We’ll make heaven a place on earth — uma breve análise do episódio “San Junipero” de Black Mirror

Texto originalmente escrito e publicado no dia 5 de novembro de 2016 (contém um pouquinho de spoilers)

Henrique Rodrigues Marques
Fora do Meio
3 min readNov 5, 2017

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San Junipero é um episódio muito bom.
E é bom exatamente por ser um contraponto a todo o resto da série antológica Black Mirror. Assim como em Be right back (ambos dirigidos por Owen Harris, por acaso ou não), aqui o tema é o modo como a tecnologia media e potencializa nossas afetividades. Acompanhamos duas personagens, que se conhecem, apaixonam-se e constroem uma forte conexão, que não teria sido possível em um tempo anterior ao da criação de um determinado aparato tecnológico. Quando o episódio começa a revelar o que exatamente é este aparato e como ele funciona, alguns pontos negativos sobre o seu uso são levantados por uma personagem, enquanto outra rebate frisando os lados positivos. Complexo e cheio de nuances, como toda a discussão sobre tecnologia deve ser. Outro acerto do roteiro foi a decisão de não criar distinções entre o falso binarismo “real/virtual”, estabelecendo tudo como um único universo. Não se cede a tentação — bastante esperada quando se olha pro histórico de Black Mirror — de questionar a genuinidade daquelas experiências, caindo no moralismo tecnofóbico de sempre.
Uma das coisas que mais me incomodava nas temporadas anteriores era a falta de representatividade. Praticamente todos os episódios são focados em homens brancos e heterossexuais, o que é bastante estranho numa série pós 2010 e, ainda por cima, britânica. Os poucos segmentos protagonizados por mulheres condicionam a existência delas a um homem; os dois únicos protagonizados por pessoas não brancas apresentam papéis subalternos (um operário e uma criminosa); e pessoas LGBTs simplesmente não existem, nem como amigo-gay-da-esposa-que-fala-umas-coisas-engraçadas, nem como figuração. San Junipero é o oposto disso tudo. Aqui, temos um casal inter-racial de mulheres complexas e tridimensionais, onde a individualidade de cada uma é reconhecida e explorada, sendo uma lésbica e a outra bissexual. E aí entra outra questão importante que, embora não seja o foco, permeia toda a narrativa: o modo como as tecnologias provenientes da web 2.0, dos sites de relacionamentos ao tumblr, foram extremamente importantes para a melhoria de vida de indivíduos queer. Se a vida em rede facilita a criação de comunidades de interesse, que não mais estão presas a limites geográficos, é inegável a influência que isso causa nas lutas e vivências de grupos minoritários. Graças às tecnologias, é mais fácil para uma lésbica de 20 anos com pais homofóbicos e religiosos encontrar meios de se expressar e encontrar o seu espaço nos dias de hoje do que seria em 1987. E eu não digo isso por acreditar que a sociedade está mais receptiva as diferenças (até porque eu não acho que esteja), mas porque nós temos ferramentas que abrem novas possibilidades.
E quebrando outro forte tropo televisivo, em San Junipero nenhuma mulher que ama outra mulher morre no final (quer dizer, ou pelo menos não morrem como um castigo). De qualquer maneira, desta vez, elas tem um final feliz. Em um ano onde dezenas de personagens lésbicas e bissexuais morreram em programas de TV, e muito se discutiu sobre o assunto, é curioso que a redenção e esperança em um futuro mais promissor na representatividade de mulheres queer tenha vindo, surpreendentemente, do mais cético dos seriados da atualidade.
Este é de longe o episódio mais otimista de todas as temporadas de Black Mirror. Nem parece que foi escrito pela mesma pessoa que fez o péssimo Shut up and dance. É uma história que me deixou bastante emocionado e com aquele calorzinho no coração. E também me fez pensar como Black Mirror poderia sim ser uma série extremamente potente se conseguisse deixar de lado o cinismo e a paranoia que se repetem sistematicamente por quase todos os episódios.

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