Uma afegã em Porto Alegre

Marília Saldanha
foradaasa
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5 min readAug 22, 2021
imagem de Persépolis da obra, Persépolis de Marjani Satrapi

Tragicamente, o que temos para escolher, em certas circunstâncias na vida, reside entre, uma alternativa terrível e outra menos pior. Ficar no nosso país turbulento ocupado por facções de milicianos fundamentalistas misóginos ou ir para o outro lado do mundo em busca de paz e vida digna, sem garantias sobre a cordialidade do suposto país acolhedor? Ter saída escancara uma brecha de esperança, mas os obstáculos, as precariedades e o sofrimento nos esperam numa dimensão que não temos ideia na outra margem. Estamos diante do desconhecido, do escuro, do incerto. E nos lançamos.

Ler a reportagem da BBC News Afeganistão: o que aconteceu com 100 refugiados afegãos que o Brasil recebeu há quase 20 anos incitou minha vontade de dedicar um escrito às mulheres afegãs. Desde que Cabul foi retomada pelo Talibã algumas cenas que a mídia expôs em fotos e vídeos, não me saíram mais da cabeça e meu coração partiu-se junto ao de tantas outras pessoas estupefatas. Aviões superlotados de pessoas refugiadas em pé, espremidas dentro da cabine sem poltronas! Crianças-bebês sendo entregues para soldados no auge do desespero em meio à arames farpados. Pessoas despencando dos céus porque se agarraram ao trem de pouso de aviões que decolaram.

A minha experiência pessoal como imigrante interna é muito tênue para poder me aproximar da dimensão do que possa ser a de uma mulher refugiada de um país do Oriente Médio. Os motivos que me levaram a cruzar fronteiras e sair de minha terra natal do sul para o sudeste, estão relacionados a trabalho. Quase quatro anos morei em São Paulo, vinte e um anos no Rio de Janeiro. Experimentei ser estrangeira em muitas viagens ao exterior como comissária de voo da extinta Varig e como turista. Morei cinco meses em Los Angeles, CA, USA a trabalho e sete meses na Cidade do Porto, Portugal por estudo.

A Rebecca Solnit em seu ensaio, A escuridão de Virginia Woolf (no livro: Os homens explicam tudo para mim, p.107) diz:

é tarefa dos escritores(as) e dos(as) exploradores(as) enxergar além, viajar com pouca bagagem quando se trata de preconceitos, entrar na escuridão de olhos abertos

Não sei o que é ser refugiada e sair em desespero do país de origem. Senti vontade de morar fora do Brasil pouco antes de Bolsonaro assumir o cargo presidencial. E chorei no aeroporto Francisco Sá Carneiro quando voltei da Cidade do Porto onde o desejo de ser imigrante noutro país nasceu. Nem de longe experimentei tamanho sofrimento como o de Nabila, a afegã que veio para o Brasil em 2002 e proferiu as frases:

“Eu preferia dormir nas ruas do Brasil a voltar ao meu país. Eu conseguiria alimentar meus filhos mesmo na rua, mas não podia deixar que eles vivessem na guerra”.

“Eu me sentiria mais segura dormindo nas ruas no Brasil que numa casa no Afeganistão, que pode ser bombardeada a qualquer momento.”

Nabila veio para Porto Alegre do seu primeiro refúgio, a Índia, onde conheceu um afegão que se tornou seu marido, ele também um refugiado. Tiveram dois filhos e problemas na conjugalidade permeada pela não adaptação dele ao Brasil. Ele voltou para o Afeganistão em 2007 e Nabila permaneceu, sem abrir mão dos filhos que ficaram com ela.

Enfrentou o afastamento do país e de sua família de origem; uma nova língua, o português, considerada difícil por ela; o choque cultural que é um estranhamento experienciado pelo contato com culturas diferentes; condições adversas para a recolocação profissional e a xe-no-fo-bi-a.

Apoiemo-nos na seguinte acepção, do Brasil-Escola:

Xenofobia é aversão preconceituosa à quem é estrangeiro(a).

Exemplo:

Nabila foi chamada de mulher bomba!

Ela que fugiu das bombas que caíam dos céus do seu país, ela que queria uma vida melhor, que buscava paz para seus filhos, que usa hijab uma vestimenta típica de sua religião, ela que ousou fincar os pés em terras brasileiras com seu jeito de ser, que não se deixou dominar pelo marido ciumento, que manteve os filhos sob a sua asa. Ela foi catalogada pelo preconceito xenofóbico no modo verbal expresso por algumas pessoas que habitam Porto Alegre. Quem a insultou tinha medo que ela explodisse. Para ser ainda mais precisa, neste caso o que a Nabila sofreu foi islamofobia.

Reproduzo o resumo didático do Brasil escola que explica o termo:

Islamofobia é uma forma de preconceito quanto à origem étnica e religiosa contra quem é muçulmano(a).

Foi intensificada pela ascensão de movimentos nacionalistas de extrema direita.

O surgimento de grupos terroristas islâmicos fundamentalistas dificulta a luta contra a islamofobia.

Os grupos terroristas fundamentalistas islâmicos não representam o islamismo.

O espanto, a curiosidade, o estranhamento em si não são problemáticos. Estranhamos o que não conhecemos. É duplo o espanto: quem imigra e quem acolhe, o sentem. No entanto, o que fazemos com estes sentimentos? Como o expressamos?

Talvez eu tenha visto Nabila aqui em Porto Alegre. Lembro de ter cruzado por uma mulher com as características dela, há algumas semanas, antes da recente crise no Afeganistão, no Parque da Redenção, numa região central da cidade. Senti um impacto ao vê-la, um estranhamento pelo que parece-nos exótico. Mas evitei deixá-la perceber minha expressão de curiosidade.

Porto Alegre é uma cidade pouco cosmopolita, mas eu já tinha visto e tido contato com pessoas de regiões longínquas, como um casal e sua família de Taiwan cujo estabelecimento comercial fica em frente a minha casa. Eles se vestem de um modo mais comum, chamam pouco atenção, salvo pelos traços físicos e pelo sotaque.

Nabila veio há vinte anos para cá junto com outras pessoas afegãs. Ela ficou na cidade apesar do desconforto experimentado com os modos islamofóbicos de alguns cidadãos no ônibus que não queriam sentar-se ao lado dela. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas, ela resistiu, construiu vínculos e desenvolveu uma boa impressão do Brasil:

“A gente pode construir família de afeto. Tenho pessoas maravilhosas ao meu redor, que me amam como irmã. São minha família”.

"O Brasil é um país bom. Se não fossem os roubos, seria o melhor país do mundo. Eu, mesmo se tivesse oportunidade de morar no Canadá ou nos Estados Unidos, ia querer continuar a morar no Brasil. As pessoas aqui são maravilhosas, são acolhedoras, sabem olhar para a dor do outro.” (BBC)

Imigrar é a única saída que muitas pessoas encontram para escapar de condições extremamente adversas de seus países, como a fome, a desigualdade social, o desemprego, as guerras, as perseguições políticas. Sejamos um país que ao acolher imigrantes honre o ato de receber com dignidade estes seres humanos. Deslocam-se de tão longe para nossa casa, o mínimo a fazer, é exercitar a cordialidade pela qual nossa cultura brasileira é tão conhecida internacionalmente e motivo de orgulho nacional.

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Marília Saldanha
foradaasa

Mestra e Doutora em Psicologia Social com viés feminista. Escritos sobre relações de gênero e cotidiano. Contato profissional: mariliasaldanha50@gmail.com