Uma outra escola é possível!

Fora da Asa|Experiências Plurais
foradaasa
Published in
5 min readAug 1, 2021

Escrevo esta carta para vocês, querides alunes, porque quero a todes muito bem; torno-a pública porque, não só como professora, mas também como cidadã, entendo que meu trabalho e minha existência são políticos. Aprendi, com Paulo Freire, que “a minha abertura ao querer bem significa a minha disponibilidade à alegria de viver”. Saibam que, desde o princípio, eu me alegrei em muitas manhãs na companhia perto ou distante de vocês.

Inicialmente, escrevo para contar o que em breve saberão: não serei mais a sora de vocês. Não porque não tenha querido muito, mas porque minha existência novamente não foi bem-vinda no ensino privado. Ainda tento entender o que incomoda tanto em uma professora, com quase 15 anos de docência, um doutorado, aberta ao diálogo e feliz em fazer o que faz. A questão, querides, é que o ensino privado é ainda bastante conservador. Não se trata exatamente do diálogo que muitas escolas da rede privada têm com a religião (Paulo Freire, patrono da educação brasileira e defensor absoluto da educação libertadora era cristão, por exemplo). Deus não tem nada a ver com isso — a ignorância (a serviço do exercício de poder) é coisa dos homens e das mulheres na Terra mesmo.

Trata-se de que, na rede de ensino privada, a educação ainda está a serviço da manutenção de privilégios de um grupo social dominante — do qual, muites de nós fizemos parte em alguma medida. E, para que esse projeto de educação dê certo, as vozes que tentam democratizar o ensino e os saberes, como a minha, nunca serão bem-vindas. De outro modo, querides, tenham certeza de que um projeto de educação para a libertação, isto é, que com os saberes possamos pensar mais, certo e melhor, a fim de transformar o mundo em que vivemos, será preciso mexer nessa grande — branca, heterossexual, logocêntrica — e forte estrutura. E, para essa tarefa, eu acredito em vocês! Desacomodem-se! Sempre tive muitas discussões com minhas colegas de profissão em outros contextos sobre a força da juventude. Há quem pense que a juventude é uma época de bobeiras e sem comprometimento. Eu sempre pensei o contrário — acredito mais na revolução que vocês podem fazer do que a de qualquer governança — tampouco a desse genocida que foi eleito por essa mesma classe social dominante e que se mantém no poder devido ao silêncio de muitos e muitas.

Que fique bastante evidente: Não estou sugerindo uma insurreição que esteja de acordo com o não estudo, o não comprometimento, o abandono dos espaços escolares. Estou sugerindo exatamente o oposto — acredito que uma outra escola é possível. Ocupem os espaços de dentro e fora das salas de aula, sugiram mais livros na biblioteca, criem documentos que exponham o que reivindicam, produzam um jornal para comunicar à comunidade escolar o que vocês pensam, responsabilizem-se pela transformação. É certo que alguém esteja se perguntando: Mas é mesmo necessário tudo isso? Essa professora aí não está exagerando? Querides, não. O projeto de ensino domiciliar foi aprovado pela Assembleia Legislativa no RS, a escola sem partido segue a toda, o desmonte das políticas de educação pública e gratuita é evidente — a ver os números de inscrites no ENEM deste ano. Entendo que isso tudo não afete vocês diretamente, mas vivemos em sociedade, olhem para os lados! Por que não temos professores negros na escola? Por que a professora casada com uma mulher e de esquerda foi demitida no meio do ano letivo? Por que falar sobre a perversão evidente de Bolsonaro é um problema? Por que rezar sempre a Ave-Maria se Iemanjá é também mãe de todes nós? Por que é preciso de tantas autorizações para se elaborar um projeto no qual as mulheres sejam as protagonistas? Onde está o estudo das cosmologias indígenas? ………………………………………….. Por que, afinal, se teme tanto aqueles e aquelas que trabalham pela educação sem medo?

Quero contar a vocês, querides, que é sim possível um projeto de educação outro, verdadeiramente democrático e libertador. Não se pode passar 12 anos em uma instituição escolar e sairmos todes pensando da mesma forma — como relatou o ex-colega de vocês na abertura do último evento de que participei no colégio. Não se pode excluir o diferente, o dissenso, o diverso e o divertido. Não se pode, inclusive, aceitar que a escola nos prepare exclusivamente para o vestibular — a vida, querides, é muito mais do que isso. Espero, mesmo que em tão pouco tempo, ter conseguido disfarçar minhas dores — aprofundadas pela pandemia — para ser, sobretudo, aquela que apontasse para o pensar — um pouco mais, certo e melhor. Nesse projeto de educação outro, nós poderíamos ter convidado os/as integrantes do Boca de Rua para estarem juntes de nós, mesmo que online, e ligaríamos as câmeras para participar desta conversa. Nós falaríamos sobre como é viver na rua, nós ouviríamos e leríamos seus relatos — e eles/elas poderiam fazer suas críticas sempre tão contundentes sem medo. Nesse projeto de educação outro, a escola convocará as turmas para a manifestação contra o pandemônio e teremos oficinas para a confecção dos cartazes; ensinará sobre a religiosidade africana e nós compartilharemos da rica sabedoria afrolatinoamericana; fará uma imensa roda para cantarmos juntes de um coral Mbyá-Guarani e entenderemos mais as maravilhas da criação do mundo na sua forma de compreender o universo; organizará um sarau para falar sobre gênero e sexualidade e convidaremos Rita Von Hunty para conversar com a gente — e isso tudo será tão interessante que nem vai parecer que estamos na mesma escola. E de fato não estaremos — esta escola será outra.

Por fim, querides, convido a todes para conhecer um pequeno projeto e espaço de educação e cultura, que fica na Cidade Baixa e que seja chama Fora da Asa — Experiências Plurais. Lá é um pequeno refúgio das sombras do autoritarismo, do preconceito, do silenciamento forçado. Lá eu posso ser a professora que sempre lutei para ser. Lá eu construo projetos com mulheres brancas, pretas e indígenas, com homens gays, mulheres trans, pessoas não-binárias. Lá todes vocês serão sempre bem-vindes — desde que implicades eticamente no compromisso por uma educação para todes. E, lembre-se, ética não tem dois lados, assim como o pensar certo, cuja inconclusão alimenta nossa curiosidade e reconhece a justa raiva — aquela que “protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência” (FREIRE, 2016, p.41).

Quanto a mim, fiquem tranquiles. Tenho 36 anos e sou feita de esperançar. Com mais essa demissão, descobri que meu lugar é mesmo na educação popular e pública. E, em breve, é lá onde estarei também!

Com muito afeto,

Profa. Dra. Camila Alexandrini

Deixo meu email pessoal caso queiram entrar em contato: camilalexandrini@gmail.com

30/07/2021

PPE/UFRGS — Turma de PLA com Jornal Boca de Rua, 2015.

“Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo” — Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, 2016, p.20.

--

--

Fora da Asa|Experiências Plurais
foradaasa

Somos um projeto coletivo de ações educacionais plurais em busca de diferentes modos de existência e de outra humanidade possível.