Vivendo entre elefantes

Wladimir Dias
Fluxo de ideias
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2 min readNov 8, 2023

Durante o dia, atendia às mais diversas solicitações. Respondia ligações importantes — filtradas por uma de suas secretárias — , comparecia a eventos pelo simples propósito de comparecer, fazia caras e bocas. Posava para fotos que jamais veria. Sorria sorrisos que só não enganam os espelhos. Voltava para a mansão que, sobriamente, o esperava à meia luz. Prostrado no sofá, bebia uma dose de uísque. Por vezes, duas. Há tempos não reparava os finos adornos do local. Era um homem de bom gosto, afinal. Vencido o hábito alcoólico, subia as escadas direto para o terceiro piso, ignorando a gravidade do escuro do segundo. Na suíte, tomava um banho rápido, escovava os dentes e logo se deitava, conciliando, sem delongas, um sono ordinário.

Quando um novo dia se precipitava, a rotina recomeçava, com a omelete e o croissant alinhados como sol e lua, e o café quente perfumando o asseado ar da mansão. Sem bom dia, mas logo com barulhos, cliques e sorrisos quase imunes à verdade. Sem boa noite, a escuridão irrompia, afastada sutilmente pela meia luz da sala.

Faltou dizer que uma sensação, uma só, levava o homem ao uísque. Sentia como se houvesse um elefante na sala. Mas um elefante invisível, claro. Enorme, pesado, impossível de não ser notado, mas, ainda assim, intocável, imperturbável, solene. Todos os dias estava lá. Só se retirava quando o calor do peito, induzido pelo amargor da bebida envelhecida, convertia-se em leve torpor.

Photo by Chris Barbalis on Unsplash

Um dia, a dose de uísque que podia se tornar as doses de uísque se tornou a metade final da garrafa de uísque. O elefante, como era praxe, retirara-se. Mas, dessa vez, uma presença felina tomou o seu lugar. Tinha ares de algoz. O homem recostou-se no sofá e ali ficou. Não se banhou, não escovou os dentes. O sono foi turbulento. O que viveu naquela noite, para nove em cada dez pessoas, seria descrito como um pesadelo. Não para ele. Ainda assim, foi como um filme violento. Sem cores, permeado por silêncios hostis e expressões dissimuladas. No centro de tudo: a mansão, ou melhor, a sala de estar.

Despertou antes da hora, fez a higiene atrasada e saiu desabalado. Tinha assuntos urgentes a tratar. A primeira parada foi no cartório, de onde saiu munido de procuração. A segunda estação foi o escritório do advogado. O terceiro destino, este sem hora para acabar, não encontrou em parte alguma. O sentia, mas não o sabia. Começou a trilhar o percurso quando ouviu o som do que, viria a descobrir, era um bem-te-vi. Assim, um homem vivo deu lugar a um homem vivente. Do cartório, do advogado e da mansão não se teve notícias.

Sabe-se, entretanto, que conheceu elefantes, mas estes — que, sim, eram enormes, pesados — podia ver, tocar, afagar. Não desapareciam após doses de uísque.

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Wladimir Dias
Fluxo de ideias

Advogado, mestre em Ciências da Comunicação e Jornalismo Esportivo, pós-graduando em Escrita Criativa. Escrevo n’O Futebólogo e penso no Fluxo de Ideias.