinho e pôs seu plano em prática. Sempre temos que consertar os mapas, repintar as fronteiras de nós mesmos. O pensamento retornava, conforme o cantil secava.

“Sabe, eu já fui assim”. Aquelas palavras arrancaram-no do transe. “Você tá falando comigo?”, perguntou à estranha que, sem pedir licença, sentou-se ao seu lado. “Sim”.

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“Cresci vivendo na minha cabeça. Digo, passei pelos anos de adolescência na minha cabeça. Crescer é outra questão”, continuou. “Olhava para o infinito, tocava minha insignif…”, “Ei, se me dá licença, vou fumar”, interrompeu. Antes que pudesse se levantar, notou-se preso ao sofá de três lugares pela mão que ela segurava. “Espere”. Com um pulinho curto e rápido, a mulher se levantou. Voltou logo com uma caixa de fósforos. “Nunca me acostumei a isqueiros”.

“Como eu dizia, vivi tempo demais na minha cabeça, pensando sobre as coisas da vida e no quanto ela não precisava de mim, ninguém, nada precisava de mim, sabe?”. Resignado, ele concordou. “Até que um dia, li em um livro que a vida deixa pistas. Para todos nós”. Incomodado com o rumo daquela conversa, virou-se para o vento, que não era intenso, mas se fazia notar. Era brisa, na verdade. E não refrescava. “Depois desse dia, algo mudou em mim. Do instante em que um arrepio colocou meus pelos em festa àquele em que o comichão me tirou a paz. Só conseguia pensar em descobrir as pistas e saber qual seria o destino”. “E qual foi o destino?”. “Não sei. Descobrir que não sei e não posso saber foi o mais perto dele que pude chegar”. “Me desculpe, mas isso é uma perda de tempo enorme e eu sequer desfrutei do meu cigarro”. “Você nunca desfruta do seu cigarro e pode discordar de mim o quanto quiser, eu sei. Simplesmente sei”.

“Olha, eu não sei quem é você e não me agrada o caminho dessa conversa. Como espera que alguém goste de você se aproximando desse jeito sorrateiro e falando o que lhe vem à telha?” “Não espero”. “Perdão?”. “Não espero, não espero mais”. “E o que exatamente você faz, além de bancar a onipotente, onipresente e onisciente?” “Procuro pelas pistas”. “Claro, claro, a presunçosa procura por algo que não vai levá-la a lugar algum”. “Não, a procura tem me levado a muitos lugares, só não ao destino. É você quem não vai a lugar algum”. “Isso é simplesmente absurdo. Absurdo não, é ridículo. Você fala como uma hippie”. “Pode ser”. A música prosseguia, como os risos, mas os dois se entregaram ao silêncio e ao relance da fumaça que saía de suas bocas.

“Me desculpe, tento dizer alguma coisa, mas só me ocorrem as palavras erradas. Nunca consigo encontrar a outra metade de mim que tem a palavra certa”. “Eu sei”. “Sabe?” “Sei. Por isso, procuro pelas pistas, não por propósitos e destinos. Aproveite o seu cigarro, foi um prazer”. “O prazer foi…”. As palavras ficaram ali mesmo. A brisa se retirara junto à moça. Sobraram o San Marino queimando entre os dedos, o cantil seco e o corpo vazio.

Sempre temos que consertar os mapas, repintar as fronteiras de nós mesmos. Sempre temos que consertar os mapas, repintar as fronteiras de nós mesmos, murmurava atento ao horizonte ainda sem nuvens. Sempre temos… “PAM, PAM, PAM”. Era o despertador. Com os olhos ainda semicerrados e a mente embotada, avistou o calendário. 12 de novembro. Era seu aniversário. Seria uma pista? Seria uma pista, e a ideia agora lhe perseguia. Foi à cozinha em busca do desjejum. Sentiu-se obrigado a descartar a frigideira que repousava, pútrida, na pia. Foi tomar café na padaria do bairro. Comprou outra frigideira. Surpreendeu-se ao segurar o smartphone quase inutilizado. Ligou para uma amiga e convidou-a para tomar uma cerveja. Era seu aniversário e não queria ficar sozinho. “Eu sei”, ela respondeu. “Sabe?”. “Sei, já encontrei algumas pistas”. Eram as 15h quando chegou. Fazia um calor escaldante. Sentiu-se renovado. Quando precisou ir ao banheiro, tropeçou em uma lata de tinta. Estava fechada, como nova. Seria uma pista? Seria uma pista. Sempre temos que consertar os mapas, repintar as fronteiras de nós mesmos. Ela sabia, simplesmente sabia.

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Wladimir Dias
Fluxo de ideias

Advogado, mestre em Ciências da Comunicação e Jornalismo Esportivo, pós-graduando em Escrita Criativa. Escrevo n’O Futebólogo e penso no Fluxo de Ideias.