Quando o seu amigo age como um esquerdo macho,

Marília Saldanha
foradaasa
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7 min readJun 1, 2021

na festa do seu Bota Fora.

Certa vez eu vivi um conflito com um amigo na minha festa de bota fora. A cena que recorto e trago para a nossa análise é digna de uma película de Almodóvar. Emoções fortes, cores vibrantes e um espumante. Antes de rememorá-la, vou desenhar o contexto para que se situem. Mas se você preferir pular esta parte, é só ler a partir da Noite do Bota fora.

Estávamos em 2017 na Cidade do Porto, Portugal, onde passei quatro meses fazendo uma parcela de meu doutorado em Psicologia Social. Ao longo deste período, quando não estava estudando, encontrava algumas amigas que estavam, em situação similar, estudando na Universidade do Porto.

O amigo em questão, por outro lado, era um ex-colega de mestrado que estava começando a morar nesta cidade com a sua companheira. Encontrávamo-nos para passear e ir a alguns bares no Centro Histórico. Chegamos a trocar visitas em algumas ocasiões.

Lembrava-me que no tempo do mestrado, ele tinha uma colega com quem andava para cima e para baixo. Chamava-me a atenção que ele constantemente a criticava, corrigia sua fala e estava sempre policiando-a em seus posicionamentos. Este comportamento não encaixava com a boa impressão que tinha dele, um rapaz de esquerda, alternativo, psicólogo, simpático e bem-educado. Coincidentemente, vim a saber que ele era filho do meu ex-terapeuta o que, em uma certa medida, agregava-lhe valor, já que o pai era um homem íntegro e um bom profissional. Nesta época, embora já estudasse gênero, eu ainda não estava suficientemente encharcada de feminismo para sacar que embora de esquerda, o rapaz em questão tinha algumas características do que hoje chamamos de esquerdo macho.

Pausa para delinearmos aproximadamente o perfil* de sujeitos assim:

apoiam o feminismo, conhecem os termos, as pautas.

participam de passeatas.

MAS, não suportam que os feminismos os incomodem.

apoiam a liberdade sexual das mulheres, das outras, não as da suas companheiras.

interferem no estilo das suas companheiras, mas negam este comportamento.

Topam transgressões sexuais somente se for na versão: ele com duas mulheres. Negam qualquer homofobia em seu comportamento.

São capazes de transformar em monólogo uma conversa com uma mulher, onde apenas eles falem.

Interrompem e desqualificam o que a mulher diz.

Ouvem o que a mulher diz e depois explicam-lhe o que seria, na sua opinião, a versão melhor dos fatos.

Pensam que o seu entendimento sobre o feminismo prevalece sobre a experiência de uma mulher.

Diante de uma notícia de um estupro, cometido por alguém famoso contra uma mulher, ficam revoltados; quando os seus amigos cometem o mesmo crime, relativizam e imputam culpa nas mulheres.

Diante de casos mais raros de mulheres que cometem violências contra os homens ou que mentem sobre violências sofridas, já colocam em dúvida as desigualdades de gênero no âmbito mais amplo.

O esquerdo macho na prática

Oito anos depois da experiência do mestrado, estávamos na mesma cidade, em Portugal . Quando o reencontrei e partimos a fazer programas diversos fui observando que ele tentava se colocar numa posição professoral em relação a mim. A primeira vez que jantei na casa do casal, levei um vinho. Ele começou a me “dar aulas” sobre as regiões de Portugal e os vinhos típicos de cada uma.

Certa vez corrigiu-me quando falei sobre o itinerário do bonde, e antes que eu pudesse situá-lo, deu-me ‘uma nova aula’ sobre o mapa do metrô. Interrompi-o para esclarecer de que me referia ao bonde e não ao metrô. Apontou na rua onde eu morava, que havia uma lixeira mais próxima da minha casa do que a que eu estava utilizando. Só que ele não sabia porque eu usava aquela e também não perguntou. Ele sempre partia do princípio de que eu não sabia. Havia um sorriso sutil que eu apreendia em seu rosto durante ‘as lições’. Era nítido o quanto ele se comprazia neste papel de professor.

Vou detalhar um pouco mais. No dia seguinte a este episódio fiz o mesmo trajeto sozinha. Dei-me conta que aquela lixeira apontada por ele, eu já havia visto, mas tinha decidido cortar o ângulo da ladeira que subia para tornar mais confortável e com menor esforço, a subida. Esta era a razão pela qual não usava a lixeira mais próxima.

Quando estávamos na minha casa, ele observou que a sacola das compras que eu utilizava estava do avesso. Questionou-me a respeito. Expliquei-lhe que com este gesto escondia o logotipo de um supermercado, pois não gostava de fazer marketing de nenhuma marca. Foi então que ele ‘me explicou’ que eu não precisava esconder o nome daquele supermercado que só existia no Brasil. Ou seja, de novo ele partiu do pressuposto que eu estava fazendo algo sem noção da realidade circundante. Foi aí que informei-o que havia colocado a sacola no avesso ainda no Brasil para não fazer propaganda do supermercado local, na cidade onde eu morava. Simplesmente a sacola estava do mesmo modo que eu costumava usá-la. Sua expressão facial se transformou, ele ficou visivelmente decepcionado, provavelmente consigo próprio, com seu curto alcance a respeito da minha alteridade. Eu não era tão tonta e ele por sua vez, não era tão esperto!

Interessante pontuar a nossa diferença de idade e minha experiência de vida: eu, em torno de uns onze anos mais velha. Não era a primeira vez que estava no exterior, vinha de uma longa jornada de muitas viagens mundo afora. Isto não bastava para que ele reconhecesse que não tinha que ser meu guia naquela cidade.

No primeiro encontro, o amigo mostrou-se curioso em relação à temática de minha tese. Quando disse que estabelecia um diálogo entre Psicologias e Feminismos e que estava em Portugal para conhecer algumas pesquisadoras feministas, percebi em seu semblante um impacto típico de quem teme este movimento social e político.

Ele, por vezes, fazia a linha do bom mocismo. Quando petiscamos num bar ao fim da nossa estada lá, ele levantou-se. Como nós (eu e sua companheira) nos preparamos para sair, ele interpretou que estávamos seguindo-o e ‘liberou-nos’ dizendo que o fato dele ter levantado não significava que precisávamos ir embora. Mas quem disse que não tínhamos vontade própria?

A noite do bota fora

Como eu apreciava a amizade de sua companheira, fui relevando estas manifestações sexistas que se diluíam entre um passeio e outro. Até que antes de voltar da Cidade do Porto para o Brasil decidi fazer um bota fora. Primeiro um piquenique no Jardim Botânico e por fim uma saideira com espumante no apê em que me encontrava instalada.

Uma amiga e um amigo ficaram pelo caminho depois do piquenique ao ar livre. Reunímo-nos em cinco pessoas no apê. Assim que chegamos, organizamos a mesa de jantar com os petiscos, copos, pratos e guardanapos. Todes se sentaram em torno da mesa e eu fui a última a chegar. Quando estava me aproximando, das quatro pessoas sentadas, o amigo era o que estava em estado corporal de prontidão para pegar a garrafa do espumante que eu trazia.

Detectei meu estômago roncando, uma fome imensa tinha tomado conta de mim. Entreguei a garrafa a ele, e enquanto entregava-lhe o objeto precioso ainda de pé, disse a todes:

— Qualquer pessoa pode abrir a garrafa…

Eu queria romper com qualquer ritual tradicional que pudesse passar a impressão de que ao homem heterossexual daquela mesa, seria concedida a honra de abrir a garrafa. Então, fui mencionando o nome de cada um e uma, mas ao chegar no nome da última pessoa, ga-gue-jei.

Ter gaguejado foi a deixa que faltava para ele utilizar-se da zombaria, estratégia comumente utilizada para enfraquecer adversárias(os) políticas(os). Não nos iludamos, as relações de poder se estabelecem em qualquer situação social e lamentavelmente entre amigues, também.

Isso bastou para que aproveitasse a dificuldade transitória da minha fala, para me caricaturizar. Ele passou a imitar-me, enfatizando a gagueira, entre risos, enquanto tomava a garrafa para si. Ria entredentes e afirmava ironicamente que eu não parecia ser tão…psicóloga-feminista.

Diante da brincadeira, senti uma revolta se alvoroçar dentro do meu peito. Antes de qualquer ação o indaguei:

-Você está lendo (interpretando) meu comportamento?
(pergunta retórica que permitia a ele desculpar-se, mas o amigo não aproveitou a chance).

Continuou rindo e movimentando a garrafa, insistindo na ‘brincadeira’ inconveniente. Ele, o filho de meu ex-terapeuta estava ali, segurando o espumante de minha festa de bota-fora, prestes a abri-lo. Debochando da minha gagueira, questionando minha identidade feminista. Ele, o ‘amigo’ ciente de que eu tinha realizado uma travessia transoceânica para fazer um estágio de doutorado no tema do feminismo naquele país lusitano. Ele supôs que no meu território, na minha festa, com minhas amizades e com o espumante que eu havia comprado, poderia seguir sendo inadequado, sem limite algum.

Mesmo demonstrando meu incômodo, ele não arredou o pé do sarcasmo.

Foi então que olhei bem fundo em seus olhos, e estendi meu braço na sua direção, cruzando-o por sobre a mesa. Enquanto a luminária incidia uma luz âmbar sobre a cena, eu disse:

- me passa esta garrafa!

Seu rosto transmutou-se. O riso sarcástico desapareceu num estalar de dedos. O rapaz murchou como murcham os balões quando lhes é retirado o ar. A arrogância que o inflava, disfarçada de brincadeira inofensiva, saiu da sala escandalizada pelas escadas do prédio. A frase imperativa bloqueou seu prazer misógino no ato. Sua companheira que se regozijava junto a ele também impactou-se com minha atitude. O olhar dela transformou-se num pelotão de fuzilamento.

De posse da garrafa, posicionei-a verticalmente e comecei a retirar a gaiola que engloba a rolha. Aproveitei para falar de minha experiência acumulada em abrir garrafas de espumante, adquirida nos vinte anos em que trabalhei como comissária de voo.

O amigo gay, que até então não havia se pronunciado, deixou transbordar junto com a espuma da bebida borbulhante, sua dose de misoginia ao proferir as seguintes palavras:

-Está faltando testosterona nesta abertura de garrafa.

Apontei o machismo do comentário e segui enchendo as taças.

Não havia dúvidas, naquela noite elegante de bota fora, a mesa de jantar virou um ringue, e eu, que nunca tinha lutado boxe, simplesmente produzi um primeiro nocaute no amigo esquerdo macho.

Eu, uma simples Psicóloga Feminista.

*Não há nesta lista de aspectos, nenhuma intenção de encaixar exatamente o sujeito da história relatada. Apenas uma inspiração que serve de norte para detectar as incoerências e armadilhas do modo de ser, aparentemente desconstruído, do amigo em questão.

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Marília Saldanha
foradaasa

Mestra e Doutora em Psicologia Social com viés feminista. Escritos sobre relações de gênero e cotidiano. Contato profissional: mariliasaldanha50@gmail.com