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Gui Mendes
FolhetimCoreia
4 min readMar 5, 2018

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Eu olhava fixamente para o quadro. Não era um quadro. E eu não podia olhar, porque sabia que estava de olhos fechados, num apartamento na Pituba, no oitavo andar. Sabia também que eu estava de cueca, mas lá, usava a minha fantasia do Batman. Engraçada e encantadora quando num garoto de 8 anos de idade, estranhamente bizarra num homem na casa dos 30. Sentia-me um jovem Adam West, mas lá, eu era o Burt Ward.

Ele estava do meu lado, com trajes extremamente desconfortáveis para uma pessoa que havia tirado o dia para ir à praia. Parecia ter saído de um daqueles filmes dramalhões da Sessão da Tarde, onde o protagonista descobre uma doença terminal, e no caminho de volta para casa resolve refletir sobre a própria vida, indo para o litoral de blazer, segurando os sapatos de couro nas mãos. Obviamente, quem era eu para falar alguma coisa, eu era o homem-morcego, o cavaleiro noturno, não estava no meu habitat natural. Assim como ele.

— É muito bonito aqui.

E tinha razão, era mesmo. O horizonte que chamei de quadro, era a síntese do impressionismo. Translúcido, dançava, misturando-se de tal modo que era impossível distinguir aonde começava o céu, e terminava o mar. É uma daquelas coisas que te faz falar “Você tinha que estar lá”, é a pura verdade, só que eu não estava lá. Só de pensar que provavelmente não mais me lembraria daquela cena, dava-me pontadas de melancolia.

— O que é esse “aqui”? — perguntei.

— Eu nem sei, faz alguma diferença? — ele respondeu e fiz que não com a cabeça.

As milhões de partículas de rochas, desagregadas, cintilavam uma paleta de cores saturada. Só nossos passos ficavam para trás, enquanto caminhávamos lado a lado, como se já tivéssemos feito aquilo antes, mas eu lembro que esta chance nunca nos foi dada. O silêncio não era desconfortável, era uma visita bem-vinda, que ajudava no andar, à medida que nos afastávamos da vida, a caminho do escuro no ventre do universo.

— Você disse que estaria sempre por aqui, sempre que eu precisasse de você. — questionei e acordei.

Este teto eu conheço. A mancha feita pelo sangue daquela muriçoca ainda continua lá, aquela que me lembrava um brontossauro, aquele do pescoço largo… Eu acho. A cama está bagunçada porque ela dormiu aqui ontem — disso eu lembro — do sonho só me lembro do quadro. Porque tinha um quadro nele.

— Hoje vou sair mais cedo. — disse ela por entre os dentes, escovando-os, sendo tão bela quanto a primeira vez que a vi na livraria, me xingando por cortar a fila.

— Você tem mesmo que sair da cama tão cedo?

— Tenho. Hoje tenho sessão com aquele cara que acha que não gosta de frango por ter um trauma obscuro com a mãe. Ele não pode ir mais tarde, tem outra consulta eu acho. Urologista? Acho que era. — ela disse apertando a saia contra as coxas, que combina com seus sapatos. A saia é claro, não as coxas. Porque as coxas dela combinam com tudo. Uma coisa preciso dizer, eu amo as suas curvas baixas. Ela já me disse uma vez que é esse o jeito que a mente de uma pessoa se expressa, quando ela se interessa por pernas, ou por pés, ou o conjunto dos dois. É bem diferente da mente de alguém que se interessa por seios. Homens que gostam de seios tendem a ser agressivos, atirados, atléticos. Pessoas que gostam das partes baixas do corpo feminino inclinam a ser assustadas, introvertidas, sensíveis. Tem muito a ver com estar abaixado no chão quando se é uma criança medrosa, olhando para cima, para aquela grande torre que é a mãe. O que há lá embaixo? Os pés e as pernas, e todo o conjunto da obra, e é exatamente onde a segurança está.

— Eu sonhei com meu pai ontem. Estávamos numa galeria, eu acho. Acho que a gente via os quadros desenhados pelo universo. — a puxei, segurando sua cintura, e fechando-a em minhas pernas enquanto a beijava.

— Para com isso. Você sabe muito bem que não posso me atrasar. — se desvencilhou. — E teve mais o quê no sonho? — arrumou a roupa amassada.

— Não sei, acho que ele queria me falar alguma coisa. Faz tempo que não sonho com ele, quando ele morreu, eu tinha pesadelos terríveis. Mesmo não tendo mais idade para esse tipo de coisa.

— E existe idade para pesadelos? — ela pergunta, pendurando os brincos argolados, e eu me levanto a prendendo em mim contra a parede. Um sanduíche perfeito.

— Meu pesadelo seria você sair agora, logo agora, que a gente podia fazer tantas outras coisas melhores.

— Se me soltar agora, eu prometo que vou compensar por tudinho quando voltar. — me mordeu no ombro, e eu tinha uma escolha nas mãos. Uma mais difícil do que escolher qual o melhor álbum dos Beatles. Sim, genuinamente gosto dos Beatles.

— Certo, eu tenho um encontro com meu agente hoje também. Você me fez esquecer completamente. — deixei-a ir, depois que pagasse o tributo. Seus lábios e língua tinham gosto de pasta de dente, o meu, provavelmente, de ressaca de uísque aguado.

“Me espera acordado”, seu olhar me contou, quando seus lábios apenas sorriram, fechando a porta atrás dela. Eu estava sozinho. Sozinho com minha ereção matinal.

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