GoT e a armadilha do sobrenome

chicones
formatinho
Published in
7 min readFeb 29, 2020
Emblema da Casa Stark

Game of Thrones (GoT) é uma série sobre os horrores da guerra e como o nome da família leva as pessoas (e países) a fazer as coisas mais insanas, contraditórias em prol de uma honra que só existe em certos círculos. O tema “sobrenome” é um dos mais importantes da série e é o que move, impulsiona e aprisiona boa parte dos personagens.

É interessante ver eles navegando dentro desse limite de “honra do nome”. Ao perceber essa estrutura estratificada, Petyr Baelish (um dos melhores “vilões” da ficção) conseguiu criar guerras, matar pessoas, movimentar nações sem que fosse notado por ninguém das elites de Westeros. Havia um Jogo de Tronos disputado por Starks, Lannisters, Targaryens, Baratheons, Tyrells, Martells, Greyjoys, etc. Mas havia o Jogo do Jogo, na qual essas casas eram peças de tabuleiros de outras pessoas, com ambições, nobres ou não, como o próprio Petyr, Varys, Melisandre, Qyburn e High Sparrow, por exemplo.

Os personagens “navegam” dentro dos limites impostos pelo sobrenome que possuem e pelo conceito de honra que imaginam que tenham que seguir. É o que leva a morte de Ned Stark, que vai seguindo as “trilhas de pão” deixadas por Petyr, descobrindo pistas plantadas e, iniciando, sem saber uma guerra que movimentaria toda Westeros. Será que se ele soubesse que estava sendo conduzido a descobrir que Joffrey, Tommen e Mircella não eram herdeiros verdadeiro do trono ele ainda assim agiria do jeito que agiu e explanaria isso a todos? Sem dúvida nenhuma. É o que a honra manda fazer.

Foi a honra (e a quebra da mesma ao desfazer o casamento com a filha de Walder Frey) que levou o fim de Robb Stark porque não havia outra coisa possível a se fazer diante da situação imposta a ele. Ir contra a honra é que levou Jaime Lannister ser chamado de kingslayer. Diante de uma situação absurda, resolve ir contra o que o deve impunha e acabou por matar o Rei Louco. Ao mesmo tempo, a honra do nome o aprisiona e acaba por levar ao seu fim no final. É por isso que o arco de história de Jaime é um dos mais importantes de GoT, mesmo ele não sendo um candidato sério ao trono de ferro.

Esse desejo de seguir a honra do nome é o mote também de Sansa Stark e é o que faz ela sofrer algumas das piores privações da série. Dava raiva e agonia ver ela cega e/ou obediente para o que acontecia consigo mesma e com as pessoas ao redor. Não podia ir além do que impunham a ela. E concordava com isso porque não havia outra coisa que se poderia fazer.

Cersei percebeu essa estrutura, tentou ir contra ela mas… era uma mulher e deveria aceitar o papel de esposa e mãe de reis. Não poderia reinar. Talvez tivesse mais sorte se fosse uma Targaryen com 3 dragões, mas sendo uma Lannister, sob alçada de Tywin, não teria outra opção.

Essa questão de nome da família também é o que move o arco de Theon Greyjoy, um dos mais bacanas da série. Ele comete um suicídio social ao tentar honrar o nome da família de nascimento e ir contra o nome da família “de criação”. Essa, aliás, é uma dicotomia que ele tinha que lidar sozinho, sem ajuda de ninguém. Theon nunca seria um Stark e seria sempre visto como um outsider, assim como Jon Snow. Mas, mesmo na merda, Theon se considerava melhor que Jon por não ser um bastardo.

O arco dos Baratheons, na série, é trágico porque, mais do que em outras famílias, há irmão lutando contra irmão e pai sacrificando a filha em prol do objetivo maior que é levar o sobrenome ao Trono de Ferro novamente. E Stannis parecia ser uma pessoa honrada até se cegar na jornada em se tornar rei. Mesmo arco que se desenrolaria com a Daenerys Targaryen e, antes dela, seu irmão Viserion.

Daenerys começou a série na posição mais frágil de todas — uma criança refugiada de guerra e vendida para um Senhor da Guerra local — sem ambições maiores. Mas aos poucos vai vestindo as ambições e fardo do próprio sobrenome. Poderia muito bem criar uma própria jornada em Essos e se tornando realmente uma Breaker of Chains, mas cai na tentação de reaver um trono que é mais um dentre vários. O arco dela em Essos poderia ser excelente, mas é relegado em prol do plot da trama.

Ramsay Bolton é um que encontra o fim trágico ao levar ao pé da letra a fama sádica do próprio sobrenome. Joffrey também acredita que pode tudo por ser rei. Os Tyrell ficaram cegos aos perigos que se apresentavam diante deles. Estavam de olho no status que teriam ao ter laços matrimoniais com os Baratheon-Lannisters. Os Tarly são um outro exemplo de morte por orgulho (sobreviveu o outsider gordinho Samwell).

Casa Tully sobreviveu em Edmure apenas porque ele concordou nas regras de matrimônio e casar com Roslin Frey. Às vezes seguir as regras “de sobrenome” também podem garantir a sobrevivência de alguém. Casa Arryn sobreviveu por ser um tanto esquisita e fora dessa guerra de sobrenomes.

Foi para vingar o sobrenome que a Casa Martell, de Dorne, quase foi a ruína. Oberyn morreu vingando a morte da irmã e dos sobrinhos. Ellaria, a amante-quase-princesa aplicou um Golpe de Estado no quase cunhado Doran para levar Dorne à guerra contra os Lannisters. É interessante ver a relação de de Oberyn com as filhas bastardas. Ao contrário dos nobres de outras casas, ele as tratava com atenção e carinho.

Os outsiders com sobrenome

Arya Stark, Tyrion Lannister, Jorah Mormont, Jon Snow, Theon Greyjoy, Aemon Targaryen, Samwell Tarly são alguns personagens que conseguiram fugir da “maldição do sobrenome”, pelo menos por algum tempo, seja por algo que tenham feito (Jorah e Tyrion) ou por algo alheio a eles, como a vontade da sociedade (Jon, Theon, Aemon e Samwell) ou pela guerra (Arya).

De certa forma, é através dos olhos dessas pessoas que é possível ver Westeros de fora do conflito que tomava a trama nas primeiras temporadas. Lembrando que, de certa forma, Daenerys é uma outsider em Essos e é pelas vivências dela que conhecemos parte do continente.

É interessante ver a liberdade que essas personagens possuem na trama, vagando por vários cenários e entrando em contato com todo tipo de gente. Puxando pela memória, acho que Cersei não saiu uma vez de King’s Landing. Sansa também só trafegou entre palácios e fortes.

Ao final da série, vi muita gente reclamando por Jon Snow não se sentar ao trono a qual tinha direito. Mas é bem evidente, que como Targaryen, ele estava mais próximo do Aemon (que queria fugir do peso da política) que de seus outros parentes que visavam o trono.

Foi por falhar em entender a personagem de Arya que Petyr Baelish morreu. Ele viu o sobrenome dela (tentou jogá-la contra a irmã) e não quem ela era e o que ela queria. Arya nunca vai ser uma lady.

Por ser um outsider, Tyrion conseguiu sobreviver ao ocaso dos Lannisters.

Jorah desonra o nome da família ao se envolver com tráfico de escravos pra agradar a então esposa. A trajetória dele se divide entre agir pra absolver o nome da família perante a realeza de Westeros ou seguir o próprio impulso e amor por Daenerys.

Por fim, ao se tornar rei, Bran “perdeu” seu sobrenome. Não é o rei Bran Stark, mas Bran, O Quebrado. Foi uma forma de tentar fugir das guerras de sobrenomes que quase levou ao fim de Westeros.

Outsiders dos outsiders

Já mencionei eles antes no texto. São: Petyr Baelish, Varys, Melisandre, Qyburn e High Sparrow. Sem sobrenome, mas com agenda própria.

Petyr quer o trono mesmo sendo de uma Casa Real sem prestígio algum. E ele consegue ir muito além do que qualquer pessoa imaginaria inicialmente.

Varys quer servir ao trono e não a reis. Ele age, dentro do próprio entendimento, em prol do benefício da população. E contribui com o isolamento de Daenerys nos últimos episódios de GoT. Acredito que as conspirações de Varys podem ter ajudado a empurrar a Mãe dos Dragões pro “lado negro da Força”. Mesmo sendo bem intencionado.

Melisandre serve ao Lorde da Luz e ajuda a espalhar a própria religião. A intenção dela é nobre, ao lutar na Grande Guerra, que se revela como o Night King e seu exército. Pra isso ela ajuda a alterar a geopolítica de Westeros. Mata Renly, quase mata Gendry e os sacrifícios que ela submete Stannis leva quase ao fim da Casa Baratheon.

Cersei encontra em Qyburn o aliado perfeito. Ele tem os meios pra executar os planos dela e por causa deles que os Lannisters se sentam oficialmente no Trono de Ferro. É por conta da engenhosidade dele que surgem as balistas gigantes (os Scorpions) que podem matar dragões e deixam Daenerys em cheque por um tempo.

E, por fim, High Sparrow. A pessoa que quase destruiu os Lannisters sem precisar de dragões pra isso. É uma alegoria perfeita pra mostrar o poder da religião que ambiciona poder político, mesmo sem expressar isso claramente.

É interessante ver GoT pelo recorte de nome e sobrenome.

--

--