Jovem Guarda, nos tempos da Timbolina (pt. 1)

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11 min readDec 9, 2019

Garota ir ao cinema é uma coisa normal”, canta Erasmo Carlos em Minha Fama de Mau talvez em referência ao hoje extinto Cine Madrid, na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. A música foi criada em 1965 e saiu no álbum A Pescaria, em plena época do Cinema Novo. Ir ao cinema era mais normal do que a sociedade atual de telas móveis e streaming. Era o ponto de encontro da juventude e onde acontecia os aquecimentos da galera antes de irem para as noitadas, se fossem de noitadas. Às vezes, ir ao cinema já era a noitada.

Coisa parecida acontecia em outras salas de cinema, como o Paissandu, no bairro do Flamengo, Zona Sul da cidade. Lembro de ler alguns artigos do Nelson Motta no O Globo sempre enaltecendo o local e seus frequentadores. Ruy Castro também escreveu sobre o lugar, num texto bem bacana. É algo que imagino ser parecido com o Cine Madrid, mas tijucano e voltado para o iê iê iê e não para o que viria se tornar a Bossa Nova:

O Paissandu servia de epicentro para vários pontos. O cinema propriamente dito espalhava-se pelos bares ao lado, o Oklahoma, e seu vizinho, o Cinerama, ambos com mesas na calçada (os dois são hoje irreconhecíveis, e o segundo passou a se chamar Garota do Flamengo). Nas noites de sexta e sábado, que eram o apogeu do Paissandu, a falta de cadeiras nesses botequins condenava os retardatários a um terceiro bar, o Venadense, na esquina da Senador Vergueiro com a Barão do Flamengo — a apenas 50 metros, mas que dava a impressão de ficar para lá de Novosibirsk, na Sibéria. E nem podia haver mesa para todo mundo no epicentro porque, se a Geração Paissandu se compunha de uns mil membros efetivos e outros tantos ocasionais, seu, digamos, universo estético e político representava muito mais gente, que também acorria.

(…)

O estereótipo visual com que a posteridade vestiu aquela geração — calça americana (comprada no Mercadinho Azul, em Copacabana), camisas cáqui ou azuis de marinheiro (disponíveis nos melhores contrabandistas da praça Mauá), sandálias franciscanas, barbas à vontade e cabelos quase compridos — também não é de todo exato. Muitos realmente se vestiam assim, mas havia os de aparência conservadora, com ares de Zona Norte: cabelos curtos, blusão de mangas também curtas e calças da Ducal. As drogas eram raras ou inexistentes (o chope, livre). Em matéria de música, a Geração Paissandu estava mais para Tom e Vinicius, Nara Leão, Sergio Ricardo e, assim que ele surgiu, Chico Buarque. Havia um remoto interesse pelos Beatles e absoluta repulsa ao iê-iê-iê.

Se pra turma da Bossa Nova o epicentro era o Paissando, pra galera do iê-iê-iê o point era Cine Madrid — uma extinta sala de cinema localizada na Haddock Lobo. Inaugurada em 1954, fechou em 1970 após um incêndio. Hoje é uma loja de móveis. Segue uma imagem de como era e como é hoje em dia.

Cine Madrid. Crédito: https://cinefechadoparareforma.wordpress.com/2015/10/15/cine-madrid-tijuca-rj/
Hoje em dia, via Google Maps

Como lembra o blog Fechado para Reforma, o Cine Madrid ficava em frente ao Cine Comodoro (hoje uma igreja evangélica) e perto do Bar do Divino, famoso ponto de encontro da Turma da Tijuca, imortalizada na músicas Haddock Lobo esquina com Matoso, do Tim Maia:

Haddock Lobo / Esquina com Matoso / Foi lá que toda a confusão começou

e Turma da Tijuca, do Erasmo Carlos:

“que turma mais maluca / aquela turma da tijuca”

A galera da Tijuca e redondezas costumava ver os filmes do Madrid e depois passar o tempo do Bar do Divino ou Divino’s Bar. Além de Erasmo e Tim, também frequentavam o local: Jorge Ben, Roberto Carlos, Luiz Ayrão, Wilson Simonal, Lafayette, Arlênio Lívio — que formou a banda The Sputniks com Tim Maria e Roberto Carlos, e The Snakes com o Erasmo — , Renato e Paulo César Barros (do Renato e Seus Blue Caps), além de Luiz Carlos e Liebert Ferreira (dos Fevers). Parece que a Wanderléia também chegou a frequentar o Bar do Divino (tô devendo ler a biografia dela). Todos (ou quase) eram moradores da Zona Norte.

Jorge Ben morava no Rio Comprido antes de se mudar para Copacabana. Mas sem esquecer as raízes, ainda frequentava a Haddock com a Matoso. Entusiasta do rock, era conhecido como Babulina por causa da pronúncia do rockabilly Bop-A-Lena. Escutem esse documentário em áudio fodástico do Instituto Moreira Salles para ver como o período de babulina foi importante para a formação musical de Jorge Ben.

Eu não consigo deixar de pensar numa época meio Grease — nos tempos da Brilhantina, mas numa versão Herbert Richers, cujo estúdio ficava na Usina, também na Grande Tijuca. Daí o nome desse texto: Jovem Guarda, nos tempos da Timbolina.

O termo grease vem das pomadas (chamadas aqui como brilhantinas) usadas inicialmente por ítalo-americanos e hispano americanos e depois adotada pelos fãs de rock n’ roll, rockabilly e doo-wop (os chamados greasers). Há uma referência a essas pomadas até em O Poderoso Chefão II, na fala do Senador Pat Geary: “I don’t like your kind of people. I don’t like to see you come out to this clean country with your oily hair, dressed up in those silk suits, trying to pass yourselves off as decent Americans. I’ll do business with you, but the fact is that I despise your masquerade, the dishonest way you pose yourself — yourself and your whole fucking family”. Michael Corleone era ligado numa brilhantina.

Já Timbolina era uma versão caseira das brilhantinas americanas. Ela é descrita em um trecho da biografia do Erasmo:

“Adolescente, eu queria ter o cabelo como o de Elvis. Me esforçava bastante usando gumex (o avô de todos os géis), esticando meus fios com touca de meia e penteando meu cabelo ao contrário, mas jamais consegui que ficasse liso. Meu próprio suor ou qualquer chuvinha o condenava a ser como antes, ondulado e rebelde. Até que surgiu a esperança, um papo sobre um alisamento que era tiro e queda.

(…)

Seria algum milagre? Era duro de acreditar, mas procurei me informar sobre a novidade, telefonando para o Tim:
- Bicho, como é esse negócio de alisar cabelo que andam falando por aí?
- É a timbolina, Erasmo! — respondeu ele — um melado mágico que o Timbó inventou para alisar cabelo. Parece ser bom às pampas. Vâmu lá experimentar.

Timbó era um paulista, negro, já de uma certa idade, gay assumido e malandro cheio de ginga, que morava num quarto alugado no número 119 da rua. Fã ardoroso de Adoniram Barbosa e dos Demônios da Garoa, era impossível visitá-lo e não ouvir Iracema, Samba do Arnesto e Saudosa Maloca, hits da sua vitrola.

(…)

No sábado à tarde, dia em que aplicaríamos a Timbolina, lá estava eu no primeiro lugar da fila, já me imaginando de visual novo, com as meninas comentando: “Olha lá o Erasmo! O cabelo dele é igualzinho ao do Elvis.”

Aos poucos, foram chegando mais “fregueses”: Renato, Raul, Sérgio Maluco, Roberto Carlos, Zé Martins e o próprio Tim Maia que, assim como eu, queriam usufruir daquele invento revolucionário, misterioso e alvissareiro. Fomos todos para a cozinha do casarão, onde fervia, numa lata sobre o fogão a lenha, uma substância preta que mais parecia um mingau de carvão. Fomos para o quintal levando a lata ainda fervendo para ser colocada na beirada do tanque, com o murinho ao lado servindo de banco durante o processo.

(…)

O mingau me queimava, mas eu aguentava firme e ainda lembrava:
- Ô Timbó, não se esqueça das costeletas.

(…)

Naquela noite, fomos a uma festa na casa do Amilton, no Grajaú, cheia de garotas lindas e moderninhas. Era engraçado o cacoete ridícula que instantaneamente adquirimos, de forçar a a barra para que nosso topete desabasse a todo momento sobre os olhos. Em seguida, com um movimento brusco, o jogávamos para trás. Me lembro que, na volta, sentei de propósito ao lado da janela do ônibus, coloquei a cabeça para fora, e deixei que o vento desalinhasse minha alisadíssima cabeleira.

No dia seguinte, porém, ao abrir os olhos pela manhã, senti de imediato um desconforto.
(…)
- Puta que pariu!
Meu couro cabeludo estava todo ferido, queimado pela agressão da alquimia preta que o maluco do Timbó me aplicara.

Festinhas em casa e apartamentos não era exclusividade da bossa nova. Galera da zona norte também fazia muito disso, regado à Cuba Libre, como lembra o Erasmo na livro. A diferença, imagino, é que as casas na Tijuca era Zona Norte eram maiores e distantes entre si, herança do tempo que a região era repleta de chácaras e casas rurais que na época serviam como hospedaria, como a da família do Tim Maia, ou estavam sendo desmontadas para darem lugar aos edifícios. Erasmo e a turma, inclusive, invadiam essas propriedades marcadas para serem demolidas com o objetivo de retirar os canos de chumbo e revender a ferros-velhos.

Na Zona Sul, os prédios eram (e ainda são) mais pertos uns dos outros, o que fazia a turma que viria a formar a Bossa Nova a “cantar baixinho pra não incomodar os vizinhos”.

A região também abrigava a turma do rock, comandada pelo Carlos Imperial. Calcôte, como era conhecido, e família moravam no edifício dos bancários, na Marquês de Abrantes. Era amigo de Agildo Ribeiro, cujo pai era um dos líderes da Intentona Comunista de 1935. Em um parágrafo, já se percebe que: galera zona sul era de outro nível e que é impossível abordar qualquer assunto no Brasil sem falar de política.

E sem falar de cinema. Segue um trecho do começo da biografia do Imperial, que, por acaso, fala de cinema:

Pracolá era muito querido por Carlos e os outros garotos do prédio, assim como outro moleque que conheceram na praia, Lucas, um negrinho metido a falar inglês. Ele assistia a filmes americanos no cinema e sempre voltava com alguma palavra nova. Quando alguém tentava meter a mão em seu bolso era comum ouvi-lo gritar:
- Tira a mão do meu pocket!

Imperial passou a frequentar a Tijuca quando se meteu a ser ator, como o amigo Agildo Ribeiro. Ele conseguiu emprego para o filme “O Petróleo é Nosso”, da Vita Filmes, que ficava localizada na rua Conde de Bonfim 1331. O estúdio era, inicialmente, focado em produzir filmes para o governo de Getúlio Vargas.

(We’re Gonna) Rock Around the Clock

Imperial, assim como Erasmo e uma galera da sua geração, conheceu o rock com o filme Blackboard Jungle (Sementes da Violência ou Ritmo Alucinante, a depender da fonte de pesquisa no Brasil), uma espécie de Chega de Saudade (um ponto de encontro cultural) pra galera do iê iê iê. A película tinha a música (We’re Gonna) Rock Around the Clock, de Bill Halley and His Comets, responsável por trazer o rock n’ roll para a cultura mainstream.

Jovens Beatles e o figurino Teddy Boy

O filme aborda um drama de um professor tentando lidar com alunos anti-sociais em uma turma multiétnica num gueto norte-americano. Há relatos de que a plateia nos EUA, principalmente de adolescentes, vandalizava as salas entusiasmada com a exibição da película. Tanto que ele foi proibido em Memphis, Tennessee e Atlanta. O Reino Unido também registrou episódios de revolta, violência nas salas de cinema por grupos juvenis chamados Teddy Boys — grupos de jovens da classe trabalhadora, pós-II Guerra Mundial, que usavam roupas refinadas inspiradas no estilo Eduardiano do início do século XX. John Lennon, George Harrison e Paul McCartney emulavam a moda Teddy Boy no início dos Beatles. Saca aquele topete e o casacão?

No Brasil, aconteceu coisa parecida (e Jânio Quadros tentou proibir a exibição do filme). Essa matéria do jornal carioca Extra conta um pouco sobre isso:

Expulso do cinema junto com a garotada que subiu nas cadeiras e as destruiu, na empolgação com o rock de Bill Halley e Little Richard nas telas, o analista de sistemas Ronaldo Luiz Martins, de 73 anos, demorou meio século para conhecer o desfecho do filme “Ritmo Alucinante”, o que só ocorreu após o lançamento em DVD. Ainda com a memória viva daquelas matinês da adolescência, ele integra hoje o grupo que luta pela recuperação do antigo Cine Vaz Lobo, no subúrbio do Rio. A sala foi fechada em 1982, no rastro da decadência dos cinemas de rua da cidade.

Erasmo conta que outras turmas faziam coisa parecida, mas pior:

Respeitávamos muito as turmas da Miguel Lemos e do edifício Camões, ambas de Copacabana, e a da praça Saens Peña, na própria Tijuca. Só que eles eram ricos, tinham carros e invadiam cinemas com motocicletas, durante a exibição de filmes como Sementes da Violência, que tinha Rock Around the Clock, com Bill Halley, na trilha sonora. Coisa distante para nós que éramos duros e andávamos a pé.

É uma música bem inocente (pra não dizer boba pros padrões de hoje). Pra quem não se lembra dela, segue:

Sobre essa música, Erasmo escreveu o seguinte: “Quem é do signo de gêmeos, como eu, é um duplo, sendo perfeitamente natural que um lado de mim tenha ficado chapado quando ouviu Rock Around the Clock, com Bill Halley, enquanto o outro… ah, o outro… sentiu um cataclisma interior ao escutar Chega de Saudade, com João Gilberto. Foi um deslumbramento só”.

A música e a cultura de juventude pós-guerra atingiu em cheio o Rio de Janeiro e as outras cidades do País. Li em algum lugar sobre as “lenhas” (que hoje chamamos de “pegas”) entre pilotos de lambretas, que desciam à noite o Alto da Boa Vista correndo com os faróis apagados para ter mais emoção.

É fácil encontrar outros casos parecidos, e alguns escabrosos, em uma pesquisa pelo acervo de periódicos da Biblioteca Nacional:

Dentre anúncios e quadros humorísticos da época (“Nunca vi um biquíni, mas já vi várias mulheres na praia que me afirmaram mais tarde que estavam de biquíni”), é possível encontrar matérias como essas do jornal Última Hora, de 1957:

Em outro trecho de jornal, vi um caso de um grupo de “lambrelistas” que perseguiram uma lotação, tiraram duas jovens de dentro e colocaram elas na garupa “para dar uma volta”. A polícia acabou prendendo os jovens e o jornal divulgando o fato — e pra minha surpresa, na época publicavam o nome completo, idade e endereço das vítimas de crimes.

Velocidade não era algo inédito na capital do País. De 1933 a 1954 promoveram na cidade o Grande Prêmio do Rio de Janeiro, disputado no Circuito da Gávea, que colocou o Brasil no mapa dos circuitos internacionais de corrida. O paulista Chico Landi foi o maior vencedor do circuito.

A diferença era essa cultura da juventude que assustava e causava estranhamento à sociedade da época. Uma parte da população tinha encaretado. Um pouco antes, em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra determinou o fechamento dos cassinos no Brasil, por influência da esposa Carmela Teles, também conhecida como Dona Santinha devido à sua forte devoção ao catolicismo.

Os cassinos eram considerados antros de boemia. O Ruy Castro escreveu um livro chamado a Noite do Meu Bem sobre essa época, que ensaiava uma aceitação maior à mulheres desquitadas. Os jornais caiam em cima de Dalva de Oliveira por conta do divórcio de Herivelto Martins e muitos homens chamavam Cauby Peixoto de gay por ele se locomover e dançar no palco, ao contrário do estoicismo cênico de um Orlando Silva ou Francisco Alves.

O rock veio pra ajudar a quebrar com esse cenário de crescente moralidade, mas nem tanto.

Veja aqui a continuação desse texto, com uma dica de site com músicas da época.

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