O filme do Joker, o palhaço (com spoilers)

chicones
formatinho
Published in
5 min readOct 21, 2019

É basicamente um Ônibus 174 com personagens da DC Comics. Saca aquele documentário que mostra o histórico e os últimos passos do Sandro antes dele sequestrar o ônibus da linha 174, Central-Gávea, e tudo dá incrivelmente errado? É (quase) a mesma coisa mas com uma trilha sonora sinistra, ótimas atuações e o tema de palhaço.

Não é uma obra agradável. Nem eu, esposa ou a nossa bebê, que tomou uns sustos, saiu bem (a bebê dormiu antes do final). Mas o bacana é ver que optaram por toda uma outra linha narrativa que foge completamente do que foi estabelecido nos últimos tempos como Filme de História em Quadrinho. Esse é o grande mérito do filme. E se o primeiro filme do Capitão América, ao invés de ser ele lutando nazistas com armas lasers (aquela coisa meh), começasse a partir daquele final, com ele acordando na Nova Iorque contemporânea? Como ele lidou com isso?

O filme do Coringa é bacana por abrir espaço para introspecção e desenvolvimento de algumas emoções. Há todo um subtexto e o diálogo com outros filmes da DC só acontece porque estão no “mesmo universo narrativo”. É no mesmo universo de Shazam, por exemplo, ou da Liga da Justiça. É como se preenchesse, de uma forma bem sinistra, alguns detalhes que não são ditos e mostrados nesses outros filmes. Isso é legal.

Há alguns momentos que optam do filme mostrar algumas coisas que seriam excelentes se ficassem subentendidas (falo dos trechos da Sophie, a vizinha, e da morte do Murray Franklin). Mas é decisão dos dias de hoje de ser pedagógico e tudo e qualquer coisa tem que ser escancarada pra todo mundo. Ia ser o máximo se não tivessem mostrado aqueles flashbacks explicativos quando Arthur, o protagonista, invade o apartamento da vizinha. Ia ser bacana também se os noticiários não tivessem dito que ele matou o Murray. Podia muito bem ser um assassinato imaginário e estava sendo preso por ter confessado o assassinato dos 3 escrotos do metrô.

Coringa do Jim Amparo

É interessante ver como a magreza do personagem “na vida real” seria estranhíssima de se ver. Nos gibis, se vocês lembram, ele é magríssimo — um contraste óbvio ao musculoso Batman.

No filme ele é só esquisito o tempo todo. Come alguma coisa, rapaz!

Até os dedos, que ficam em foco nos momentos que ele fuma os vários cigarros, são esquisitos.

A atuação do Joaquin Phoenix é excelente. Tanto no uso da magreza, como no desconforto e estranhamento que a gente sente quase o tempo na presença dele.

As exceções a essa ojeriza são algumas situações de convivência dele com a mãe, com a terapeuta e quando perde o emprego no hospital: “Eu amo esse emprego!”. Ele diz isso e a plateia acredita, porque, dentro do mundo maluco de Gotham, as crianças são as únicas com reações positivas e verdadeiras que Arthur consegue. É uma das coisas que o deixam saudável. Mais do que os sete remédios que precisa tomar.

É interessante ver como Gotham também é retratada. Os três escrotos do metrô são quase personagens paralelos aos moleques que roubam a placa dele no início do filme. Só que esses moleques cresceram e se tornaram bem sucedidos. É como se a cidade recompensasse escrotos. Até Thomas Wayne lamenta a morte deles.

E Thomas Wayne é retratado de uma forma bem sinistra, diferente dos quadrinhos. É um baita um almofadinha. Quase um João Dória. Não é o exemplo de moralidade que o Bruce usa como farol nos tempos de Batman. Talvez ele sempre tenha sido assim e Bruce que tinha uma visão romantizada do pai (o que é bem interessante).

Voltando a Gotham… ela celebra o Coringa por ter matado os escrotos do metrô. É uma cidade bem mais polarizada e oprimida. Num mundo assim, Bruce Wayne faria mais bem mostrando um lado caridoso do que o Batman lutando contra bandidos. Batman só enxugaria gelo o tempo todo porque há o descrédito geral contra as instituições estabelecidas.

Mas talvez Batman fosse a resposta sã para uma sociedade ensandecida. Batman quebra as leis, mas não faz justiça com as próprias mãos, como essa sociedade deseja tanto. Ele pega os bandidos e os entrega à polícia e à justiça, como forma de mostrar fé nessas instituições e uma forma de apontar que elas existem e são importantes.

É uma visão interessante.

Cada um que viu o filme tem uma opinião muito própria sobre o que se passa (1, 2, 3 e outras no twitter). Quiseram dar uma carga política ao que é exibido na telona. Poderia acabar ajudando a influenciar e enaltecer os incels? Ou o Coringa é um esquerdista fruto de uma sociedade sem Deus, “resultado das revoltas estudantis de Maio de 1968” como disse um influencer da direita política brasilera — ao que eu pergunto: e se nesse universo Deus existe mas só está cagando pra humanidade?

Eu vou dar pitaco e até a minha carga política. Arthur Fleck é um homem doente que não conhece a própria história. E a sociedade o ignora e prefere varrer ele pra debaixo do tapete. Mas ele se recusa, como o Sandro do Ônibus 174.

Então numa sociedade de corte de custos pra serviços de seguridade social (como a terapia e remédios fornecidos pela rede pública) e que enaltece a meritocracia do escroto, Arthur resolve mostrar que tudo que querem cagar em cima dele, tem volta. E o custo pra sociedade é muito maior do que aquela terapia e remédios periódicos que negaram a ele. Isso vale tanto para um governo de direita quanto de esquerda que gostam de ignorar problemas e empurrá-los para debaixo do tapete.

Ele pode ter todos os problemas mentais do mundo, mas só resolve se tornar um vilão ao ter que lidar com a sociedade cada vez mais kafkaniana (a falta de emprego, a polícia, o hospital) e individualista. É quando se liberta, se pinta, dança nas escadas e fica badass.

Imagem retirada do trailer no Youtube

Há um receio real de que ele enaltece a revolta do homem-comum-trabalhador — “a working class hero is something to be”, já cantava John Lennon — contra a alta sociedade. Mas só quem não prestou atenção ao filme pode pensar assim.

Ninguém pode querer se inspirar nele, como ninguém pode querer se inspirar no Sandro, sem estar muito doente da cabeça. Arthur é um homem doente. Sandro era um rapaz sem perspectiva de vida (e um moleque com depressão se inspirou nele e sequestrou um ônibus na Ponte Rio-Niterói… sem resultados positivos). Não há um farol orientador nenhum, mas um mensagem de alerta para que a gente olhe com mais cuidado o outro.

--

--