Um filme falado

Análise do filme “Manifesto” (Julian Rosefeldt, 2017)

Henrique Rodrigues Marques
Fora do Meio
5 min readNov 7, 2017

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A versão impressa de manifestos sempre foi inseparável de seus objetivos radicais, o que engaja o ato de publicação e disseminação como terrenos para debate e troca, ao invés de uma mera documentação. Por essa razão, é presciente revisitar a clareza e articulação — ou, em muitos casos, a proposital ofuscação — desses manifestos antigos na atualidade, uma era definida pela vasta quantidade de publicações, tão volumosas quanto são homogêneas… Pois uma coisa é certa: sem algum tipo de manifesto, nós não podemos escrever alternativas que sejam mais do que vagas utopias; sem um manifesto, nós não podemos conceber o futuro.[1]

O que é cinema? é a pergunta que batiza o livro de André Bazin canonizado como uma das bases da teoria cinematográfica. Essa pergunta, por mais óbvia e tautológica que pareça, está sempre em constante retorno nas discussões sobre cinema e parece ficar cada vez mais difícil de responder. A ascensão do cinema expandido; seriados exibidos no Festival de Cannes e vistos em uma tela grande; filmes lançados direto na Netflix e assistidos no visor de um celular; videoclipes expostos no MoMA; instalações convertidas em filme. Para o terror dos puristas, a pós-modernidade torna cada vez mais complicado traçar fronteiras entre as artes, especialmente aquelas que compõem a área audiovisual.

A obra Manifesto (2017), parceria entre o videoartista Julian Rosefeldt e atriz Cate Blanchett certamente é um dos filmes que vai incomodar muita gente por não ser “cinema o bastante”. Pensado originalmente como uma videoinstalação composta por 13 vídeos diferentes, reproduzidos em looping constante, o projeto coloca Cate Blanchett em contextos prosaicos, casualmente recitando manifestos de diferentes autores do século XX. No total, Rosefeldt compila mais de cinquenta textos diferentes, que não são alterados mas são mesclados em cada um dos monólogos recitados por Blanchett. Sendo assim, parafraseando o próprio realizador, faz sentido que uma obra centrada no conceito de manifesto (uma ideia trazida a público) seja divulgada em diversas formas e plataformas.

Apesar de não concordar com essa proposta de manutenção de um cinema puro, ou uma classificação fixa que define o que é ou não é um filme, fui ao cinema com um pensamento no estilo “é o que tem para hoje”, um pouco frustrado de ver a versão em filme por não ter acesso à obra original. Apesar de acreditar na legitimidade enquanto obra cinematográfica, para mim foi inevitável não pensar como a videoinstalação deve ser mais potente. Existe uma certa cacofonia no acúmulo criado por treze monólogos exibidos simultaneamente em um mesmo espaço que se perde no filme; assim como a possibilidade de assistir o mesmo vídeo repetidas vezes, para garantir a absorção de seu conteúdo, permitida pela rotação em looping. Ver tantas ideias, algumas de áreas que eu nunca tive muito contato, expressas numa velocidade frenética e praticamente sem respiros me deixou querendo voltar o filme diversas vezes. Eu me pegava obcecado numa frase dita, querendo refletir sobre, enquanto o filme avançava sem se preocupar com isso.

Não obstante essas perturbações, o corte de 95 minutos feito para o longa-metragem me surpreendeu por ser bastante… cinematográfico, no fim das contas. Em cada uma das cenas, existe um vestígio de narrativa, uma mise en scène bem demarcada, e um trabalho de decupagem e movimento de câmera que contribuem para o que é dito via texto. Além disso, parte dos discursos não são apresentados como episódios separados — como eu imaginava que seria, uma espécie de playlist dos vídeos projetados na instalação — , mas voltam diversas vezes ao decorrer da projeção, fornecendo um tipo de costura para a narrativa do filme. O mais marcante deles, é a cena de uma mãe conservadora que reza em família o manifesto pop art, intensificando seu humor absurdo cada vez que volta à cena. Em alguma medida, é possível até mesmo notar o começo e o fim de um arco narrativo. Analisando tudo isso, parece-me absurdo tentar defender que Manifesto não possui requisitos o bastante para ser um filme, mas o mais interessante aqui é que essa própria discussão de “o que é um filme?” se insere perfeitamente na proposta central da obra, que é discutir um estado das artes, da cultura e das humanidades como um todo.

Uma ótima sacada de Rosefeldt, foi separar cada segmento por temas — que vão de movimentos artísticos a manifestos políticos— e dentro de cada tema aglutinar trechos de diversos escritos, até mesmo alguns que se contradizem. No meu momento favorito, vemos uma professora ensinando uma classe de crianças sobre cinema. Em um primeiro momento, ouvimos uma reflexão sobre a domesticação do olhar, e como seria a manifestação de um ver o mundo em alguém que não aprendeu certas definições (quantas possibilidades de cores existem na grama para quem não sabe o que é verde?), emendada no discurso de Jim Jarmusch sobre a não-existência da originalidade, o que permite que você roube de tudo aquilo que te inspira, sem ao menos ter medo de que seu furto seja descoberto, ou seja, uma total liberdade criativa. Ao final da explicação, a professora começa a passar de carteira em carteira repreendendo a criatividade previamente estimulada dos alunos com as rígidas normas do Dogma 95. Essa contradição de ideias que em seus contextos nos transmitem uma verdade e de alguma maneira coexistem sem uma necessária determinação de um jeito certo ou um jeito melhor de se fazer cinema, é a epítome das discussões sobre arte contemporânea como algo que, essencialmente, tem como efeito a criação de dissenso.

Assim como a própria definição de manifesto, a obra de Rosefeldt, em qualquer plataforma de exibição, tem como objetivo principal ser disseminada para gerar debate e provocar a audiência, tanto visualmente (no que se entende que um filme ou obra de arte deve ser) quanto conceitualmente (na opinião individual e coletiva sobre as asserções expressadas sobre variados temas). Definitivamente, eu não vejo nele essa obra-prima revolucionária que alguns críticos apontaram, mas o filme é sim bastante instigante e competente na reflexão sobre um assunto muito caro a contemporaneidade. Nesse cadavre exquis que faz ao mesmo tempo uma arqueologia e uma desconstrução de muitos pensamentos do século XX, Rosefeldt acaba por criar ele mesmo o seu próprio manifesto que, mesmo não sendo tão radical quanto seus antecessores, está bem longe de ser uma simples documentação.

[1] Tradução de fala do pensador Zak Kyes. Texto original e na íntegra disponível aqui.

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