Sr. Vives

Wladimir Dias
Fluxo de ideias
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6 min readJan 21, 2024

Silêncio, preciso pensar. Uma torrente de calma, isso; algo violentamente sereno. A mirada constante do relógio posicionado na mesa de cabeceira é cruel. Elas nunca param, as horas. Ela nunca para, minha mente. Quando penso que são dez horas da noite, na verdade, são três e trinta e quatro da manhã. Não dormi. Não escrevi. Não respondi. Não produzi. Não vivi. Observo, na varanda do prédio de frente para o meu, o gato do vizinho, que, quieto, devolve-me o olhar, como quem diz: “Eu sei, humano, eu testemunho sua inutilidade. Culpado!”. Até que ele próprio se cansa, fecha os olhos amarelos e se entrega ao mundo dos sonhos, aquele que, há tempos, desconheço.

Há árvores na minha rua e uns poucos carros. Há dias em que dos apartamentos vizinhos vazam luzes de noites indefinidamente continuadas ou indesejadamente interrompidas, hoje não é um deles. Não há barulhos, mas tampouco silêncio. Tenho 30 anos, curso superior, profissão, obrigações, contas vencendo, ressentimento, muito ressentimento. Por um instante, penso no gato-da-varanda e em como ele talvez tenha o equivalente a 30 anos humanos, mas nenhum curso superior, profissão, obrigações, contas vencendo e, especialmente, ressentimento, nenhum ressentimento. E ninguém anda cobrando-o por nada. Não o acusam de espionar o vizinho até a própria estafa ou desinteresse.

Me recordo de ter sido uma criança diurna, curiosa, que dormia facilmente e em qualquer lugar. Me privar de sono era como me virar do avesso. Me pergunto se agora vivo do avesso. Não, me pergunto se existe um outro lado.

Não me sinto propriamente deprimido, talvez ansioso. Não saber se ainda terei chances de fazer o que deixei para trás é um peso imenso, compatível apenas com a perspectiva de não saber se haverá tempo para tudo aquilo que projetei para frente. Me pergunto, me pergunto, me pergunto, mas não há palavra no ar.

O silêncio do quarto do apartamento de dois dormitórios no centro da cidade perto da cafeteria mais bonita e gostosa onde eu talvez já tenha ido algum dia com alguém que eu talvez tenha amado não se quebra facilmente. Já não me lembro de fato se aqueles fatos todos existiram ou se eles agora são peça de museu e o museu é a minha cabeça mas puta que pariu que museu feio obscuro impreciso e aparentemente recheado de peças que não interessam a ninguém e estão empoeiradas e um pouco nojentas com suas teias de aranha de uma tal forma desagradáveis que torna impossível imaginar que tenha sido forjada por algo bom. Não sei mais o que caracteriza bom e mau não sei mais de nada perdi seu telefone.

Uff. Puxa o ar por quatro segundos, segura por seis, solta em oito. Repete cinco vezes.

Faço um lanche numa esperança de que comer trará um alívio, que é rapidamente contraposta à certeza de que amanhã, depois de passar a noite em claro, terei de encontrar coragem para queimar todas as calorias consumidas no tempo em que deveria estar dormindo.

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Pego um livro. Não, pego o livro que aquela pessoa que talvez um dia eu tenha amado me deu, naquela cafeteria mais bonita e gostosa onde eu talvez já tenha ido. Me questiono sobre os motivos de nunca tê-lo lido. São poucas as suas páginas, simples as suas palavras. Isso, desdenhei da simplicidade; vi aquela leitura como perda de tempo. Agora que já perdi tanto tempo, perder (se for o caso) mais um pouco não parece especialmente problemático.

Enquanto leio, não paro de pensar, mas também paro para pensar. Percebo, por um instante, que há ali um sentido para as coisas, uma ordem, que não é imposta com força, mas fluidez. Pego um dos vários caderninhos que guardam minhas descobertas, aqueles que eu imaginava usar em grandes coberturas jornalísticas, e anoto algo no sentido de “ordem e fluidez”, quem sabe não exista um encadeamento para essas ideias? Para mim, ordem sempre se ligou a burocracia e esse novo vislumbre acendeu algo em mim. Apesar disso, agora são quatro horas e dezessete minutos e talvez minha mente esteja embotada para uma reflexão mais aprofundada.

O fato é que terminei a leitura. Li de cabo a rabo e agora que o sol surge no horizonte — algum horizonte, não o meu, já que o prédio vizinho obstrui minha visão — minha mente pensa mais do que deveria. Decido ler outra vez, é domingo e não tenho mais nada a fazer. A mensagem ainda está lá, retumbante. Agora, no entanto, há um novo elemento que me atinge. Ele proclama a existência de uma ordem, que é fluida e também universal. Já estava aqui antes de mim, estará quando eu me for (é o que parece).

Outra coisa que percebi na segunda leitura é que aquela edição do livro não foi bem feita, ou a impressão falhou em algumas partes. Há letras marcadas com mais ou menos força. Tento descobrir mais sobre a autora, mas quem assina o livro o faz por pseudônimo. Não há nada a saber além do livro, o único assinado por por ela, a sra. Vives.

O calor começa a me atingir e me vence.

***

Dormi um sono breve, mas pesado. São treze horas e cinquenta e dois minutos quando me levanto pensando naquelas letras fortes e opacas, nem tanto mais na ordem-fluída-universal. A janela ficou aberta. Agora venta e me dirijo a ela para observar o assobio daquelas rajadas. Elas têm uma cor azul turquesa… Em que momento minha paleta de cores se estendeu tanto a ponto de eu enxergar em algo tão banal quanto o vento a cor azul turquesa?

Com uma xícara de café em mãos, continuo a mirar o vento. O gato-da-varanda também está ali, parece desfrutar o sabor do vento. Não me olha. Volto-me, uma vez mais, para a sra. Vives — que idade terá? Imagino que seja bem velha. Desejo ter outro de seus escritos para ler. Estou outra vez encerrado em reflexões sobre as letras marcadas com mais ou menos força.

Me foco nas mais intensas primeiro, que começo a anotar no mesmo caderno da noite passada. “A” “I” “N” “D” “A” “H” “Á” “T” “E” “M” “P” “O”. “Ainda há tempo”. Leio corretamente?

“A” “P” “R” “E” “N” “D” “A” “C” “O” “M” “S” “E” “U” “S” “E” “R” “R” “O” “S”. “Aprenda com seus erros”. Não consigo frear o impulso de ver onde aquilo tudo vai dar. “P” “E” “R” “D” “O” “E”. “Perdoe”. “P” “R” “I” “M” “E” “I” “R” “A” “M” “E” “N” “T” “E”. “Primeiramente”. “A” “S” “I” “M” “E” “S” “M” “O”. “A si mesmo”.

“Ainda há tempo. Aprenda com seus erros. Perdoe primeiramente a si mesmo”. Com as mãos no rosto, sinto o calor e o sal de lágrimas em metamorfose. As sinto cinzentas deixando meus olhos; as percebo verdejantes ao roçar meus dedos. Do lado de lá, o gato-da-varanda voltou a me observar.

***

Acomodado na cadeira da cafeteria mais bonita e gostosa onde eu talvez já tenha ido algum dia com alguém que eu talvez tenha amado, bebo café irlandês, uma dose de atenção, com uma pitada de torpor. Pelo vidro que divisa o estabelecimento e a calçada, há um gato laranjinha olhando para cá. Pergunto à Camila, que não sei dizer o que faz na cafeteria, vejo-a servindo, recebendo e devolvendo dinheiro, limpando mesas, varrendo o chão, sorrindo para estranhos e repetindo indefinidamente tais atitudes, como ela consegue repetir aquele ciclo indefinidamente.

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“Ela sabia que um dia você me perguntaria isso”, responde. “Olha, não tenho resposta, é simplesmente o que sinto que devo fazer. Continuar. Cresci aqui, sempre estive aqui”.

“Entendo”, contesto. “E você nunca quis fazer outra coisa?”

“Várias. Tive raiva quando meus pais se foram no acidente e a cafeteria caiu no meu colo. Mas passou e acho que seria perda de tempo tentar fazer sentidos mais profundos disso, já perdi muito. Mais que tempo, eu os perdi”.

***

“Alô, quem é?”

“Pai, sou eu”.

“Ah, oi. Ela sabia que você me ligaria algum dia”.

“Ok. Vamos tomar um café? Conheço um ótimo lugar aqui perto”.

“Pode ser amanhã? Antes disso, acho que você precisa fazer outra coisa. O telefone é 756–2148”.

“Que telefone?”

“Dela: Victória Inácio Varela Escobar da Silva. É hora de vocês terem uma conversa. Não sei como ela sabia que esse momento chegaria, mas chegou”.

Antes de ligar, volto para casa. O gato laranjinha ainda está lá, do outro lado da rua. À medida que caminho, percebo que ele me segue. Na porta do prédio, sou alcançado por seu olhar quente.

***

“Victória? Como todo mundo menos eu já sabia, o momento chegou. Precisamos conversar, pode passar por aqui? Quero que conheça o sr. Vives, meu gato”.

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Wladimir Dias
Fluxo de ideias

Advogado, mestre em Ciências da Comunicação e Jornalismo Esportivo, pós-graduando em Escrita Criativa. Escrevo n’O Futebólogo e penso no Fluxo de Ideias.