Pela janela

Wladimir Dias
Fluxo de ideias
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3 min readJul 12, 2024

Há essa imagem que se recusa a partir. Se corresponde exatamente à realidade, não ouso garantir. Parece verossímil, contudo.

Nela, me ergo no sofá do quarto de televisão da casa de minha avó, a mãe do meu pai. Não assisto TV. Me interessa o que está além da janela e é para o seu lado que me viro. De lá, verei a qualquer momento um táxi chegar. Sim, um táxi. Meu pai não conduz e, entre o exíguo grupo de conhecidos que uma criança como eu tem, ele é quem mais anda de táxis. Com certa crueldade, a hora do almoço me reboca.

Ele ainda não chegou, mas chegará. É evidente. A barriga cheia não me impede de retomar meu posto, de onde observo carros que vão e vêm; vizinhos; o vigia da rua. Tais imagens tem tom sépia e um sabor agridoce, revestessem de uma inocência que já se sabe em vias de partir; têm também o ambíguo poder de atração somente atribuível a algumas dores. Ao longe, ouço pessoas indo embora. Seriam meus tios? Só poderiam ser eles; ainda não tenho primos. A ânsia por essa informação não é nem de perto tão grande quanto a por vê-lo chegar. Não ousaria abandonar meu posto.

O prazer de vê-lo chegar, algo que está além das dúvidas, me obriga a seguir atento aos movimentos. Tenho tanto a lhe dizer… Ele precisa saber que descobri o Charlie Brown Jr. e também as últimas notícias do Galo. Mais tarde, pedirei para me levar a algum jogo, já faz tempo desde o último. Chegada a hora do lanche, recuso-o como o céu se recusa a sustentar o sol por mais tempo, negando-se a prejudicar a lua. Por razão desconhecida me lembrei de que preciso lhe contar sobre minhas (ótimas) últimas notas e o gol que marquei na quinta-feira (um canhotaço no ângulo).

Mas ele já não vai chegar, telefonou. Ouço a voz de minha avó. Não me lembro se era janeiro, abril ou setembro. Pode ter sido qualquer um — ou todos.

Photo by Georgy Rudakov on Unsplash

Mais de 20 anos se passaram e essa imagem não esmaece, parece indelével. Porém, nesse ínterim, entendi que ela surge quando o amor parece entrar em compasso de espera, refletindo a tônica dessas últimas duas décadas. Já não tenho dúvidas de que ele existe, entretanto.

Ele vai chegar para permanecer, mas no seu tempo.

Se o vir pela janela, será por acaso, não por vigília. Aprendi.

Se não vier como quero, tudo bem. A dor é uma velha conhecida.

Dias atrás, da janela do avião que pousava para uma escala, vi as luzes acesas daquela cidade. Sabia que uma era a dela e voltei a senti-los em semelhante medida, amor e dor. Abraçado pelo anonimato, voltei-me para a imensidão descortinada. Choramos lágrimas grandes, lágrimas duras, lágrimas que ficaram guardadas por tempo demais.

Choramos eu e o menino da janela.

Ele vai chegar, eu prometo. Sei o que estou dizendo, trabalhei muito nos últimos anos para chegar a essa conclusão. Não deixe que as janelas se fechem, mesmo que elas não nos mostrem o que queremos, quando queremos.

Vamos, passou da hora de caminharmos juntos.

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Wladimir Dias
Fluxo de ideias

Advogado, mestre em Ciências da Comunicação e Jornalismo Esportivo, pós-graduando em Escrita Criativa. Escrevo n’O Futebólogo e penso no Fluxo de Ideias.