Taylor Swift e o modo como odiamos coisas de garota

“…got nothing in my brain
That’s what people say…”

Henrique Rodrigues Marques
Fora do Meio
10 min readApr 30, 2019

--

Em meados do meu ensino médio, uma época em que eu frequentava livrarias, eu vi um pôster de divulgação de um livro que me chamou muito a atenção. Fiquei tão fascinado pela imagem de capa que eu passei meses a fio falando sobre a vontade de ler esse livro, o que culminou em alguns amigos organizando uma vaquinha para me dar o livro de presente de aniversário. O livro em questão era Crepúsculo, de Stephanie Meyer. Ganhei o livro em agosto, e o lançamento do filme estava marcado para o final daquele ano. Era o hype do momento, então boa parte dos meus colegas de colégio estavam lendo também. E, embora ninguém o reconhecesse como uma grande obra literária, o livro não causava grande revolta em quem se aventurava a ler. Alguns amavam a trama, outros achavam um pouco bobo, ou menos macabro do que se esperava de um livro sobre vampiros. Mas de modo geral, todo mundo lia até o final e concordava que era uma leitura agradável; fácil e cheia de clichês, mas com algum sabor.

Em um nível pessoal, eu fiquei decepcionando com a leitura. No auge do meu amor pelos autores da segunda geração do romantismo, o livro não me oferecia o tom gótico que eu ansiava em histórias de vampiros na época. Mas também estava longe de ser uma leitura terrível, ou algo em que eu me arrependi de ter investido meu precioso tempo. No fim daquele ano, fui com um grande grupo de amigos ver a adaptação cinematográfica na estreia. E lembro de ter gostado bastante. Eu já conhecia o trabalho da diretora Catherine Hardwicke (Aos treze era um dos meus filmes favoritos), e fiquei contente em ver como ela conseguiu imprimir um tom autoral na franquia. O filme tinha um tom de cinema independente americano, uma estética muito climática e um olhar pra protagonista que me cativaram. Terminei aquele ano com o veredito de que o livro era fraco, mas não péssimo, e que o filme era bom, três de cinco estrelas.

Porém, conforme Crepúsculo se consolidava como parte fundamental da cultura pop nos anos 2010, algo mudou.

Com o passar dos anos, a obra de Meyer (e a autora em si) foi conquistando uma legião de haters e detratores na internet. O discurso vigente de críticos e leigos era de que a Saga Crepúsculo era a pior coisa que aconteceu na cultura de massa desde a banheira do Gugu, sucesso que só poderia ser justificado através do emburrecimento da população. E eu aderi a esse discurso, sem muito questionar. Eu não sei exatamente como ou quando aconteceu, mas o veredito do Henrique adolescente foi apagado e substituído por um ódio mortal a tudo relacionado ao universo criado por Meyer. Um ódio tão grande que fez com que eu me recusasse a assistir os filmes posteriores da franquia e zombar das minhas tias obcecadas com a história de Bella e Edward. Eu me ofendia com a simples possibilidade de alguém considerar aquilo um bom entreternimento.

Até que no ano passado a Lindsay Ellis, uma das minhas youtubers favoritas, fez um vídeo-ensaio pedindo desculpas a Stephanie Meyer por ter aderido à campanha de ódio contra a autora. E eu levei um grandíssimo tapa na cara.

Ao longo dos vinte minutos de ensaio, Ellis argumenta que muito do ódio que Meyer e sua obra receberam vem do fato de que nós, enquanto cultura e sociedade, odiamos garotas adolescentes (e as coisas feitas para elas). Não se trata de reivindicar a Saga Crepúsculo como uma obra a frente do seu tempo, que sempre foi magnífica e a gente que não soube apreciar, mas de notar que, na realidade, ela não é tão ruim assim. Como argumenta Ellis, os livros escrito por Meyer estão completamente de acordo com o que é produzido em termos de ficção YA, e que outros filmes (como as sagas Velozes & Furiosos e Transformers) são igualmente bobos e sem grandes requintes narrativos, mas não recebem o mesmo tipo de ataque atroz que é direcionado aos filmes da Saga Crepúsculo. O motivo? O público-alvo de cada uma dessas obras. Produtos culturais direcionados a meninos adolescentes (filmes de ação, HQs de heróis, bandas de qualquer subgênero de rock que é tendência naquela geração) são compulsoriamente melhor aceitos do que as produções voltadas para garotas adolescentes. Como diz Ellis, “nós, e por nós eu quero dizer ‘nossa cultura’, meio que odiamos garotas adolescentes. Nós odiamos suas músicas, nós odiamos sua falsidade, nós odiamos sua vaidade, nós odiamos seus paus de selfie, nós odiamos suas maquiagens, nós odiamos seus livros estúpidos e os estúpidos atores sexys que elas tornam famosos e seus estúpidos vampiros que brilham.” Ano passado, enquanto a adaptação do livro YA direcionado a um público de jovens garotos, Jogador Nº 1 (que Ellis usa como exemplo de um produto voltado ao público masculino tão mal escrito quanto os livros de Meyer), recebia grande reconhecimento de crítica e público, o filme Crepúsculo foi eleito o pior filme de todos os tempos.

Desde o lançamento do novo clipe da Taylor Swift, na semana passada, eu tenho pensado muito sobre essa fala de Ellis. No vídeo, o exemplo usado pela autora para ilustrar o tipo de música para garotas que é odiado pelo resto da população, foi a boy band One Direction, mas poderia facilmente ser Taylor Swift. Pelo menos no que tange o ódio direcionado a cantora, é fácil notar um paralelo com os ataques feitos a Stephanie Meyer e expostos no ensaio de Ellis.

Taylor Swift começou sua carreira como uma cantora adolescente, que compunha músicas em tom confessional, o que obviamente causou uma fácil identificação com outras garotas adolescentes. No artigo Just Say Yes: Shakespeare, Sex, and Girl Culture, escrito por Ariane M. Balizet para analisar a influência das obras de Shakespeare na “cultura de garotas” contemporânea, a autora traça um paralelo com a música Love Story, de Taylor Swift, e conclui que

“Enquanto um artefato da Cultura de Garotas, Love Story é particularmente convincente, já que foi criada por uma garota adolescente — Swift, que escreveu a letra, tinha apenas 19 anos quando a música foi lançada — e comercializada com grande sucesso para jovens mulheres, especialmente garotas. A música de Swift responde o livro de Pipher de um modo surpreendente, nos oferecendo uma Julieta/Ofélia infeliz e confusa, que é ‘ressuscitada’ no final pela benção de seu pai e pelo pedido de casamento livre de Romeu. Não é o que Pipher — ou acadêmicos, defensores e ativistas dos Estudos de Garota — tinha em mente, mas ao menos essa heroína vive para contar a história.”

A fala de Balizet sintetiza o papel que Swift ocupa no cenário da música pop até os dias de hoje: uma jovem mulher que compõe em primeira pessoa, sobre e para jovens mulheres. Sendo assim, temas voltados a busca por amor, auto aceitação e a superação de relacionamentos que não deram certo, são questões recorrentes em sua obra, e uma das principais fontes de críticas negativas. Por tratar desses temas shakespearianos de experiência do amor romântico, frequentes nos contos de fadas como conhecemos hoje, Swift é atacada por fazer músicas “infantilizadas”. A suposição dessa crítica é que as músicas de Swift carecem da maturidade esperada de uma mulher em sua posição e idade, onde o que ela compõe deveria conter um tom mais adulto e menos pueril. Porém, ignora-se o fato de que obras que ocupam esse não-lugar entre falar de assuntos relacionados a sexo sem ser abertamente sexual, é um elemento fundamental na Cultura de Garotas. Assim como a Saga Crepúsculo, a música de Taylor Swift oferece um ponto de apoio para “jovens garotas adolescentes que ainda estão em processo de entender sua sexualidade.” (ELLIS, 2018).

Diversas cantoras construíram carreiras escrevendo sobre seus relacionamentos. Fiona Apple e Alanis Morissette passaram toda a década de 90 falando sobre seus ex-namorados; Adele fez uma trilogia de discos falando sobre sofrer por amor em diferentes idades; Lemonade, um dos discos mais aclamados dos últimos anos, é fruto de uma crise no casamento de Beyoncé. Embora cada cantora tenha um tipo de reconhecimento diferente no âmbito da qualidade artística, em termos temáticos, todas essas cantoras estão alinhadas ao que Taylor Swift produz, então por que elas não recebem o mesmo tipo de ataque? Talvez seja porque Taylor não só fala sobre relacionamentos, mas fala sobre relacionamentos através de uma certa perspectiva feminina, uma sensibilidade que, culturalmente, associamos a garotas adolescentes.

E isso não é algo arbitrário. Em uma recente entrevista veiculada no canal online da revista TIME, Taylor Swift é solicitada a listar três coisas que influenciam seu trabalho, ao passo que a cantora responde: tumblr, Paul McCartney e gatos. O fato de Swift assumir que se inspira no tumblr é especialmente potente, visto que é comum se dizer que algo “parece feito por uma garota de 13 anos no tumblr” como uma espécie de gíria para se indicar a falta de qualidade de uma obra. “Eu vou no tumblr e é como abrir uma janela para ver o que as minhas fãs estão passando. Elas postam sobre suas vidas, sobre o que elas estão curtindo, o que elas acham que é legal, o que elas acham que é injusto ou problemático, e elas basicamente são muito, muito expressivas, e isso faz com que eu sinta que eu posso conhecê-las melhor.” Ou seja, a obra de Swift é deliberadamente influenciada por essas garotas de 13 anos que a nossa cultura tanto despreza. Não é por acaso que suas músicas e letras ressoam tanto com elas, e que bom que alguém oferece esse conteúdo. Como diz Ellis, “já é bastante difícil ser uma adolescente, mas existe algo prejudicial em ser obrigada a sentir vergonha por se identificar mais com Bella do que com outras personagens fortes aprovadas por feministas e que não precisam de um homem para resgatá-las.” Em um período da vida onde identidade é um conceito frágil, especialmente para mulheres, a música de Swift oferece uma conexão direta com alguém de carne e osso que compreende seus medos, desejos e anseios.

Imagens retiradas do Pinterest do user justgirlythings (“apenas coisas de garotas”)

Embora não seja difícil pensar em cantoras que começaram suas carreiras na adolescência — Britney Spears, Miley Cyrus e Ariana Grande, só para citar alguns exemplos — , existe um ponto que separa Taylor Swift dessa linhagem. Tradicionalmente, em determinado ponto da carreira de uma cantora mirim, ocorre um álbum coming of age, onde a garota passa a ser socialmente vista como uma mulher. No entanto, mesmo durante o coming of age de Taylor Swift — seus discos 1989 e Reputation — , a cantora continuou sendo analisada pelo prisma da infantilidade. No início de seu ensaio, Ellis cita um artigo publicado no site cracked.com, onde Stephanie Meyer é descrita como “uma mulher obcecada consigo mesma, narcisista, hipócrita e infantil”. Adjetivos que frequentemente são usados contra Taylor Swift, principalmente nos seus dois últimos álbuns. Não por acaso, tanto em 1989 quanto em Reputation, Taylor brinca com os tropos que a mídia usa contra ela. O caráter confessional e autocentrado de suas composições é parodiado em Blank Space, enquanto sua “falsidade e vaidade” (características que, vale lembrar, Ellis lista como elementos que odiamos nas garotas adolescentes) são a espinha dorsal da música e clipe Look what you made me do. É verdade que qualquer diva pop é alvo de constante misoginia, seja por sua relação com sua sexualidade, pelo modo como se veste ou por seu comportamento em sua vida pessoal. Ou seja, o tipo de misoginia direcionada a cantoras pop no geral é o mesmo direcionado a mulheres que descumpram a performance esperada de uma mulher. Já Taylor Swift sofre uma misoginia mais específica, a mesma direcionada à Stephanie Meyer, à Saga Crepúsculo, à revista Capricho e aos dramas YA: estar associada a Cultura de Garotas por uma específica experiência de feminilidade. E, em tempos de discussão sobre empoderamento feminino e “exemplos de mulheres fortes”, essa experiência de feminilidade passa a ser ainda mais rebaixada ao nível da superficialidade e futilidade. Para a nossa cultura nada é mais superficial do que coisas que garotas adolescentes gostam.

Em seu novo single, Me!, feito em parceria com Brendon Urie, Taylor oferece uma música que brinca com sonoridades infantis e um clipe em paleta de tons pastéis, uma fantasia girly em cores de algodão doce, e que mais uma vez culminou nas acusações sobre a infantilidade de seu trabalho. No entanto, outros artistas trabalham em cima da mesma proposta de Me!, sem receber o mesmo tipo de crítica negativa. Em Popular Song, o cantor Mika se apropria de sonoridades e estéticas muito próximas ao universo infantil — de um jeito ainda mais direto e referencial do que Taylor, já que clipe e música tratam especificamente de uma experiência juvenil — , mas não teve seu trabalho reduzido ao rótulo da infantilidade. Pelo contrário, Mika é um artista bastante reconhecido como dono de uma obra autoral de grande valor artístico.

Isso significa que devemos reconhecer Taylor Swift como uma grande artista? Não necessariamente. Ninguém é obrigado a gostar do trabalho feito por Swift. Existem muitas razões legítimas para não gostar de suas músicas. Mas, assim como Meyer, é bastante injusto (e um tanto misógino) reduzir o que ela escreve a termos como superficial, bobo, vazio e infantil. Esses adjetivos dizem muito sobre o modo como tratamos garotas adolescentes e as coisas feitas para elas. E tanto a crítica cultural quanto as garotas adolescentes merecem mais do que isso.

--

--