Germaine é Cinema!

Luciana Tubello Caldas
foradaasa
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4 min readOct 31, 2021

Eu sou uma espectadora bem atrasada no quesito “série”, tanto que somente recentemente assisti a Fleabag (2016–2019), de Phoebe Waller-Bridge. Achei a série ótima, fui atrás de críticas e textos sobre ela e me deparei com frases do tipo “Meu Deus, ela quebra a quarta parede!”. Michel Poiccard e Ferris Bueller mandaram lembranças e Monika nos confronta, mais uma vez, com o seu olhar. O ponto, aqui, não é a “quebra da quarta parede”; mas sim o nosso olhar apressado para as imagens do presente e meio que alheio às imagens do passado. E este ponto nos leva a refletir sobre o quanto ignorar as imagens que antecedem as imagens do presente beneficiou uma história do cinema narrada e protagonizada por homens. Logo, é fundamental reconhecermos aquelas que vieram antes de nós para, assim, reivindicarmos um lugar que nos pertence historicamente — desde os primórdios do cinema — , muito antes do Me Too.

Por que Germaine?

Alice Guy Blaché é a grande precursora do cinema narrativo, sendo a primeira cineasta a roteirizar e dirigir um filme de ficção — La fée aux choux (1896). Também, visionária, realizou os primeiros experimentos de sincronização de som, colorização e uso de efeitos especiais. Louis Weber também merece ser citada no rol de pioneiras do cinema, sobretudo em relação a D. W. Griffith, que figura na história do cinema como fundamental na criação da decupagem clássica. Mas, ao olharmos o conjunto da obra de Germaine Dulac, em retrospectiva, vemos uma cineasta que apontou muitos caminhos para o que posteriormente seriam as preocupações de artistas como Peter Kubelka e os cineastas da Nouvelle Vague Francesa.

Dulac nasceu em 17 de novembro de 1882, em Amiens, França. Em sua juventude, escreveu críticas de teatro e cinema para o La Française, principal jornal do movimento sufragista francês. Em 1915 fundou a D.H. Films junto à roteirista Irène Hillel-Erlanger. Logo, tornou-se a segunda mulher diretora de cinema atuante na França, precedida por Alice Guy Blaché. Mas é dela aquele que é considerado o primeiro filme feminista da história do cinema. La Souriante Madame Beudet (1923), vai além da inversão de papéis de gênero satirizada por Blaché em Les résultats du féminisme (1906). Em Madame Beudet, Dulac narra a falência de um casamento hetereossexual burguês pela perspectiva da protagonista. Sem abrir mão do melodrama, Germaine Dulac flerta com o surrealismo e o impressionismo francês para dar conta da tensão psicológica vivida pela personagem. Hoje, poderíamos facilmente defini-lo como sendo um filme sobre um relacionamento abusivo — tão amedrontador quanto O Homem Invisível (2020), de Leigh Whannell.

“La Souriante Madame Beudet” (1923), de Germaine Dulac
“La Souriante Madame Beudet|” (1923), de Germaine Dulac

Reivindicando a autoria

Em 1927, acontece um ponto de virada na filmografia de Dulac com o filme L’invitation Au Voyage. Neste trabalho, a diretora se propôs realizar um filme se valendo unicamente da força da imagem — dispensando o uso de intertítulos. O filme conta a história de uma mulher cansada de ser ignorada e traída pelo marido. Em uma noite, sozinha, ela decide ir para um uma boate frequentada por marinheiros e oficiais. Lá, ela conhece um homem que, ao descobrir que ela tem uma filha, decide trocá-la por outra. Apesar do roteiro ousado, o que nos chama a atenção é a cartela final, em que a própria mão de Germaine assina o filme, em um gesto de autoria reivindicado anos mais tarde pelos cineastas e críticos da Nouvelle Vague francesa.

Outra relação possível de se estabelecer é com o cinema de Peter Kubelka, precursor do cinema estrutural. Em sua trilogia abstrata — Thèmes et variations (1928), Disque 957 (1928) e Étude cinégraphique sur une arabesque (1929) — Dulac se centra na lógica formal do cinema rumo à abstração. Concepção presente em muitos dos trabalhos de Kubelka, como em Schwechater (1958) em que ele disseca o movimento fílmico, a partir de uma montagem métrica que enfatiza o ritmo.

“A Concha e o Clérigo” (1928), de Germaine Dulac

O primeiro filme surrealista?

Em, talvez, um eterno debate sobre qual o filme inaugura o surrealismo no cinema se encontram A Concha e o Clérigo (1928), de Germaine Dulac e Um Cão Andaluz (1929), de Luis Buñuel. Surrealista ou não, é inegável o pioneirismo de Germaine na abstração das imagens com o uso de muitos close-ups, plongées em diagonal, fusões e distorções. Antonin Artaud, que realizou o roteiro, não aprovou a adaptação de Dulac. De acordo com Matthew Gale (2007), no catálogo da exposição Dali and Film, Andre Breton leu o roteiro em voz alta durante a projeção para marcar a suposta superioridade do texto sobre a visão e as imagens de Germaine. Ado Kyrou (2005), em Le Surrealisme au Cinema, chega a dizer que Dulac traiu o espírito de Artaud e realizou um filme feminino. Ainda assim, diferentemente de muitos teóricos e historiadores do cinema, Kyrou admite que A Concha e o Clérigo continua a ser o primeiro filme surrealista.

Certamente, Germaine Dulac não se importaria com nada disso… Ela devia saber que era maior do que qualquer vanguarda ou movimento. Germaine é Cinema!

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Luciana Tubello Caldas
foradaasa

Crítica de cinema pouco esforçada que queria escrever com leveza e humor, mas fez um mestrado que estragou tudo!