Resenha rápida de Caim, do José Saramago

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5 min readDec 1, 2019

Nesse livro, o escritor português, ateu e comunista calçou os sapatos de Caim, responsável pelo primeiro assassinato da história do mundo (bíblico). O primeiro fatricida, assim, adquire algumas das características de José Saramago e, desde o momento que é preterido por Deus em prol do seu irmão Abel, começa um embate com O Criador. O livro de José se desenrola através dessa investigação e descrença de Caim/Saramago sobre algumas passagens bíblicas.

É um livro pequeno e está estruturado em ficção as opiniões pessoais de Saramago sobre o conteúdo bíblico. Há também uma busca do escritos sobre o que seria o que chamam de fé. Pode-se pensar isso por conta de um trecho de Carta aos Hebreus que ilustra a epígrafe do livro:

“Pela fé Abel ofereceu a Deus um sacrifício superior ao de Caim. Pela fé ele foi reconhecido como justo, quando Deus aprovou as suas ofertas. Embora esteja morto, por meio da fé ainda fala”.

Hebreus 11:4

Nesta matéria do jornal português Expresso, Saramago confronta o teólogo católico, sacerdote, poeta e professor da Universidade Católica José Tolentino de Mendonça sobre esse e outros assuntos: “Há alguém capaz de me explicar, em termos racionais e humanos, para que a gente entenda, o que isto quer dizer?”. Recomendo ler a matéria.

O livro começa com algumas passagens bem humoradas sobre Adão e Eva e ele vale a pena ser lido por conta desses interlúdios pessoais que o escritor coloca no texto bíblico. Sobre qual seria a origem da fala da humanidade: “Não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva”. Ele também aponta o tédio e a solidão que Adão e Eva devem ter sentido no Jardim do Éden por não ter “criança gatinhando entre a cozinha e o salão, sem outras visitas que as do senhor, e mesmo essas pouquíssimas e breves, espaçadas por longos períodos de ausência”.

Saramago destrincha o que pode ter sido o diálogo sobre Adão e Eva terem comido a maçã. Os dois, como se sabem, acabam expulsos do Jardim do Eden. Tempos depois, nascem Caim e Abel. Um agricultor, outro pastor. Os dois fazem sacrifícios para homenagear Deus, mas só Abel é favorecido. Isso, do ponto de vista de Saramago, é um enigma e uma provocação, que leva a Caim se tornar um fratricida. No trecho da matéria do Expresso citada acima, o escritor aponta:

Abel e Caim sacrificaram a Deus o que tinham. O pobre Caim, se me permitem que chame pobre a um assassino, ofereceu também o que tinha. Deus desprezou o sacrifício de Caim. Aí, começa tudo: o ciúme nasceu aí, o rancor, a incompreensão, porque Caim não percebe que Deus o rejeite.

Caim então é então marcado e amaldiçoado a vagar pela Terra. Ele acaba chegando à terra de Nod, onde se apaixona e tem diversos encontros tórridos com Lilith. Por conta da maldição não consegue se fixar em um lugar. Pega um jumento e passa a vagar entre o passado e o futuro bíblicos. Impede Abraão de sacrificar Isaac — numas de “tá maluco de fazer algo desse tipo?” — e confronta ele e o anjo sobre qual seria o propósito de Deus pra solicitar o sacrifício. Depois se depara com a confusão de línguas da torre de Babel, ao que Caim julga ser ter sido causada pela inveja do Senhor, reencontra Abraão (antes de ter o filho Isaac), testemunha horrorizado a destruição de Sodoma e Gomorra e as mortes causadas pela criação do Bezerro de Ouro aos pés do Monte Sinai (e outras solicitadas pelo Senhor).

Esses e outras são trechos um tanto chatos que só mostram a alternância de fatos graves causados pelo Senhor. Não há nada do humor inicial do livro (até porque não lugar para ele). Até que chega no final, quando Caim se encontra com Noé & Família construindo uma arca e se vê obrigado a explicar o princípio de Arquimedes para Deus. O humilde e temente Noé se vê obrigado concordar com Caim diante do Criador. É bacana quando Saramago descreve os anjos ajudando Noé & Família a construir a arca: “O senhor não havia exagerado quando disse que os anjos tinham muita força, bastava ver aqui a naturalidade com que metiam as grossas tábuas debaixo do braço, como se fossem o jornal da tarde”. É fantástico esse tipo de analogia. Há também uma infrutífera tentativa de Noé de salvar o unicórnio do Dilúvio.

Um último trecho que queria destacar é quando Saramago traz um trecho bíblico sobre uma ótica nova. Ao invés de dizer:

“E a arca repousou no sétimo mês, no dia dezessete do mês, sobre os montes de Ararate”.

Gênesis 8:4

Escreve:

“O nível do imenso mar que cobra a terra continuava a descer, mas nenhum cume de montanha havia levantado a cabeça para dizer, Aqui estou, o meu nome é ararat e estou na turquia”

É o tipo de escrita que traz intimidade ao leitor. Intimidade essa que Saramago tem com a Bíblia. Quando era vivo, tinha sete ou oito exemplares. “Desde uma Bíblia espanhola do século XVII ou XVIII, até uma Bíblia que me foi oferecida numa Feira do Livro, há três ou quatro anos, em português corrente”, disse na entrevista ao Expresso. Ele também admite que foi influenciado pela escrita do livro sagrado. “Na minha prosa e estilo há uma ressonância, uma música que pode ser relacionado com a música, o ritmo, o sentido da pausa, o sentido expositivo, que se encontra na Bíblia. Não nego”.

Então Caim, antes de ser um capricho de Saramago contra a Bíblia e a religião Cristã, é a exposição dele sobre algumas coisas expostas no livro e que ele não concorda de jeito nenhum, com base na visão humanista que tinha. E há no final do livro um plot twist. Recomendo a leitura.

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