Das Nachtvirus, Parte I: Fragmentos Noturnos de Berlim

“Reerguidos das ruínas”. Assim se chama e começa um dos mais marcantes hinos da história Berlinense. Aqui jaz um relato da vida noturna da capital europeia da cultura, que começa também aos poucos a sua ressureição após um longo período de turbulência pandémica.

David Rodrigues
Folie à Deux
3 min readSep 15, 2020

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“Auferstanden aus Ruinen
Und der Zukunft zugewand
Lass uns dir zum Guten dienen
Deutschland, einig Vaterland”

-Johannes Becher e Hanns Eisler, “Hino Nacional da República Democrática da Alemanha”, 1ª Quadra, 1941

À noite, na Bahnhoff Friedrichstraße, ouvem-se vários idiomas durante a espera pelo metro. Jovens, a maioria de fato de treino e cerveja na mão, evitavam pisar enquanto desciam rápidamente as escadas um corpo inerte que sucumbira decerto ao torpor paralítico do excesso de álcool ou heroína. Entre risadas e goles de Becker, um desses grupos entretinha-se em tentativas sucessivas de equilibrar uma garrafa verticalmente depois de a lançar ao ar. Simultâneamente, num banco de metal, o monólogo ansioso e desesperante de uma jovem berlinense contrastava com a atmosfera agridocemente festiva que se havia apoderado do local.

Fachada do Berghain, onde se lê “AMANHÃ É A PERGUNTA” numa faixa pendurada no seu topo. A faixa é da autoria de Kirkrit Tiravanija, artista tailandesa originária de Buenos Aires.

Com o fecho dos muitos locais de culto da cena noturna berlinense, como o Berghain, os foliões fizeram da rua e das estações de metro o seu local de eleição para as suas eternas e noturnas celebrações hedonistas. Alguns bares, por enquanto abertos, refugiam as gentes noctívagas da cidade, que bebem e cantam num companheirismo inamovível e quase absorto da força das circunstâncias. Enquanto pedia educadamente uma cola como pretexto para usufruir das instalações sanitárias, duas mulheres, uma jovem e outra de meia-idade, dançavam alegremente ao som de clássicos Americanos. Devidamente aliviado e desinfetado, agradeci a hospitalidade ao dono do estabelecimento, que insistiu em dar-me um enérgico aperto de mão seguido, claro, da obrigatória dose de álcool gel.

Pouco depois, na marginal do Spree, com vista privilegiada para um majestoso edifício marcado por um saliente “7up” grafitado a letras garrafais, ouviam-se ecos, gargalhadas e o constante tilintar das caricas de cerveja a bater no asfalto. Um grupo de 8 a 9 homens reunia-se num círculo para dançar ao som de vários hits bollywoodescos, como Beedi ou Kajira Re, temas integrantes da banda sonora da novela “Caminho das Índias”, a festiva Jhoom ou ainda a super-famosa “Chayya Chayya”, numa deslumbrante demonstração de profundo e diversificado conhecimento folklórico indiano que ultrapassa a qualidade musical de muitas das festas que acontecem em Berlim.

De volta à estação de metro de Friedrichstraße, depois de um arranque imaginário potenciado por distrações conversacionais, a viagem começa finalmente. Entretanto, eu e o meu colega, que há muito embarcáramos numa longa conversa, concluíamos para muito espanto nosso que a carruagem estivera parada durante todo aquele tempo na mesma estação, após vários olhares incrédulos pela janela.

Ao chegar ao nosso segundo destino, optamos por um longo passeio pelas ruas pontuado por uma estadia na escadaria de uma piscina municipal. Lá, discutiu-se, entre vários outros assuntos, a omnipresença de gunas no contexto metropolitano Portuense e a sua diminuição ao longo dos últimos dois ou três anos. Mais tarde, de volta à paragem com intenção de tornar a casa, assaltou-me uma intensa sensação óssea ao olhar fixamente a perna prostética de um alegre utente do metro que subia as escadas para a plataforma. Ao entrar numa carruagem muito peculiar, desdobrava-se já outro espetáculo visual e sensorial à minha volta. Padrões geométricos que pontuavam o fundo cor-de-rosa omnipresente do interior da carruagem pareciam dançar alegremente o “Vira”. Seguiu-se o habitual solavanco, enquanto um trilho maravilhoso de luzes goticuladas de todas as cores se arrastavam fora da janela. Ressoava pela carruagem uma hipnotizante mescla acústica de sobreposições vocais e mecânicas, aparentemente masterizada por entidades desconhecidas, que lembrava o silvo de uma cobra metálica, dançando ondulante pelas veias metropolitanas de berlim ao som de cânticos situados algures entre o ancestral e o urbano.

Chegados a Adlershof, paramos para comprar bebidas num de muitos provedores de kebab e currywurst (este último de dúbia qualidade) antes de tornar a casa. Seguiu-se uma longa sessão de música alimentada pelas sonoridades de Heckmann, Boy Harsher e, claro, Gonzo.

Depois, já cansados, fomos dormir.

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