O futebol mais que o reggae

Novo episódio da série documental em homenagem aos 75 anos de nascimento de Bob Marley mostra que o gênio rasta era antes de tudo um boleiro

Tato Coutinho
Folhas secas
6 min readOct 11, 2020

--

“Não o artista, não a lenda, mas o jogador de futebol, Bob”

Nem sempre um fim em si mesmo, no espetáculo do jogo, o futebol é também um meio, linguagem auxiliar na expressão da criatividade de quem a ele se entrega. Não são raros os talentos polivalentes como Chico Buarque à frente de seu Politheama; o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, centroavante furioso; o filósofo francês Albert Camus e o poeta russo Yevgeny Yevtushenko, goleiros apaixonados — e o jamaicano Bob Marley (1945–1981), fominha e rastafári mor.

O recém-lançado quarto de doze episódios planejados para a série documental Legacy, em homenagem aos 75 anos de seu nascimento, é dedicado à sua fixação no scrimmage (um arranca-rabo, em bom português), como ele se referia às peladas que organizava onde quer que pudesse, pelos quatro cantos em turnê pelo mundo. “De certa forma, Bob estar em campo é como se fosse quem ele é. Ele não está no palco, se apresentando, pode ser livre só para jogar bola”, diz Ziggy, seu filho e principal herdeiro musical, em Rhythm of the Game (Ritmo do Jogo), disponível no canal de Marley no YouTube. “Então, se você quisesse conhecê-lo, esta teria sido uma boa experiência, conhecer de fato o homem, não o artista, não a lenda, mas o jogador de futebol, Bob.”

A cinematografia é espetacular, dedicada à representação da espiritualidade rastafári para o músico, a busca por uma ligação sem intermediários com a energia cósmica do planeta — ok, a maconha ajudava, como é tangenciado em Righteousness (algo como retidão, em português), o terceiro episódio da série, dedicado à fé religiosa com raízes na Etiópia. O contexto é estabelecido a partir da edição quase delirante de imagens e clipes de arquivo misturadas às gravações da natureza exuberante no interior da ilha, onde Marley nasceu, em Saint Ann, e do futebol de raiz jogado em Trench Town, a miserável favela da capital Kingstown onde sua mãe viria se estabelecer dez anos depois, abandonada pelo marido no dia seguinte ao casamento.

Nada disso interessa muito ao projeto, mais voltado ao que Marley representa hoje do que à sua história em si. As entrevistas com os filhos, parentes e os amigos dos velhos tempos são o ponto alto de Legacy, estabelecido logo na abertura do primeiro episódio, 75 Years a Legend (75 Anos de uma Lenda), nos bastidores de uma gravação de Ziggy com um dos músicos que acompanharam o pai — “Que experiência divertida. Para mim é legal porque estou conhecendo pessoas que conhecem um Bob diferente de quem conheci”.

São esses personagens que ajudam a estabelecer no futebol a origem do apelido de Marley, que nomearia o selo musical do artista e seus negócios no futuro — Tuff Gong, corruptela de “rough gong”, um gongo rude, firme e resistente, que reverbera mais forte quanto maior a pancada, justo como aquele garoto franzino em campo pelo Boy’s Town, time de Trench Town. A neta Donisha Prendergast, filha de Sharon Marley, insinua a dimensão que o esporte tinha para o avô. “Há algo na rotação da bola, na camaradagem que o jogo cria ”, ela diz. “Um lugar seguro fora do espaço da sua casa, fora do seu espaço de trabalho.”

Quando começou a viajar em turnês com os The Wailers, na virada dos anos 1960 para os 1970, Marley enxergava na banda também um time. Para ele, tanto o reggae quanto o futebol estavam fundados na ideia do corpo como um instrumento em si, canal de expressão dos ritmos do mundo, em sintonia com a batida do coração — o primeiro “tum, dum” que a gente ouve, como explica um dos amigos. Para a entourage, a começar por Marley, a movimentação em campo era como a dança no palco, a evolução do jogo era como a harmonia na música.

Seus companheiros descrevem sua performance com a bola no pé como a com o microfone na mão — em ação, ele não gostava de largar nem uma nem outro. Designer de boa parte das capas dos álbuns de Marley e parceiro desde os primeiros scrimmages, o diretor de arte Neville Garrick lembra de uma das temporadas que viveram em Londres, nos anos 1970, como “estúdio, futebol, estúdio, futebol”. Numa das partidas que jogavam com frequência no Battersea Park, em Chelsea, onde moravam, Marley teria “acabado com o jogo” contra um time da gravadora com quem começava um relacionamento, a Island Records. “Ele sempre ficava com a bola. A bola raramente ia para mais alguém.”

Bob Marley e Paulo Cezar Caju no campo do Politheama

O episódio peca apenas pela abordagem vacilante de sua passagem pelo Brasil, no começo de 1980. A admiração pelo país vinha das semelhanças que ele percebia com a Jamaica no “deixar-se levar”, o free flow característico do “futebol-samba” que tanto admirava — são clássicas as fotos dele com uma camisa da seleção, à época da Adidas. Ele desembarcaria no Rio de Janeiro para o lançamento da gravadora alemã Ariola, que editaria seus discos por aqui, ao lado de artistas como Chico Buarque. O campeão mundial e colunista da PLACAR Paulo Cezar Caju seria convocado pessoalmente pelo jamaicano para um de seus descompromissos cariocas. É ele quem recupera o episódio de 40 anos atrás, esquecido por Legacy: “Eu jogava no Vasco naquele ano. A Glória Maria, repórter da Globo, me procurou na cobertura da visita e falou que uma das coisas que Bob queria muito fazer era me conhecer. Ele tinha admiração pela minha luta, pelas minhas posições em defesa da igualdade de direitos, do movimento negro — e, claro, pela geração de 1970. Nos encontramos no Copacabana Palace, onde estavam hospedados. Caretaço, eu não bebia, não fumava, nada, vi ele abrir uma mala de maconha e apertar um charuto como nunca vi [gargalha]! Rodamos pelo Rio, levei ele e a banda no Noites Cariocas, do Nelsinho Motta, meu amigo de infância. No dia seguinte, armei de a gente ir jogar no campo do Politheama. Montamos um timaço para enfrentar uma linha da gravadora. Não me lembro quem pegou no gol, mas jogamos com o Bob, o [Junior] Marvin e o Jacob [Miller], da banda dele, e o Chico, o Toquinho e o João Luiz Albuquerque, um jornalista ótimo da Manchete. Foi uma maravilha, ganhamos de 3 a 0. Bob era habilidoso, rápido pela esquerda. O Chico fez um, eu fiz outro e o Bob fez o dele. Foi numa tabela comigo, eu dei um passe de letra e ele bateu de canhota, de curva. Cara, fiquei feliz da vida. Imagina, eu um ídolo para o Bob. A geração de 1970 mexeu com o mundo”.

Curto e bem editado, Rhythm of the Game é revelador ao mostrar como a ligação de Marley com o futebol vem atravessando gerações da família até chegar à seleção feminina da Jamaica na Copa do Mundo em 2019, apoiada pela primogênita Cedella. É como ele diz, na frase que funciona como epígrafe na abertura do episódio — “O futebol é parte de mim. Quando eu jogo, o mundo acorda à minha volta.” //

HINOS DE MARLEY

A frente dos Wailers, ele compôs canções inesquecíveis em 14 álbuns, fora a coletânea póstuma Legend, listada aqui neste trio de ataque

Burnin(1973) | Stand Up, Get Up e I Shot the Sheriff dão o tom de sua mensagem em defesa dos direitos civis nos guetos pelo mundo — a busca da espiritualidade elevada não exclui a autodefesa, que pode se tornar violenta.

Uprising (1980) | O mais fino dos discos de Marley, com canções que enfrentam a dificuldade de tratar os temas espirituais em um mundo cada vez mais materialista. Lições para sempre em Could You Be Loved e Redemption Song.

Legend (1984) | Entre os 50 melhores álbuns de todos os tempos na lista da Rolling Stone americana, a coletânea lançada três anos depois de sua morte estabelece a versão definitiva de seus clássicos — como No Woman, No Cry ao vivo.

Publicado originalmente na revista Placar em julho de 2020.

--

--

Tato Coutinho
Folhas secas

Editor na Livros de Família, é jornalista com passagens pela Editora Abril, TV Cultura e Trip Editora