Rasteiras doem

Rafhaella Bonadio
Forasteiras
Published in
2 min readNov 7, 2017

H á algumas semanas, no mesmo lugar e hora vejo uma garota. Dia desses estava no ônibus, ajeitando os curativos entorno do calcanhar e eu a vi. Sob o reflexo dos vidros via-se inerte, com os olhos cansados e pálpebras roxeadas de noites mal dormidas. Apoiava-se na mochila de borboletas contra a estrutura do ônibus.

Acho que estou ficando realmente obcecada, porque não consigo deixar de observá-la nos últimos tempos. Acho que isso se deve ao fato de que eu a entendo. A rotina estudantil, as cobranças que não param de transbordar e uma vida inteira que te obriga a crescer, além das expectativas depositadas em nós. É a mesma sensação de um gatilho entre os dentes 24h por dia.

Reparei principalmente que conforme os dias passam seu semblante muda. Segunda está cinza, quarta pálida e nas sextas-feiras as olheiras gritam em seu rosto. Às vezes escuta música, os fones são como amigos que distraem do mundo perverso. Bate o pé no chão conforme o som e fecha os olhos quando a brisa bate na franja. Esse seria talvez, mas só talvez, um refúgio, um momento sagrado, um respiro entre tantos pensamentos e tarefas.

Fonte: We Heart It

Ontem foi sexta-feira. Antes de embarcar eu já a vi no reflexo do ônibus que esperava as pessoas de mais idade adentrarem. Ela subiu. Um pé, depois o outro. Suspirou alto. Sentou no banco elevado, pertinho das janelas grandes que dão visão pra cidade e olhou pro celular. Eu a via, e consequentemente a tela de seu aparelho.

Ela leu uma, duas, três vezes como se não acreditasse no que estava acontecendo. Seu rosto flamejava por dentro, como se o mundo estivesse ruindo sob sua cabeça. Era uma mensagem informativa: não passara no teste a que tanto se dedicou. Noites perdidas de sono, xícaras de café e cartelas de medicamentos.

Ela estava exausta, surpresa e triste. Como boa aluna e estagiária, apesar dos pesares, entendia como a vida pode nos obrigar a fazer tarefas sem ganhar nenhum alívio, mesmo até depois do final. Eu entendia tudo, desde as crises de ansiedade, as dores de cabeça e todo o sentimento de culpa por não se sentir boa o suficiente pra vida.

Pude ver quando desceu no ponto final, o mesmo que o meu. Agradeceu o motorista e andou três quadras inteiras respirando pela metade. Chegou em casa, pendurou as chaves e foi pro quarto. Então ela gentilmente se curvou e olhou para o espelho. As lágrimas caiam, mas a verdade era crua demais para ser ignorada. Aquela garota era eu.

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