“Não jogue”

Autor: Mardy Fish
Tradução: Rodrigo Moncks

Rodrigo Moncks
Fonte Alternativa
10 min readNov 16, 2016

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Daqui algumas horas jogarei a maior partida de tênis da minha vida: a quarta etapa do US Open. No dia do trabalho. No aniversário do meu pai. No estádio Arthur Ashe. Na CBS. Contra Roger Federer. Daqui algumas horas enfrentarei o maior tenista de todos os tempos, buscando o melhor resultado da minha vida, no meu torneio preferido. Daqui algumas horas jogarei a partida pela qual se trabalha, se sacrifica, por uma carreira inteira.

E eu não consigo.

Eu literalmente não consigo.

É começo de tarde e estou no carro que me leva até à quadra.

E estou tendo uma crise de ansiedade.

Na verdade estou tendo várias crises — primeiro a cada quinze minutos, depois a cada dez. Minha cabeça começa a girar. Estou perdendo a cabeça.

Minha esposa está me perguntando: “O que podemos fazer? O que podemos fazer? Como podemos melhorar isso?”.

Eu a digo a verdade: “A única coisa que me deixa melhor agora… é a ideia de não jogar essa partida”.

Ela hesita; me olha por um segundo, para garantir que estou falando sério. Eu estou falando sério. Não estou pensando — estou reagindo, sentindo, sobrevivendo. Ela responde calmamente. “Bom, então você não deve jogar. Você não precisa jogar. Só… não jogue”.

*

Meu transtorno de ansiedade começou em 2012, durante o que deveria ter sido o ápice da minha carreira. Eu estava no final de uma longa jornada — alguns anos -, onde as coisas realmente começaram a dar certo.

Em 2009 eu tive uma experiência que mudou minha vida. Eu tinha 27 anos. Até então, estava tendo uma boa carreira. Era uma carreira pela qual, por vários motivos, me sentia orgulhoso: havia ganho a medalha de prata nas Olimpíadas de 2004, tive alguns resultados bons em Grand Slams, conheci o mundo, ganhei um bom dinheiro. Mas eu não tinha criado um legado.

Eu havia recém me casado, e minha perspectiva estava mudando, amadurecendo. E eu acho que apenas percebi, de uma forma que não havia antes, de que uma “boa” carreira não era o bastante para mim. Que eu não havia acabado. Que eu ainda queria construir alguma coisa no esporte. E que, mais importante de tudo, era agora ou nunca.

Mudei minha alimentação, meu estilo de vida e, sinceramente, toda minha aparência. Fui de 90 kg para 78 kg. Encontrei meu peso perfeito. Eu não tinha certeza de onde tudo isso iria me levar, mas sabia que eu precisava descobrir.

Em 2010, comecei a ter resultados. Ganhei do Andy Murray em Miami sem perder um set — um resultado que eu nunca atingiria antes. Participei do Open da França, perdendo a segunda partida no quinto set por 10–8 para o Ivan Ljubicic, nº 14 do ranking, jogando em um nível que nunca imaginei atingir. Ganhei dois torneios em sequência naquele verão, em Newport e Atlanta — ganhando do John Isner na final de Atlanta durante uma onda de calor que fez a quadra atingir uns 65 graus. Perdi a final em Cincinnati para o Federer por 6–4 na terceira partida, uma que eu poderia ter ganho. E venci o Andy Roddic — que até então havia ganho 8 partidas seguidas contra mim — algumas vezes.

2011 foi ainda melhor. Tive meus melhores resultados em Roland Garros e Wimbledon. Passei o Andy, um dos meus melhores amigos, e me tornei o nº1 nos Estados Unidos. E então — e talvez o mais legal de tudo — eu oficialmente me tornei um dos 10 melhores tenistas do mundo. Em 2012 me tornei nº 8. Era tudo pelo que eu havia trabalhado — e me reconstruído — pelos últimos anos. Eu não era só mais um jogador. Eu estava em um nível de elite.

E foi aí que as crises de ansiedade começaram. A ansiedade é um transtorno difícil de precisar sob uma perspectiva de causa e efeito, mas quando penso no seu gênese, algumas coisas me vêm à cabeça.

A primeira é que minhas expectativas mudaram, tanto externamente quanto internamente, junto com a minha posição no ranking. Analisando agora, talvez não tenha sido a coisa mais saudável. Meu desagrado com o status quo — que foi útil quando havia 20 jogadores na minha frente no ranking — virou algo mais estressante, mais destrutivo, quando o número diminuiu para 7.

A ideia de que eu não era bom o bastante se fortaleceu — me fez atingir coisas incríveis numa idade que muitos jogadores começam a pensar em aposentadoria. Mas também ficou difícil de desligar isso. Eu estava, objetivamente, indo muito bem. E, olhando pra trás, eu gostaria de ter dito isso para mim mesmo. Mas “indo muito bem” não era algo que a minha cabeça conseguia processar na época. Eu só conseguia pensar em ser melhor. Era uma faca de dois gumes.

E a segunda é que eu comecei a ter umas arritmias no coração. Uma arritmia é basicamente a eletricidade que envolve seu coração funcionando mal. Meu coração batia de forma estranha, e eu não conseguia pará-lo. Foi muito assustador. Tirei uma folga e fiz um procedimento chamado ablação, que me deixou aparentemente “bem”.

Mas quando voltei para as quadras naquele verão, perto de Wimbledon… foi quando comecei a ter esses pensamentos estranhos. Pensamentos desconfortáveis, ansiosos. Como se eu estivesse nervoso por causa de algo que fosse acontecer — mesmo que acabasse nunca acontecendo. E eu acho que o que aconteceu com meu coração foi, por vários motivos, desencadeado por esse trauma aparecendo no fundo da minha cabeça.

Eu não conseguia mais dormir sozinho. Minha esposa precisava estar ali comigo, sempre. Eu precisava de alguém comigo, sempre. Eu era um homem que adorava estar sozinho. Sempre adorei viajar sozinho, aquela solidão. O sentimento de desligar o telefone quando se está iniciando uma viagem de avião… ele costumava me deixar em paz. E, do nada, eu não conseguia mais viajar sozinho. Meus pais tiveram que ir a Wimbledon. Eu precisava de pessoas por perto, sempre.

E, no meio tempo, continuei tendo esses… pensamentos. Essa ansiedade. Fui consumido por esse pavor confuso e exaustivo.

E as crises… só… pioravam.

Enquanto isso, ironicamente, eu seguia indo bem em quadra: estava na quarta etapa de Wimbledon e nas quartas-de-final no Canadá e em Cincinnati. Eu ainda estava jogando bem.

Era só longe das quadras que esse problema existia. Que esses pensamentos me inundavam. E eles se tornavam mais frequentes: primeiro aconteciam uma ou duas vezes por dia; depois, várias vezes ao dia; até que, no final do verão, passaram a acontecer de 10 em 10 minutos. Uma onda esmagadora de ansiedade. Quando volto pro hotel, pesquiso “crises de ansiedade”, “crise do pânico”, “depressão”, “saúde mental”… mas eu não entendia nada. Eu não sabia o que fazer. Não tinha ideia.

Pelo menos, eu dizia para mim mesmo, não está acontecendo na quadra.

Até que aconteceu na quadra.

Foi durante o US Open de 2012, no final daquele verão. Eu tinha que jogar uma partida noturna pela terceira etapa contra o Gilles Simon — alguém melhor ranqueado do que eu, mas eu estava jogando melhor. Achava que poderia ganhar.

É uma ótima posição para se estar. As partidas noturnas do Open são reservadas para as melhores partidas, os jogadores preferidos — aqueles que as pessoas querem assistir. Eu era um deles. Após anos e anos vendo de fora, agora eu era parte daquilo. Eu não estava jogando a partida de outro. Era uma partida noturna do US Open, e eu estava jogando “A Partida do Mardy Fish”.

Aquilo era especial, mas também era estressante. A partida estava equilibrada, extremamente emocionante. Eu estava muito nervoso, dando socos no ar, jogando minha raquete, e sentindo… ansiedade. Estava sendo guiado pela ansiedade.

E nunca vou me esquecer do que aconteceu: a primeira — e única — crise de ansiedade que eu já tive em uma quadra de tênis.

Eu estava ganhando de 2 sets a 0, e estávamos 3 -2 no quarto. Pelo canto do olho, olhei para o relógio. Era 1:15 da manhã. E isso, por o que quer que seja, foi o bastante.

Foi meu gatilho.

“Mostrar fraqueza, nos dizem, é merecer vergonha. Mas estou aqui para mostrar fraqueza. E não tenho vergonha.”

Minha cabeça começou a girar em uma bola de neve de pensamentos: 1:15. Meu Deus. É tão tarde. Eu vou me sentir péssimo amanhã. Nós vamos jogar essa partida longa… vai ter uma conferência de imprensa… aí vou ter que me alongar, e comer… e vou me sentir mal por isso.

E eu segui descendo e descendo até não conseguir mais controlar. Eu não tinha ideia do que estava acontecendo no jogo. Não tinha ideia. Não me lembro de nada. De alguma forma eu acabei ganhando os três games seguintes, e o set, e a partida. Mas não lembro de nada.

Tudo o que me lembro é da entrevista após o jogo. O Justin Gimelstob estava me entrevistando, e ele é um grande amigo. Eu lembro de olhar pra ele antes de começar e falar “por favor, seja rápido”. Ele não tinha ideia do que estava acontecendo. Mas eu continuei falando “Seja rápido. Seja rápido”. Eu tinha que sair dali. Tinha que sair daquela quadra.

Assim que aconteceu na quadra, eu soube. Nada seria o mesmo.

E então, dois dias depois, veio à tona.

Estávamos no carro, indo para a minha partida contra o Roger — minha cabeça estava cheia de pavor. Será que aconteceria de novo? Eu teria outra crise de ansiedade na frente de milhares de pessoas? Teria outra crise enquanto tentava fazer meu trabalho?

Os pensamentos chegavam e não iam embora. Apenas chegavam, chegavam, chegavam. Eu estava muito mal.

E minha esposa apenas me olhava e repetia: Você não precisa jogar. Você não precisa jogar. Não jogue.

E eu estava escutando… mas não estava ouvindo. Eu pensava “Já imaginou? Já imaginou se eu não jogo essa partida?”. Eu não conseguia aceitar isso. Naquele momento, eu não conseguia aceitar nada.

Mas então, finalmente, a ouvi. Você não precisa jogar. Você não precisa jogar. Não jogue. E, do nada, percebi — me lembro vividamente. Meu Deus. Eu… não vou jogar. Não vou me apresentar ansioso na frente de 22 mil pessoas. Não vou jogar contra o Roger.

Não vou jogar.

Eu não joguei.

Primeiro, não joguei contra o Roger. Depois… nunca mais joguei.

*

Três anos depois, estou de volta ao US Open pela primeira vez. E apesar de ainda conseguir jogar em alto nível, este será meu último torneio. Depois desse Open, me aposentarei do tênis.

Isso não é um filme, claro, e não terá um final de filme. Eu não dirigirei em direção ao horizonte, com um troféu em mãos. Não irei ganhar o torneio.

Mas não me importo com isso porque, sinceramente, essa não é uma história esportiva. E eu acho importante que a minha história não tenha um vocabulário esportivo. Eu não “congelei” no Segundo Ato, e não irei “vencer” no Terceiro.

Esta é uma história de vida.

Está é uma história sobre como um transtorno mental me tirou meu trabalho. E sobre como, três anos depois, eu voltei para esse trabalho — e bem. Estou jogando o US Open de novo.

Esta é uma história sobre como, com orientação, conversas, tratamento e mentalidade certa, podemos recuperar as coisas que os transtornos mentais nos tiram.

Milhões de pessoas lidam diariamente com problemas relacionados à saúde mental. E a jornada de aprendizado e aceitação é longa. Pode ser eterna. Ou, pior, pode ameaçar sua vida.

E eu quero ajudar.

Quero ser uma história de sucesso, do meu jeito. E eu acho que me aposentar quando eu quero, e não quando um transtorno me obriga, no torneio que mais amo, é parte disso.

Falar sobre isso — e manter a conversa o máximo possível — também é parte disso. Saúde mental não é algo fácil de se falar entre esportistas. Não é visto como algo muito masculino. Somos treinados para sermos “mentalmente fortes” no esporte. Mostrar fraqueza, nos dizem, é merecer vergonha.

Mas estou aqui para mostrar fraqueza. E não tenho vergonha.

Na verdade só estou escrevendo isso para mostrar fraqueza. Para mostrar às pessoas que é normal senti-la. É normal.

E que a força, no final das contas, vem de várias formas diferentes.

Aceitar seu transtorno mental é ser forte. Falar do seu transtorno é ser forte. Buscar informação, ajuda, tratamento, é ser forte.

E, antes da maior partida da sua carreira, priorizar sua saúde mental e dizer: Você não precisa jogar. Você não precisa jogar. Não jogue.

Isso, também, é ser forte.

*

Sobre o que vem agora, não tenho certeza. Tenho 33 anos agora e sei que nunca farei algo tão bem quanto jogar tênis. Mas tudo bem.

Eu ainda lido com minha ansiedade diariamente. Eu ainda tomo medicação diariamente. Ainda tenho pensamentos ruins diariamente. Há dias em que eu me deito e penso “olha, não pensei sobre isso o dia inteiro”. E isso significa que o dia foi muito bom.

Isto é uma vitória para mim.

Mas não há um torneio a ser vencido contra transtornos mentais. Não há quartas, semifinais, finais. Não vou terminar esse artigo com uma metáfora de esportes.

Porque esportes acabam em um resultado. E a vida segue.

A minha, eu espero, está só começando.

Texto original em inglês escrito por Mardy Fish, disponível em The Players Tribune.

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