Adoção Tardia: famílias que adotam crianças mais velhas e vivem uma experiência transformadora

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8 min readJun 7, 2017

No mundo deles falta um pai e uma mãe. Se o tempo passa, o preconceito aumenta e a família dificilmente chegará. Mas existem pessoas que transformam esse tempo perdido nas casas de acolhimento em amor.

Por Gabriela Figueirôa

Da esquerda para direita, Vanderlei, o pai adotivo, Beta, a mãe adotiva e Ana Carla.

“Eu me sinto realizada”, essa é a sensação que Ana Carla tem quando fala sobre a família. Há oito anos ela passou por um processo de adoção, que hoje encara com muita naturalidade e ternura. Mas sua vida nem sempre foi tão tranquila assim. Ana Carla lembra da vida que tinha antes de chegar no atual lar: do pai biológico, que já morreu e dos irmãos que não tem mais contato. Recorda também da mãe, que perdeu a guarda dos filhos porque era alcoólatra. “Hoje a vida é diferente, encontrei um lar e sou muito feliz”, disse. A sua chegada à nova família também não foi fácil, ela chegou de surpresa na vida da sua mãe, a comerciante Beta Figueirôa, de 45 anos, e do seu pai, o enfermeiro Vanderlei Guimarães, de 30 anos, depois de ter sido adotada e devolvida pela vizinha da sua avó.

Ana Carla foi adotada aos cinco anos, uma idade considerada avançada para muitos que tem o desejo de construir uma família e enxergam na adoção uma oportunidade de realizar esse sonho. Segundo os dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), no Brasil, existem mais de 30 mil pessoas tentando adotar uma criança, que se encaixe no perfil idealizado pelos futuros pais: um bebê, normalmente de até três anos, branco e sem nenhuma deficiência. Um desejo que não condiz com a realidade das casas de acolhimento no país. Das quase oito mil crianças que esperam um novo lar para viver tudo que foi negado a elas, apenas 16% têm de zero a três anos, a maioria tem acima de sete anos. A adoção tardia, como é chamada por muitos, é um problema recorrente no Brasil.

Fonte: Revista Crescer

A psicóloga e voluntária do Grupo de Apoio à Adoção de João Pessoa (GEAD — JP), Valeska Rodrigues, relata que vem sendo feito um trabalho há muitos anos para desconstruir essa ideia da adoção apenas de crianças recém-nascidas ou menores de três anos. “A gente tem uma preocupação com os adultos, que serão os futuros pais, mas principalmente com as crianças, porque a perda, para elas, é bem maior. Fazemos um trabalho de conscientização, mas não podemos ser irresponsáveis de incentivar as pessoas a adotarem grupos de irmãos, crianças com necessidades especiais ou crianças maiores, se aquela pessoa ou família não se propõe de coração aberto a esta mudança”, disse.

A comerciante Beta Figueirôa não teve essa dificuldade em adotar uma criança fora do padrão escolhido pela maioria das famílias que buscam um filho. Seu desejo de ser mãe falou mais alto do que o medo e a resistência em adotar uma criança maior de três anos. “Eu não tive medo, tudo que eu queria era ser mãe”, falou.

Desejo antigo

Até adotar Ana Carla, que em 2017 fez 13 anos, Beta já havia tentado ser mãe outra vez e a experiência não foi uma das melhores. A comerciante mora em Taquaritinga do Norte, munícipio do agreste pernambucano, de aproximadamente 25 mil habitantes. O fato de morar em uma cidade do interior ajudou a tomar conhecimento de uma mulher que estava grávida e pretendia doar a criança. Beta enxergou nessa mulher a chance de realizar o seu maior sonho, o de ser mãe.

Depois de procurar saber quem era essa mulher, ela a conheceu e passou a acompanhar o restante da gestação, que já estava no sexto mês. O enxoval e o quarto da criança foi todo organizado e ela lembra perfeitamente do dia do nascimento da criança. “Era mais ou menos umas cinco horas da manhã quando a mãe do bebê ligou para meu marido dizendo que estava indo para o hospital porque a criança já ia nascer, quando foi umas seis horas, ela ligou novamente avisando que já havia nascido. Foi uma alegria enorme”, contou.

Depois da ligação, a mãe de Beta e uma vizinha foram buscar a criança e quando chegaram lá, viram a mãe do bebê fazendo carinho na cabeça dele. O gesto foi o suficiente para a futura avó desconfiar que ela não fosse entregar a criança. Como imaginado, a família desistiu de colocar o bebê para adoção. De acordo com Beta, a mãe tinha entregado o filho sem nenhum problema, mas a família não deixou porque iria perder o salário maternidade. Um benefício pago as mulheres que acabaram de ter um filho.

Após a frustação de ter perdido o seu filho, a comerciante adoeceu e passou uns 15 dias muito mal e por pouco não entrou em uma depressão. Um tempo depois, várias pessoas apareceram avisando sobre crianças que iam para a adoção, mas Beta não quis mais nenhuma. “Apareceram muitas crianças, até gêmeos me ofereceram, mas eu não quis. Fiquei muito mal porque perdi meu filho, eu não queria mais adotar ninguém”, contou.

Segunda chance para a maternidade

Depois de uns três anos, surgiu uma nova possibilidade do casal pernambucano aumentar a família. Essa nova chance de ser mãe veio de uma vizinha, que havia adotado Ana Carla há cinco meses, mas não estava dando certo porque ela já tinha um filho da mesma idade e no futuro poderia dar algum problema.

A mãe de Beta soube da história e, como já conhecia o desejo da filha em se tornar mãe, ligou na mesma hora e falou o que estava acontecendo. “Minha mãe viu umas coisas que não gostou e me ligou para resolvermos o problema e na mesma hora liguei para uma amiga minha que era do conselho tutelar”, relatou. Na época, a conselheira tutelar disse que ia buscar uma solução para o caso e procurou a mãe adotiva de Ana Carla, que informou que estava pensando em devolvê-la.

“Eu lembro como se fosse hoje, a minha amiga ligou e perguntou se eu não queria ficar com ela, fiquei muito feliz na hora e disse que precisava conversar com meu marido. Ele aceitou na mesma hora e em uma quinta feira Ana Carla foi dormir com a gente para vê se ela se adaptaria e está com conosco até hoje”, contou.

O processo

A adoção aconteceu no final de 2009 e na época Ana Carla tinha cinco anos. Oito anos após a entrada no processo, a adoção ainda está em andamento. Segundo a comerciante, não houve nenhum acompanhamento jurídico ou psicológico, a conselheira tutelar fez duas ou três visitas e conversou a sós com a criança durante as idas a casa deles.

Diferente do que aconteceu no processo de adoção de Ana Carla, o caminho para adotar uma criança é um pouco demorado. O primeiro passo dos interessados é procurar a Vara da Infância e Juventude do município que reside para procurar saber a documentação necessária, ter a idade mínima de 18 anos e ter uma diferença de 16 anos da criança a ser acolhida. O segundo passo é dar entrada no processo, através de um defensor público ou um advogado particular.

O terceiro passo para o processo de adoção é o curso e avaliação. Após comprovada a participação no curso, o candidato é submetido a uma avaliação psicossocial com entrevistas e visitas domiciliares realizadas por uma equipe multidisciplinar, composta por psicólogos, assistentes sociais e pedagogos. O resultado da avaliação é encaminhado para o Ministério Público e ao juiz da Vara da Infância. Durante essa entrevista o pretendente descreve o perfil da criança que deseja adotar.

Após o laudo da equipe técnica da Vara e do parecer emitido pelo Ministério Público, o juiz dá a sentença e caso o pedido de adoção seja aceito, o nome do pretendente será inserido no Cadastro Nacional de Adoção. Automaticamente ele já está na fila e deve esperar aparecer uma criança com o perfil compatível do que foi escolhido durante a entrevista. Quando aparece uma criança, é apresentado todo o histórico dela e os interessados na adoção relatam se querem ou não dar continuidade no processo. Logo após esse processo vem a convivência com a criança e caso ocorra tudo bem, a família recebe a guarda provisória e uma equipe técnica continua fazendo visitas para apresentar uma avalição conclusiva.

Adaptação

Por não ter passado pelo processo de adoção convencional, Beta relata que teve um pouco de dificuldade na adaptação com Ana Carla. Um dos maiores motivo foi o ciúme. Ela explica que a criança era muito apegada ao pai biológico, já que a mãe era alcoólatra e quem cuidava dela e dos irmãos era ele, quando ela foi morar com a nova família se apegou bastante ao pai adotivo o que causou ciúmes na mãe. “No começo foi difícil, mas com o tempo conseguimos superar todas as diferenças e estamos bem, ela é minha filha e graças a Deus estamos aqui”, relata.

“No começo foi muito esquisito, principalmente nos primeiros dias, porque eu não conhecia eles direito e por isso chorava bastante. Tinha momentos que eu me sentia muito alegre, como uma criança normal, mas de noite eu chorava muito”, contou Ana Carla, que hoje ri quando fala desse período de adaptação. Ela ainda fala que a adaptação foi um pouco complicada, mas foi superada porque a família, tanto da mãe como do pai acolheram ela muito bem. “Eu não me senti inferior nenhum momento, porque mãe e pai me acolheram muito”, falou.

A psicóloga Valeska Rodrigues chama a atenção para a importância do processo de preparo para os pais que vão receber os novos filhos e para o processo de adaptação deles. Segundo ela, esse preparo serve justamente para os candidatos conhecerem a realidade do que é ser pai e mãe e não acontecer tantos problemas no convívio após a guarda provisória. “A gente chama de gestação todo esse preparo dessas pessoas que querem adotar, mas não significa que dessa gestação vai vir um filho recém-nascido, mas sim um preparo para o nova realidade de ter um filho ou filha para sempre”, contou.

Campanhas

Como foi colocada, a adoção tardia é um assunto muito delicado porque existe uma enorme resistência das famílias em adotar crianças com mais de sete anos. Valeska Rodrigues relata que os grupos de apoio à adoção vivem buscando mudar essa cultura. “A gente busca mudar esse pensamento que só deve-se adotar recém-nascidos ou um bebê. Através de conversas, tentamos levar mais conhecimento a essas pessoas, para que elas possam adquirir mais maturidade e segurança e com isto, possam adotar uma criança maior. As vezes para aquela família é mais interessantes adotar uma criança mais velha, por conta da rotina e do perfil dos pretendentes”, disse.

Pensando na realidade de crianças acima de sete anos que ainda vivem nas casas de acolhimento, um time de futebol de Pernambuco, o Sport Clube do Recife, lançou no final de 2015 a campanha “Adote um pequeno torcedor” em parceria com a Vara da Infância e Juventude do Recife e com o Ministério Público do Estado. A campanha busca incentivar a adoção, principalmente de crianças acima dos sete anos que vivem nas casas de acolhimento. De acordo com números do cadastro nacional de adoções, no Brasil, apenas 6% dos pais interessados em adotar buscam crianças nessa faixa etária ou acima.

Vídeo da campanha “Adote um Pequeno Torcedor”.

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Blog produzido e atualizado pelos alunos do curso de Jornalismo da UFPB como parte do trabalho prático da disciplina de Webjornalismo.