Xingamentos antifeministas

Marília Saldanha
foradaasa
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9 min readMar 26, 2021

O feminismo é um movimento social e político que teve suas primeiras células pulsando durante o período da Revolução francesa, lá pelos idos de 1789. Teve como ícone inesquecível, a Olympe de Gouges que lamentavelmente foi guilhotinada por querer que as mulheres da época também gozassem dos mesmos direitos que os homens. Para tal se atreveu a publicar um texto intitulado Os direitos da Mulher e da cidadã. Ela não lutou sozinha. Outras revolucionárias francesas se insurgiram e reivindicaram numa assembleia, a mudança de legislação sobre o casamento que outorgava ao marido, direitos absolutos sobre o corpo e os bens da mulher.

Desde há muito tempo então, estamos na luta por eles — os direitos humanos das mulheres.

Mesmo antes de saber da história da Olympe, e de outras sobre os feminismos, estranhava o fato deste movimento ser atacado. Instigada a saber as motivações para sua estigmatização avancei num processo de doutorado e durante o estágio cheguei num livro: Feminismos percursos e desafios da Manuela Tavares (2010), uma feminista das antigas, de Portugal. Trata-se da tese de doutorado dela transformada num objeto-livro de 746 páginas. Isso mesmo! Então, aproveito para lembrar que feminismo além de movimento político é também campo teórico que transversaliza inúmeros campos de saber legitimados nas universidades, mundo afora. Além da tese da Manuela Tavares, há muita produção de conhecimento científico com perspectiva feminista em forma de dissertações, teses e artigos.

A Manuela Tavares (2010) dedicou algumas páginas da sua tese aos antifeminismos que estão presentes nos dois campos políticos, da direita e da esquerda por motivações diferentes. Estão presentes em Portugal, no Brasil, e em qualquer lugar onde desponte o fascismo que vê no feminismo um inimigo a ser eliminado. O que quero frisar é que, em linhas gerais, a direita se posiciona contra as reivindicações dos feminismos na busca pela emancipação das mulheres e uma parcela da esquerda entende o feminismo como sendo um movimento conduzido por mulheres burguesas que lutam apenas pelo seu próprio círculo de mulheres privilegiadas.

Quando um movimento político, uma instituição, uma empresa, ou mesmo uma corrente de pensamento é vilipendiada, embora saibamos que pessoas se encontram na base de sua existência e manutenção, o ataque não parece atingir ninguém diretamente, ficando tudo num plano mais abstrato.

No entanto, quando as pessoas que representam um movimento, como é o caso das feministas, são caricaturizadas, xingadas e demonizadas ao extremo ao longo dos séculos, precisamos produzir conhecimento que explicite as intencionalidades destas violências.

O ponto que quero chegar é nos xingamentos que são proferidos às feministas e que persistem ao longo da história do feminismo.

Basta se apresentar ao mundo com o sobrenome feminista, para que o pensamento conservador acorde dentro dos seres humanos contrários ao movimento feminista. E isto se expressa verbalmente e por escrito nas mais diversas situações ao longo da história. Rachel Soihet (2005) traz em seu artigo, Zombaria como arma antifeminista: instrumento conservador entre libertários um recorte dos anos de 1960 onde ela analisou fenômenos da chacota antifeminista utilizada especialmente pelos jornalistas do Pasquim, periódico carioca contracultural de oposição ao regime militar brasileiro. Embora de esquerda, os jornalistas mostravam-se mordazes quando o assunto eram as reivindicações dos direitos das mulheres. Ridicularizavam toda e qualquer ativista e não pouparam Betty Friedan, psicóloga feminista e ícone do feminismo estadunidense, quando ela esteve no Brasil. Ela não deixou por menos, claro e amorteceu o conservadorismo dos rapazes em alguma medida. Podemos respirar aliviadas e prosseguir.

O tempo passou e os insultos se mantiveram vivos. Continuam genéricos e são dirigidos a esmo, como uma metralhadora giratória, nas mais diversas instâncias e uma delas é o campo vasto da internet com suas redes sociais.

Garimpei alguns xingamentos clássicos (e convenhamos, toscos) para nos debruçarmos nesta janela. Convido vocês a verem a banda passar comigo, de posse de um olhar bem crítico.

Ei-los:

· Feias · Amargas · Grosseiras · Vadias abortistas · Agressivas · Histéricas · Vitimistas · Exageradas · Mal-comidas (mal-amadas)· Odiadoras de homens·

Mas afinal, qual o propósito de xingar assim? Destrinchemos os termos e as intencionalidades do seu uso.

Feias- Aqui o ataque é dirigido a um atributo físico.

Espera-se dentro de uma visão heteronormativa tradicional da construção social dos gêneros que as mulheres se preocupem com sua beleza e, de preferência, sejam bonitas e se ornamentem para os homens. Portanto chamar uma mulher de feia, parte de um estereótipo de gênero.

Pergunta que não quer calar:

Se uma mulher está feia, ela tem que ser agredida verbalmente por não agradar aos padrões estéticos e subjetivos de um outro alguém?

Amargas- Aqui o ataque é dirigido a um aspecto subjetivo.

Estar amarga é encontrar-se num estado emocional, agudo ou crônico de ressentimento, de ruminação e descontentamento. Pessoas assim, reclamam da vida com uma certa frequência. Este comportamento repetitivo é sentido pelas outras pessoas como chato, desagradável e elas acabam rotulando-as de ranzinzas. Ou amargas.

As feministas reivindicam, pressionam governos, denunciam. Elas marcham no asfalto, usam megafones e amplificam as vozes das mulheres. Elas incomodam, desacomodam, perturbam o status quo. Desde que as feministas existem e lutam, transformações vem acontecendo nas sociedades. Entre avanços e recuos, vitórias e mudanças visíveis se deram. Em suma, elas fazem o que as pessoas ressentidas não conseguem: alterar o mundo a sua volta.

Pergunta que não quer calar:

Se uma pessoa está ressentida, mau humorada, chata. Se este tem sido um padrão emocional de como ela se apresenta no mundo, não seria o caso de promover acolhimento e afeto?

Grosseiras- Aqui o ataque é dirigido a um aspecto subjetivo.

Um dos sinônimos para este termo é indelicada. O que a educação heteronormativa de gênero tradicional prescreve para as meninas e mulheres? Que sejam dóceis, gentis, suaves, delicadas. Ora, dizer que uma feminista é grosseira é tentar fazer pensar que ela não é uma ‘mulher de verdade’, ou, de qualidade. Em sendo assim, o que ela faz ou diz não deve ser considerado.

Vadias abortistas - Aqui o ataque é dirigido a dois aspectos, sexual e ideológico. Este termo une dois vocábulos. Vamos lá, desdobrar cada um.

Vadia: mulher com comportamento sexual ativo. Abortista: que defende a legalização ou a descriminalização da prática do aborto.

Aqui a misoginia, que é o ódio às qualidades das mulheres, deu as mãos à intolerância fervorosa a um posicionamento político. Mulheres não podem ter sua sexualidade livre (só os homens podem trepar à vontade, tanto que não há um vocábulo pejorativo para homens com comportamento sexual ativo, já que isto é esperado deles) e muito menos decidirem a interrupção da gravidez que acontece nos seus corpos. O termo vadia-abortista quer dizer isto, se uma feminista apoia a descriminalização e a legalização da prática do aborto, ela ‘merece’ ser insultada com um termo que atue como um dardo na testa para derrubá-la ao chão.

Histéricas- Aqui o ataque é dirigido ao aspecto subjetivo.
A palavra histérica tem duas acepções:

1.Trata-se de uma doença psíquica descrita pela psicanálise e minuciosamente explicada no Vocabulário de Psicanálise do La Planche e Pontalis (1998).

2. Comportamento de uma pessoa descontrolada e exagerada.

Vitimistas- Aqui o ataque é dirigido ao aspecto subjetivo.

Aquelas que se vitimizam, se colocam no lugar de vítimas. As feministas lutam pelos direitos de todas as mulheres que sofrem todo o tipo de violências perpetradas pelos homens. Elas denunciam os crimes que violam estes direitos e que tornam as mulheres vítimas deles. Ao rotular as feministas com este xingamento, há a clara intenção de diminuir a gravidade daquilo que elas denunciam.

Exageradas -Aqui o ataque é dirigido ao aspecto subjetivo.

São as pessoas que transbordam suas emoções, que tem um comportamento excessivo diante de uma dada situação.

Pessoas que são consideradas exageradas em seus comportamentos, não são levadas a sério. E é justamente este o objetivo do xingamento, tirar o crédito das feministas levando a crer que elas superdimensionam os problemas das mulheres.

Mal-comidas (ou mal-amadas)- Aqui o ataque é dirigido à sexualidade das ativistas. É um outro termo sem versão para os homens.

A premissa embutida é que uma mulher satisfeita no sexo não se preocupará com mais nada na vida. E não reivindicará direito algum. Afinal, dentro do dispositivo do amor, como a Valeska Zanello nos afirma, as mulheres são preparadas para orbitar em torno dos homens e serem por eles escolhidas. Então, espera-se que mulheres que são bem comidas por homens, sejam apolíticas e vivam saltitantes e alienadas do Brasil que está no 5o lugar no ranking de feminicídio e estupra todos dias, milhares de mulheres.

Odiadoras de homens- Aqui o ataque é dirigido ao aspecto emocional.

Significa mulheres que sentem ódio dos homens. O xingamento tenta fazer crer que, permanentemente, as feministas são anti-homens.

Curiosa a tentativa de inverter o que poderíamos pensar a respeito dos homens em relação às mulheres. Os homens vem matando outras mulheres, outros homens e a si mesmos. São de longe os que cometem mais violências contra outros seres humanos, sem falar na destruição do meio ambiente. No entanto, o xingamento dirigido às feministas tenta nos desviar a atenção deste fato comprovado cientificamente. As masculinidades andam tóxicas e precisam de cuidados e limites. Mas a ideia que tentam imputar de que as feministas são “as figuras adversárias dos homens que querem tomar seu lugar e governá-los” e o fazem movidas por ódio, é uma falácia antiga que tem lá o seu efeito na arena política.

Pensemos aqui.

Existem milhões de feministas em todo o globo terrestre (lembremos que a terra é redonda). Não podemos esperar por uma homogeneidade de traços físicos e personalidade. Há mulheres em toda sua diversidade social e sexual. De todas as idades, cores, etnia e nacionalidades. O feminismo é tão polifônico com uma complexa e extensa variedade de vertentes e bandeiras de lutas e composto por uma multidão de mulheres diversas. Os xingamentos que tentam estereotipar num perfil único e achincalhado todas as ativistas, já esbarra nesta impossibilidade de imediato. Este é o primeiro ponto, os xingamentos generalizam para tentar reduzir e desqualificar.

Segundo ponto:

na descrição que fazem das feministas, os xingamentos opõem as feministas ao que seria numa visão conservadora, ‘uma boa mulher’. Imaginem uma mulher feia, amarga, que odeia os homens e além de tudo é histérica, vadia-abortista, exagerada e grosseira? Onde foi parar a pureza, o recato e a doçura de uma verdadeira princesa, ops, mulher?

Mensagem subliminar:

Vós não encontrareis os atributos de uma boa índole entre as feministas, portanto, não sejais uma delas!

Terceiro ponto:

Demonizar as feministas por meio dos xingamentos é um modo de espalhar pânico moral. Fazer pensar que elas são causadoras de um grande mal para as sociedades, porque elas transmitem os conhecimentos dos feminismos e ancoradas neles, tentam alterar a ordem e promover transformação social.

Conceito

Xingamento é o ato de proferir certos vocábulos para ferir, para humilhar, para desqualificar a índole da pessoa ou do grupo-alvo. Os Xingamentos anti-feministas são violências psicológicas no campo macrossocial.

Pois bem, as feministas se tornam alvo destas violências.

Elas estão à frente do movimento reivindicatório. São as ‘soldadas’ no campo de batalha em prol e na defesa dos direitos das mulheres. Desta forma, os insultos subliminarmente transmitem às mulheres que ainda não aderiram ao movimento o seguinte recado: Não sejam feministas!

Xingamento é uma arma ideológica poderosa de controle social que diz aos sujeitos que espaços eles não podem ocupar. Na visão da direita, as mulheres não podem deixar seus papeis tradicionais de mãe, dona de casa e esposa de um homem. A liberdade acenada pelas feministas é entendida como libertinagem.

Intenção da arma ideológica

Os xingamentos antifeministas pretendem retirar as forças das feministas, se possível, eliminá-las metaforicamente, demolindo seu caráter, seu físico, suas intenções e desqualificando sua sexualidade. Desta maneira, elas ficam desacreditadas pelas mulheres que temem se identificar com elas e assim evitam aderir ao feminismo. É pelo uso de preconceitos e estereótipos que tentam freá-las na arena política. Objetificam-nas pela via do sexismo, da gordofobia, do racismo, da homo-lesbo-bi-transfobia e do especismo.

Feminizar é preciso, por uma cultura filógina diz Margareth Rago (2001). É com esta frase-título do artigo desta historiadora feminista que finalizo este texto. As mulheres ainda são desprezadas nas sociedades e isto se expressa no ataque feito às feministas.

Um mundo filógino é aquele que estima e respeita as mulheres em toda sua plenitude de possibilidades de ser. Não há direita, nem esquerda que segure a liberdade das mulheres.

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Marília Saldanha
foradaasa

Mestra e Doutora em Psicologia Social com viés feminista. Escritos sobre relações de gênero e cotidiano. Contato profissional: mariliasaldanha50@gmail.com