Celebrar o fim de tudo — juventude e perda em “A noite amarela”

Henrique Rodrigues Marques
Fora do Meio
Published in
6 min readOct 12, 2019

Há quem diga que o cinema de gênero brasileiro vive um momento fértil. Depois de pelo menos duas décadas onde a produção nacional se voltou quase que integralmente para uma estética realista/naturalista, nos últimos anos é possível notar o interesse de diversos cineastas em se apropriar de elementos da ficção científica, do horror, do western. No entanto, a maioria desses filmes ainda se localizam dentro de um regime estético naturalista, desempenhando apenas um flerte com o cinema de gênero, apropriando-se de seus artifícios sem nunca abraçar por completo suas linguagens, seja por um receio de que o filme perca seu valor artístico ou por desinteresse de se afastar do modelo vigente do cinema contemporâneo. A essa tendência, Angela Prysthon dá o nome de realismo sob rasura, um cinema que usa “o artifício, a frivolidade como estratégia para dilacerar, sublinhar e criticar o real”

Os filmes da produtora paraibana Vermelho Profundo definitivamente vão alguns passos além, e vem entregando parte da produção mais interessante do recente horror brasileiro. A noite amarela, de Ramon Porto Mota é o segundo longa-metragem produzido pela Vermelho Profundo, que já traz um vasto e aclamado currículo de curtas, e segue o legado de apropriação e filiação a um cinema irrestritamente de gênero. Essa filiação já se faz notar desde a premissa central da trama: um grupo de adolescentes viaja para uma ilha paradisíaca para comemorar o final do ensino médio. Um lugar desconhecido, uma casa no meio do nada, celulares que não funcionam. Em poucos minutos de filme já está estabelecida a estrutura clássica do slasher, com seus tropos sendo utilizados despudoradamente. Ao chegarem na ilha durante a noite, os jovens se encontram em uma praça deserta. A pessoa que deveria buscá-los não apareceu. Notamos diferentes arquétipos no grupo de amigos, a existência de alguns conflitos latentes, uma personagem desconectada do coletivo (seria ela nossa final girl?). A atmosfera da iminência de algo horrível que permite que o filme brinque também com as possibilidades do perigo anunciado. O encontro com um homem estranho que lhes oferece ajuda (é ele o assassino?), a relação de uma das personagens com a casa (um filme de possessão? Algo de sobrenatural?), fitas em VHS que revelam informações misteriosas sobre a ilha (é uma parada meio Lost?). A narrativa de Porto Mota vai deliciosamente construindo essas rotas possíveis, jogando com nossas expectativas e mergulhando cada vez mais no gênero.

Sendo um subgênero tradicionalmente centrado em personagens adolescentes que repentinamente precisam confrontar o risco de morte, o slasher carrega em si muito do coming of age. Em toda a saga A hora do pesadelo, por exemplo, encontramos jovens em processos de superação de traumas, de conciliação com suas sexualidades, de aceitação da chegada da vida adulta, seja ela representada pelo medo de baratas ou de uma gravidez inesperada; Freddy Kruger, assim como a maior parte dos psicopatas nos filmes de horror adolescente, serve como metáfora do próprio medo do desconhecido que é crescer.

Em uma cena de flashback, encontramos o grupo de amigos comemorando a noite pós realização do ENEM. Em um misto de brinde e profecia, uma das garotas propõe que se celebre o fim de tudo, ao passo em que suas amigas listam pessoas com as quais elas comemoram não precisar conviver mais, selando a maldição rogada com um amém; a crueldade e melancolia da cena na declaração subentendida de que o fim de tudo também é o fim das relações afetivas entre eles próprios. A viagem é então a comemoração do afastamento inevitável de tudo que eles conheciam, amavam e daquilo em que se apoiavam. Não por acaso, o evento que desencadeia a trama é o desaparecimento de uma pessoa do grupo. O medo da perda do que se tem agora enquanto eixo da angústia sobre o futuro. Em determinado momento, uma das personagens diz ter sonhado com o futuro: ele não fazia sentido nenhum. Em uma sequência de slides de fotos em um celular, de momentos da amizade registrada, carrega um tom de nostalgia precoce. Aquilo já é o passado, já é algo que inspira saudade e não mais as coisas como são. Nesse slasher, o assassino é o próprio tempo.

Para além da leitura mais superficial do filme enquanto alegoria do processo de amadurecimento, da transição da adolescência para a vida adulta e da dificuldade das relações afetivas, é inevitável que a obra não se contamine com o que acontece em seu espaço extra-fílmico. Em artigo para o livro Youth in Global Cinema (2007), a pesquisadora Laura Podalsky afirma que, no caso do cinema latino americano, é indissociável o contexto político-social das formas de representação de juventude nos cinemas locais, que compartilham o impacto do passado ditatorial e das promessas da redemocratização como bases fundamentais do entendimento da juventude nesses países. Citando o educador Henry Giroux, Podalsky afirma que a juventude funciona como “metáfora da memória histórica e um marcador que faz visível a responsabilidade ética e política dos adultos para com a nova geração”. No Brasil atual, o governo Bolsonaro não é só a ameaça de um retorno ao pior da nossa memória histórica recente, mas também o diagnóstico do fracasso dos adultos em cuidar da geração representada em A noite amarela. Crise econômica, fim da previdência, desmonte declarado das universidades públicas. As expectativas geradas nas últimas duas décadas de emancipação das pessoas mais pobres, da ampliação de faculdades federais para além do eixo Rio-São Paulo, de uma geração de jovens que eram os primeiros de suas famílias a conquistar um diploma universitário, fazem parte de um processo que foi drasticamente interrompido. É de uma ironia trágica que parte do filme aconteça no dia do ENEM, quando na vida real os formandos de ensino médio se preparam para o vestibular sem garantias de que a universidade pública como conhecemos existirá a longo prazo. Nesse contexto, a angústia gerada pela incerteza do futuro e do medo da perda que acomete o grupo de amigos de A noite amarela, converte-se no sentimento de perda do próprio futuro. Para essa juventude, o futuro foi cancelado.

Essa relação entre juventude e a iminência do fim do mundo tem se proliferado no audiovisual mundial, refletindo o mesmo fenômeno que permitiu a vitória de Bolsonaro por aqui. Assim como acontece em A noite amarela, as séries estadunidenses Daybreak (produção da Netflix que estreia no fim do mês) e o spin-off ainda sem título de The Walking Dead que focará sua narrativa na vide de adolescentes que nasceram após o surto zumbi da saga original; os longas franceses Nocturama (Bertrand Bonello, 2016), Jessica Forever ( Caroline Poggi e Jonathan Vinel, 2018) e O professor substituto (Sébastien Marnier, 2018); e até mesmo o brasileiro Mate-me, por favor? (Anita Rocha da Silveira, 2016), contemplam, de diferentes maneiras, as ansiedades da Geração Z que se percebe herdeira de um mundo em colapso.

Ao falar de futuro e juventude na contemporaneidade, é incontornável que se chegue as propostas radicais do teórico Lee Edelman, que propõe a virada negativa do queer pela negação da ideia de futuridade como um tudo. Como define Edelman, “o futuro é idealizado para uma Criança que não deve nunca crescer”. Os adolescentes de A noite amarela e das demais obras citadas, assim como os alunos que protagonizaram o movimento secundarista e o movimento global pelo clima — que tem na jovem Greta Thunberg de 16 anos sua principal porta-voz — , cresceram demais para os adultos se preocuparem em defender o seu futuro; eles precisam cuidar disso sozinhos. Em uma cena perto do final do filme, uma das garotas diz: a essa altura, a gente podia ser os únicos seres vivos do mundo inteiro. Quando o apocalipse é uma certeza e a sensação é de abandono, celebrar o fim de tudo pode ser a coisa mais radical a se fazer. Ir, sem saber para onde, sem certezas, sem futuro. Nesse coming of age, o desconhecido deixa de inspirar medo e passa a ser atraente promessa. Como diz a música que insiste em reaparecer ao longo do filme: Penso que o tempo / sempre quis me devorar / Me perco nesse tempo / me perco nesse tempo / me perco nesse tempo / me perco nesse tempo / me perco nesse tempo / me perco nesse tempo…

A noite Amarela está em cartaz em diversas cidades do Brasil pelo projeto Sessão Vitrine que traz sessões a preços populares, assim como está disponível para locação em VOD pelo Youtube.

--

--