Destaques de 2019

Henrique Rodrigues Marques
Fora do Meio
Published in
6 min readJul 2, 2019

Oficialmente meio do ano então já é hora da gente começar as listinhas. Separei 10 filmes lançados no Brasil ao longo desse primeiro semestre de 2019 que eu acredito que mereciam uma maior atenção. Não sei ao certo se eu diria que são os 10 melhores filmes do ano até agora, mas são os filmes que mais me deixaram instigados, pensando sobre depois e com aquela vontade de rever e discutir por aí. Boa parte da lista passou completamente despercebida no circuito, ficando duas semanas em cartaz sem receber qualquer burburinho. Espero que o texto estimule um interesse em descobrir essas obras. Em ordem alfabética, temos:

Amor até as cinzas (Jia Zhangke)

Jia Zhangke é um dos diretores que melhor registra o estado das coisas no século XXI. Em seu mais recente filme, o cineasta parte de uma trama envolvendo uma mulher e uma arma (em uma deliciosa subversão do tropo godardiano) para refletir sobre as principais angústias do novo milênio. Uma história de amor intercalada por marcos das últimas duas décadas (o excesso de otimismo dos anos 00, a crise da década seguinte, o boom dos telefones celulares, a incerteza da atualidade) que traz uma melancolia bastante contemporânea, sem nunca cair nos moralismos fáceis de reduzir tudo ao conceito de “tempos líquidos”. Na realidade, Zhangke traz um olhar muito fresco pro uso das tecnologias digitais não só como um elemento cultural mas também como ferramenta narrativa.

As filhas do fogo (Albertina Carri)

Minha primeira pesquisa acadêmica foi sobre a relação entre o cinema queer e o road movie, então passei dois anos lendo tudo sobre o assunto. Embora o gênero tenha sido um dos mais utilizados por cineastas queer desde o início do New Queer Cinema, era bastante raro encontrar representantes lésbicos dentro de seu cânone. O argentino As filhas do fogo vem trazer essa reparação histórica três décadas depois. No filme acompanhamos uma gangue de mulheres que decidem pegar a estrada descobrindo o país e seus corpos. Se apropriando de discursos e estéticas da pornografia, Albertina Carri faz uma ode ao desejo lésbico, construindo uma narrativa que coloca o sexo como prazer sem nenhum trauma, postura bastante revigorante que funciona quase que como um manifesto. Sua câmera que sempre deseja mas nunca objetifica, passeia por longas cenas de orgias criando um voyeurismo que consegue demolir o olhar masculino mas sem abrir mão do prazer visual em nenhum momento. Suas cenas de sexo são das mais bonitas da história do cinema.

Fora de série (Olivia Wilde)

A estreia na direção da atriz Olivia Wilde tem sido encarada pela crítica como uma versão feminina de Superbad. Para além da necessidade quase patológica de sempre comparar o trabalho de mulheres ao cânone masculino detentor da autenticidade, considero essa comparação extremamente equivocada, já que o filme se filia muito mais a uma linhagem de cinema adolescente oitentista do que as comédias estilo Seth Rogen. Genuinamente divertido e cheio de afeto, Wilde consegue dar muita humanidade para uma meia dúzia de personagens que sintetizam esteriótipos de filmes high school. A cena da DR entre suas protagonistas é de uma sensibilidade que por si só já é melhor que tudo que acontece em Lady Bird.

Longa jornada noite adentro (Bi Gan)

Sem querer bancar o purista cinéfilo legítimo mas já bancando, eu queria que esse filme ficasse em cartaz para sempre. É daquele tipo de filme que atinge outro nível numa sala de cinema. Cinema de fluxo, fluxo de memória, fluxo de sonho. Aquele lugar onde a lembrança e o devaneio se confundem. Seu ato final, um plano sequência de 59 minutos em 3D, é de uma beleza tão incrível que é chocante pensar que aquilo foi feito por humanos.

Obsessão (Neil Jordan)

A Huppert sendo psicopata já é motivo o bastante para amar qualquer filme, mas o novo filme de Neil Jordan supera todas as expectativas. Colocando a maternidade super protetora como fonte de horror, Obsessão sustenta um clima de tensão constante e crescente, ao mesmo tempo em que mantém um pézinho no camp (um camp muito do elegante, mas ainda assim camp). Insano, assustador, engraçado e divertido.

O mau exemplo de Cameron Post (Desiree Akhavan)

Chloe Grace Moretz tá sabendo muito bem escolher seus projetos. Enquanto todo mundo chorava as pitanga por causa do cancelamento do fraco e higienizado Boy erased, O mau exemplo de Cameron Post acabou passando pelo circuito nacional sem causar comoções. A ironia disso tudo é que o filme também fala sobre terapia de conversão, mas de um jeito muito mais potente e centrado na experiência dos indivíduos queer, e não no sofrimento dos cisheteros. É um coming of age muito bonito e que consegue muito bem conciliar a urgência do seu tema sem demonizar a fé alheia.

O peso do passado (Karyn Kusama)

Uma grande tendência do cinema contemporâneo é o de cineastas mulheres se apropriando de gêneros historicamente masculinos não apenas para subverter os seus códigos, mas para implodir suas estruturas. Em O peso do passado, Kusama parte do cinema noir para tratar de temas tradicionais do melodrama (maternidade, amores que não acabem bem, cicatrizes do passado que ainda sangram no presente, a condição da mulher na sociedade). De maneira muito delicada e sofisticada, a diretora injeta pathos na narrativa do (anti) herói, em um dos melhores papéis de Nicole Kidman. Infelizmente, é um filme que foi bastante prejudicado pela obsessão naturalista da contemporaneidade, onde a maquiagem exagerada da protagonista foi encarada como um erro de produção (que ninguém ali foi capaz de perceber) e não uma escolha legítima. Mas para quem tiver a capacidade de olhar um pouco além da busca por realidade, a obra (incluindo a supracitada maquiagem) tem muito a oferecer.

Poderia me perdoar? (Marielle Heller)

Um dos melhores filmes da temporada de premiações e único vencedor possível para as categorias de ator coadjuvante e roteiro adaptado (e ainda merecia facilmente uma vaguinha em direção). Contando a história real de uma escritora decadente que passa a cometer pequenos crimes para sobreviver, Heller trata de aspectos da experiência queer que geralmente são jogados para debaixo do tapete em nome da criação de um arquétipo saudável da comunidade LGBT, mas sem nunca apelar para a espetacularização da miséria. Os temas podem ser pesados, mas os dois personagens principais são cheios de vida, mesmo quando estão reclamando dela. The queer art of failure e toda sua potência transgressora.

Vidas duplas (Olivier Assayas)

Em tempos que o moralismo tecnofóbico de Black Mirror é venerado como crítica bem elaborada, é muito revigorante ver um filme que consegue discutir o surgimento de novas tecnologias e suas possíveis consequências (boas e ruins) de maneira tão madura. E que tudo isso seja embalado por uma série de relações extraconjugais só torna tudo ainda mais delicioso. O declínio do império americano na era do kindle.

Vox Lux — O preço da fama (Brady Corbet)

Comecei o texto dizendo que não pretendia falar sobre melhores do ano ainda, mas já posso afirmar sem qualquer dúvida que Vox Lux é o melhor filme do ano, talvez da década. Como é declarado nos próprios créditos do filme, Brady Corbet assume o plano ambicioso de fazer um retrato do século XXI e ele entrega o que promete. Terrorismo, cultura pop, internet e como tudo isso conflui na nossa vida cotidiana. Como nota o crítico Armond White, esse é o verdadeiro Nasce uma estrela da geração millennial. Obra-prima sem defeitos.

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