“É triste não saber ler, né, moça?”

Fora da Asa|Experiências Plurais
foradaasa
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2 min readOct 12, 2021

Acabei de ouvir isso de um paciente — analfabeto, obeso, com andador, sonda pra urina, com os pés descalços e muito inchados. Eu estava atendendo e vi quando ele começou a se aproximar. Até ele conseguir chegar no guichê, eu atendi 2 pacientes. Saí da recepção para entregar um documento e já fui na direção deste outro. Ele precisava agendar exames. Peguei os papéis e pedi para que ele se aproximasse do guichê.

Prontamente perguntei: “O Sr. quer aguardar sentado nas poltronas enquanto coloco na agenda seus pedidos?” “Não se preocupe, posso ficar aqui, não quero atrapalhar.” Comecei a fazer os registros e ele: “Moça, tenho dificuldade de entender as coisas, pois sou analfabeto, pode ver pra mim se meu nome está certinho nos papéis do médico?”

Nesse momento, eu juro, morri por dentro. Meus olhos encheram de lágrimas. Conferi e disse que sim. “É muito triste não saber ler, né, moça? Não temos certeza de nada. Mas vou me achando.” Em alguns minutos, estava tudo pronto. Precisei confirmar o telefone. Ele foi pegar um papelzinho no bolso da blusa com o número do irmão. Na hora, o papel rasgou. Anotei o número em outro papel e colei com um pedaço de durex o papel rasgado. Entreguei os dois pra ele, caso eu tivesse anotado errado o número. Expliquei tudo. Ele abriu um sorriso e agradeceu. Pediu desculpas por ter dificuldade e que não faria mais perguntas para não me atrapalhar.

Foi indo embora devagarinho. Não segurei a onda, não deu. Quem tem que pedir desculpas para o senhor é esse sistema, essa política toda, todos nós. O direito constitucional que o senhor possui de ter acesso à educação, à saúde, ao bem-estar foram violados. Não o conheço, não tenho direito de julgar seu caráter, mas tenho a obrigação de lutar para que o senhor e tantos outros possam ter qualidade de vida!

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Livia Monteiro

Como artista latina, trabalho de forma politica, radical e visceral. Tenho por objetivo fortalecer a luta feminista com suas produções de múltiplas linguagens e responsável por ações anti-fascistas, antirracistas, que apoiam o movimento LGBTQIA+, estudando, escutando e lutando pela garantia de direitos.

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Somos um projeto coletivo de ações educacionais plurais em busca de diferentes modos de existência e de outra humanidade possível.