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Eu não entendia o porquê dele usar uma meia-peruca. Mais fácil assumir a calvice do que ter que gastar horas arrumando aquilo, e ficar a merda que sempre fica. Nunca disse isso a ele, mas um dia arrumo coragem, num final de uma bebida ou num acesso de raiva.
Ele é o tipo de cara que não come sozinho, é generoso, a mesa também tem que comer junto com ele, o chão, parte do guardanapo, e até parte de sua roupa. Juro que uma vez encontrei resto de comida em sua nuca, e nunca tive a coragem de perguntar como que fora parar lá. Mas esse era o meu agente literário, e apesar dos pesares, eu gostava dele. Sério, eu gostava.
— E o próximo livro? Como vai? — ele me perguntou desabotoando o paletó, dois números abaixos do que ele realmente deveria usar.
— Que próximo livro Arnaldo? — o gaspacho estava uma merda, o que me lembrava o porquê de não ir à restaurantes italianos, e o meu motivo de odiar qualquer comida que se diga “salgada” ter a ousadia de ser servida fria.
— Chico, seu livro já vai completar 10 anos. 10 anos! Você tem noção? Eu ainda tinha cabelo 10 anos atrás… — era mentira, não tinha. — Já estamos discutindo uma edição especial de capa dura com a editora. Com algumas partes que foram cortadas na edição antiga.
— Você sabe que tenho andado ocupado, escrevendo outras coisas.
— Para com essa porra de escrever pra revista, a coluna de jornal também, você tem que se focar em retornar para o jogo de verdade. Você é um romancista, meu caro, não é um blogueiro, nem um colunista qualquer. — concluia as frases com o barulho de sucção que fazia com a colher, se deliciando com a sopa, enquanto ajeitava os óculos quadrados com a outra mão.
— Você está bem? Está suando feito um porco. — bebo whisky com água, ele bebe vinho, fazendo uma mistura de cheiros terríveis com o tempero batido, suor e uva fermentada. O que me dá vontade de vomitar antes do prato principal, mas eu gosto dele, não entendam errado.
— Eu sempre suo feito um porco. E não mude de assunto! Você precisa parar com tudo o que está fazendo agora. Já saiu a coletânea de contos, deu pra ganhar uma grana, mas o mundo precisa de uma nova história que saia da sua cabeça. E que de preferência enche nossos bolsos.
— Você fala de um jeito como se eu não quisesse escrever. — bebo.
— Olha, antes que eu me esqueça. Você vai pra bienal no Rio. Montaram uma palestra com algumas pessoas para discutir sobre literatura e outras coisas mais.
— É assim? Não me leva para jantar nem nada?
— Por que você acha que te chamei aqui? Estou adiantando a baboseira para as preliminares.
— Eu vou ser sincero contigo Arnaldo. Você é meu agente, por alguma convenção que desconheço, provavelmente, tenho que ser sincero contigo. — ele parou com a lambança. — Eu comecei alguns livros, você sabe disso, mas eu nunca consigo terminar. Sempre meu computador quebra, ou a máquina de escrever trava na letra ‘d’, até com papel e caneta eu já tentei, só que a caneta estourou na minha mão. Eu acho que estou amaldiçoado, e mesmo quando chego a algum lugar nunca é igual ao primeiro, o primeiro parece que escreveu por si só, todos os outros parecem não querer nascer. Matam-se com o cordão umbilical antes mesmo de sabermos o sexo deles.
— É normal, é a síndrome de todo escritor que alcança um certo sucesso como o seu no primeiro livro. Você está com medo de não mais conseguir o mesmo feito com os próximos, não pense nisso. — voltou à batalha com o prato.
— Não é isso, se fosse, eu saberia. É alguma outra coisa, ela está me puxando de volta para onde eu não quero. Para onde eu nunca deveria ter ido em primeiro lugar. Eu estou amaldiçoado, foi aquela cartomante que você me indicou. — bebi, ou foi o que eu achei, até sentir o gelado do whisky com água atingir o meu peito, me forçando a levantar com um espanto.
— O que foi isso? — riu o pançudo na minha frente, retorcendo o bigode à medida que seus dentes tortos zombavam de mim, balançando na gengivite. Por pouco não falei da meia-peruca, eu gostava dele no fim das contas. — Você parecia uma criança de 2 anos agora, tentando beber água no copo pela primeira vez.
— Minha mão tremeu sozinha, sei lá que porra foi essa. — usei a toalha da mesa na minha camisa de botão branca, sem sucesso, a sujeira já estava montada. Manchou.
— Você precisa é escrever um romance! Por isso que sua mão está te repreendendo dessa maneira, para te lembrar. — rimos, ele de verdade, eu sem graça, mas eu bem que poderia ter mandado ele se fuder naquele dia, ficou para uma próxima oportunidade.
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Eu odiava salas de espera, mesmo naquela época. Era um lugar, exclusivamente adulto, e eu não confiava em nenhum que não fosse parte da minha familia. O que limitava muito as coisas. Tudo ali era uma ameaça em potencial, a TV velha de tubo, que na epóca não era velha, as revistas rasgadas, as pessoas entediadas, esperando pelo carcereiro, a qualquer momento poderiam se voltar contra mim. O pior de tudo era o cheiro, havia algo de errado acontecendo por ali, e aquilo ficava claro no odor que alcançava minhas jovens narinas. Minha mãe estava comigo, mas eu não estava com ela. Estava com meus Comandos em Ação, reencenando algum filme que vi, algumas das aventuras de Snake Plissken, provavelmente. Com eles eu estava bem, e eles comigo, seguros, com minha mãe e seu livro de bolso.
— Ele disse que é causa de estresse, os músculos as vezes respondem dessa maneira também à movimentos repetitivos. Recomendou umas férias, e me afastar um pouco das obras pode ajudar. — falou, chegando sem eu perceber. Dessa vez mais jovem, e não encarava nenhum quadro feito pelo universo que não os olhos da minha própria minha mãe.
— Você realmente se estressa muito quando vai visitar as obras, eu já te disse isso antes. — ela respondeu carinhosamente, acariciando uma barba rala.
— Eu não consigo.— eu me lembro que ele parecia, de alguma forma, desapontado. Da mesma maneira que me observava quando eu não ia bem nas provas de matemática. E só lembro disso com tamanha precisão, porque aquele olhar me acompanhou por um longo longo tempo.
— Você nem imagina o quanto que passo por isso na sala de aula. As vezes eu acho que essa juventude está perdida. — ela refutou levantando-se enquanto guardava o livro em sua bolsa grande.
— Podemos ir ver as girafas agora? — eu peguntei. E tenho quase certeza que os vi sorrindo aliviados.