Colaboração e o dilema do “Cão que morreu de fome”

Rafael Pires
FLUXOCRACIA
6 min readJun 29, 2017

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Todo mundo já ouviu a expressão…

Cachorro com muitos donos morre de fome

É muito comum eu ouvir essa frase de algum funcionário, gerente ou diretor quando apresento processos colaborativos e as vantagens competitivas da colaboração em contrapartida ao tradicional método de gestão onde tarefas são atribuídas a cargos ou pessoas.

Quando escuto essa afirmação, como se fosse uma verdade absoluta da vida, e que nada mudará esse fato, eu respondo:

Verdade, cachorro com muitos donos morrem de fome, mas cachorro sem dono algum, o cachorro de rua nunca morre de fome.

Para explicar como isso acontece precisamos desconstruir uma “verdade” que todos acreditamos e que se comprova na prática justamente o contrário, “Se ninguém for designado para fazer algo, aquilo não será feito por ninguém.”, e entender como a hierarquia tem sua participação na morte do cachorro.

Hierarquia e a competição

Foi inserido em nossa lógica, por nossa cultura, que isso realmente é um fato, que se ninguém tiver a obrigação, a responsabilidade por algo que precisa ser feito, aquilo nunca será feito. Essa lógica foi passada de geração em geração, por nossos pais e descendentes, baseados na sociedade de séculos atrás, um sociedade que por diversas necessidades se desenvolveu de forma hierárquica e estruturada em tarefas que eram feitas por escravos e posteriormente por empregados.

Toda a sociedade estruturada de forma hierárquica impede o comportamento colaborativo com regras e preceitos rígidos e favorece a competição humana, uma vez que para subir na “pirâmide social” precisamos obrigatoriamente ser melhor que nossos colegas.

Essa forma se propagou por tantos séculos que hoje temos a tendência em acreditar que “o ser humano é competitivo por natureza”, que “as coisas sempre foram assim”, que “é um processo natural onde o mais forte (preparado) exerce poder e controle sobre os mais fracos”.

Muitos estudos antropológicos, sociológicos e pedagógicos já demonstravam que essa não é uma “verdade”, mas sim um comportamento existente somente em sociedades que tenham essa estrutura hierárquica, e que as crianças aprendem a competição por influência do que vêm, e lhes és ensinados, e de que certa forma a sociedade os obriga a se comportar.

Sem entrar em uma discussão profunda sobre esse assunto, que dá “muito pano pra manga”, vamos partir da hipótese de que o ser humano é por natureza COLABORATIVO, e que estruturas horizontais fomentam a COLABORAÇÃO.

A era da colaboração

Hoje percebemos que a COLABORAÇÃO é algo emergente no dia a dia, vemos todos os dias sites, aplicativos, empresas e novos negócios que estão revolucionando a forma como fazemos as coisas usando o poder da colaboração que hoje a internet e celulares proporcionam.

Tribos indígenas eram estruturadas socialmente e fisicamente de forma a proporcionar a colaboração de todos, todas as ocas eram dispostas em circulo tendo ao centro uma grande área onde ritos eram feitos. Esse layout da tribo permitia que todos cuidassem de todos, que tudo ficasse ao alcance de todos. Nada era escondido.

A internet e os celulares estão nos proporcionando essa reestruturação social de forma virtual. Temos pela primeira vez a oportunidade de trazer à luz tudo aquilo que precisamos fazer e mostrar como fazemos para os que nunca fizeram.

Aqui entra o conceito do “cachorro com muitos donos”, numa estrutura hierárquica e fechada (com muros), não conseguimos ver o cachorro o tempo todo e ainda entendemos a posse do cachorro que sabemos ser de alguém e automaticamente nos eximimos da responsabilidade de alimentá-lo.

Na rua, enxergamos os cachorros abandonados, o sistema é aberto, sem muros, e não identificamos a posse do cachorro por alguém então automaticamente sentimos o impulso de alimentá-lo mesmo não sendo nossa a responsabilidade.

Isso acontece também quando uma tarefa de uma empresa é apresentada em um sistema aberto e não é dado a posse, ou melhor, designado a responsabilidade da tarefa a uma pessoa.

Revolucionando a gestão nas empresas

Tarefas compartilhadas e executadas colaborativamente resultam em maior velocidade e eficiência com alguns bônus como engajamento, motivação, inteligência coletiva e etc…

Mas para conseguir chegar a esse ponto há dois obstáculos que precisam ser removidos da equação:

Cultura:

Não há como uma empresa implementar a colaboração sem abrir mão dos cargos, dos egos, dos especialistas.

Os donos das empresas precisam abdicar do sentimento de posse, o mesmo vale para gerentes de produtos e líderes de projetos. Todos que trabalham na empresa precisam sentir que eles são mais donos da empresa do que a empresa é delas, logicamente que os funcionários sabem que não são donos da empresa, mas retirando a “posse” do diretor de um projeto, compartilhando essa “posse” com toda a equipe do projeto, dando autonomia, sendo transparente, permitindo a participação multidisciplinar cruzada de especialidades, o SENTIR da equipe do projeto será de PERTENCIMENTO. Os funcionários trocaram frases do tipo “eu sou de vendas” para “eu faço as vendas”, “eu sou da equipe de desenvolvimento do produto X” para “eu desenvolvo o produto X”

Processos

As empresas são em sua maioria estruturadas em hierarquia de comando, então as responsabilidades são atribuídas de acordo com o cargo e salário nesta estrutura.

É comum ouvirmos quando algo dá errado ou não é feito, coisas do tipo “isso não é função minha”, “não fiz pois fulano de tal também não fez”. As tarefas necessárias para o funcionamento da empresa são distribuídas arbitrariamente para as pessoas da empresa sendo de responsabilidade única e exclusiva dela.

O primeiro passo para a empresa colher os frutos da colaboração é substituir os processos que delegam tarefas para processos claros e transparentes para que qualquer um possa realizar a tarefa.

Os ditos processos atuais na verdade não são processos, são organogramas que apontam pessoas que sabem o processo de como fazer aquela tarefa. Processos são na realidade explicações claras da tarefa que deve ser executada, com apresentação das ferramentas que serão executadas e manuais para o correto uso, mas o mais importante é deixar claro o objetivo da tarefa com especificações de como deve ser entregue a tarefa, para quem e qual o motivo da tarefa.

Assim tiramos a tarefa de uma pessoa e passamos ela para a empresa, tiramos a responsabilidade do indivíduo e passamos a responsabilidade para a empresa. Os funcionários param de fazer o que foram designados e passam a fazer e o que precisa ser feito.

Desta forma também despertamos o SENTIR de PERTENCIMENTO do funcionário que consegue enxergar melhor a importância do seu trabalho no todo da empresa e a empresa consegue agilidade e liberdade dos funcionários que faltam ou mudam de emprego, já que agora o processo está documentado e não mais na cabeça do funcionário.

Epílogo

Cachorro = Tarefa

Cachorro com um dono, não morre de fome enquanto o dono alimentar, se o dono morrer ou esquecer o cachorro morre

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Tarefa delegada a um funcionário só é feita se o funcionário a fizer, se ele faltar ou esquecer a tarefa não é feita.

Cachorro sem dono é cachorro de rua, que é sempre alimentado por alguém que consegue um tempo livre e se responsabiliza naquele momento pelo cachorro para alimentá-lo, como existem muitas pessoas ele nunca morre de fome.

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Tarefa não delegada a alguém é tarefa explicada em um processo, que é sempre realizada por algum funcionário que está com tempo livre e escolheu se responsabilizar naquele momento pela tarefa, a empresa precisa ter funcionários suficientes para que todas as tarefas sejam realizadas.

Escolha a quantidade de cachorros, ou melhor, tarefas que sua empresa terá, mais tarefas mais funcionários serão necessários.

Desenvolva processos eficientes para que as tarefas sejam Chihuahuas e não Pitbulls.

A velocidade da sua empresa depende de quantas tarefas você consegue entregar no menor tempo possível, com a colaboração o tempo livre de todos os funcionários são usados para as tarefas necessárias evitando funcionários que estão sempre fazendo hora extra e outros que gastam tempo no Whatsapp.

Invista em tecnologias colaborativas, computação nas nuvens, passe todos os usuários da empresa para administradores dos sistemas, misture as equipes, pergunte a todos como se sentem, olhe para seus funcionários como seu maior ativo e proporcione um trabalho em equipe.

Tenha coragem de rever seus conceitos, pare de pensar que informação é um bem que precisa ser guardado.

Divulgue, compartilhe, espalhe a informação, ela compartilhada resulta em inovação, velocidade e propósito. SEJA TRANSPARENTE.

Entre nesta revolução da colaboração antes que o trem parta da estação.

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