A Morte do Carvão

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8 min readJun 11, 2019

The Death of Coal

Matheus Cervo [1]

Resumo: “A Morte do Carvão” foi uma intervenção artística urbana realizada por uma teia de moradores contra o projeto “Mina Guaíba” em Porto Alegre — RS. Devido à realização de um seminário acerca do projeto no dia 14 de maio de 2019 no Hotel Plaza São Rafael na avenida Alberto Bins, foi feita uma intervenção esteticamente inspirada nas alianças firmadas na COP 23 para eliminação global do uso da matriz energética carbonífera até 2030. Além de expor informações sobre o projeto, o ensaio explora, textual e visualmente, as táticas cotidianas dos interventores a fim de serem vistos em contextos de possível repressão às manifestações públicas contra grandes empreendimentos.

Palavras-chave: Intervenção Urbana; Mina Guaíba; Carvão; Manifestação.

Abstract: “The Death of the Coal” was an urban artistic intervention carried out by a web of people against the “Mina Guaíba” project in Porto Alegre — RS. Due to a seminar about the project on May 14, 2019, at the Hotel Plaza São Rafael on Alberto Bins Avenue, an aesthetic intervention was made inspired by the alliances signed at COP 23 for the global elimination of the use of the coal energy matrix until 2030. Besides exposing information about the project, the essay explores, textual and visually, the daily tactics of the interveners in order to be seen in contexts of possible repression of public demonstrations against large enterprises.

Keywords: Urban Intervention; Mina Guaíba; Coal; Manifestation.

[1] Graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como pesquisador na área de inovação tecnológica e produção científica na construção de coleções etnográficas hipermídia no Banco de Imagens e Efeitos Visuais (BIEV/PPGAS/UFRGS).

Há algum tempo, participo de diferentes frentes de resistência de moradores contra empreendimentos que possam afetar o dito “meio ambiente” tanto em Porto Alegre quanto em cidades próximas. Iniciei algumas etnografias situacionais contra o desmatamento de um remanescente de mata atlântica na orla dos bairros Ipanema e Espírito Santo e, contribuindo com meus interlocutores, fui levado a seguir os atores nas suas complexas teias de aliança que se desenrolavam em diferentes agrupamentos de resistência. Estávamos criando frentes de luta feitas por moradores de bairro agrupados em torno do coletivo chamado “Preserva Zona Sul” a qual pertenço enquanto colaborador.

Embora estivéssemos criando uma rede de apoio de diversas lutas heterogêneas na zona sul da cidade, estávamos frente a possibilidade de instalação do projeto “Mina Guaíba” pela mineradora Copelmi e a empresa chinesa Zhejiang Energy Group. Atuando por alguns meses na divulgação de informações acerca do projeto com um coletivo de advogados e alguns moradores do Assentamento Apolônio de Carvalho, fiquei espantado com as informações que aprendi durante esse tempo.

O projeto pretende ser instalado nos municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas às margens do rio Jacuí para extrair, durante 30 anos, carvão mineral, areia e cascalho a cerca de 20 quilômetros do centro de Porto Alegre. Esta seria a maior mina de carvão a céu aberto do país com a extração de 166 milhões de toneladas do material apenas na primeira fase do projeto: estima-se que o projeto teria 4,5 mil hectares, o que equivale a 6,3 mil campos de futebol. Após a primeira instalação extrativista, o projeto pretende criar um polo carboquímico com usinas termoelétricas e indústrias de produção de fertilizantes químicos a partir da matéria extraída.

O projeto, atualmente, está em processo de licenciamento junto à Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler (Fepam). Na China, as políticas estatais adotam leis ambientais rígidas para redução do uso de carvão e, como consequência, algumas empresas aproveitam suas instalações obsoletas transferindo-as ao Brasil. As pressões mundiais nos ditos “países em desenvolvimento” em relação à exploração carbonífera aumentaram na segunda década do século XXI: seguindo o Acordo de Paris acerca das reduções de emissão de gases do efeito estufa, o Reino Unido encerrou as atividades em 2015 e a Alemanha abandonou o uso de carvão em 2018.

Para além da assustadora dimensão do empreendimento, sua localização ameaça a existência de várias socioambiências próximas da instalação. O rio Jacuí é um dos maiores afluentes da bacia hidrográfica do Guaíba e a magnitude do empreendimento desafia a constituição ambiental que prevê o uso difuso dos recursos hídricos (SOARES, 2011). Três reservas ambientais — o Parque Estadual do Delta do Jacuí, a Área de Proteção Ambiental Delta do Jacuí e a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (aprovada pelo governo brasileiro e pela Organização das Nações Unidas — ONU) — estão localizados aproximadamente 10 km do empreendimento conforme dados extraídos do Google Earth. Os produtores locais do arroz agroecológico Terra Livre estão ameaçados devido a contaminação de sua colheita que produz uma das maiores safras do grão na América Latina livre de agrotóxicos. Segundo levantamento realizado pelo Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM), há pelo menos 88 assentamentos localizados na Região Metropolitana de Porto Alegre e na área do Pampa e esses podem ser atingidos diretamente por projetos de mineração.

Enquanto rede, participamos da construção de um dos primeiros veículos de informação sobre a causa através das redes sociais e do trabalho corpo-a-corpo. Eu lembro do alarde quando a notícia saiu: havia muita gente desesperada perante o absurdo silencioso de um projeto que avançava irrestritamente. À medida que o tempo passava e criávamos material visual contra o empreendimento, grandes veículos informacionais noticiavam o projeto através das formas discursivas típicas da modernização ecológica (MOL, 2000): todo controle do risco (BECK, 1992) que afeta humanos e não-humanos era justificado por mais avanços tecnológicos que supostamente conteriam os impactos. Mesmo sem a realização de nenhuma audiência pública nas cidades afetadas, havia um seminário denominado “Novos aproveitamos para o carvão mineral do RS — Tecnologias Inovadoras” programado para o dia 14 de maio promovido pela Sociedade de Engenharia do Rio Grande do Sul (SERGS) com o objetivo de debater a implantação do Polo Carboquímico após a construção da “Mina Guaíba”.

Foi a partir dessa oportunidade que surgiu um levante: se tornariam públicos, através de uma intervenção urbana, os passos cotidianos de vários militantes que fazem parte dessa rede há meses. A partir da experiência de militantes do Greenpeace, emergiu a ideia de convocar um ato estético chamado “A Morte do Carvão” inspirado pela aliança formada na COP 23 para eliminação global do uso dessa matriz energética até 2030. Além da intervenção fazer parte de uma vasta teia nacional que interfere nos empreendimentos carboníferos através de intervenções artísticas, o ato foi organizado a fim de conter o “fator surpresa” ao invés de almejar um movimento de massa. Em outras palavras, a manifestação surpresa e artística era uma tática (DE CERTEAU, 1994) de ação em contextos de reprimenda estatal perante grandes empreendimentos de alto impacto socioambiental.

Lembro-me do medo de todos nós, já que o evento era organizado no Hotel Plaza São Rafael na avenida Alberto Bins. No dia anterior, a rádio Gaúcha havia noticiado sobre uma suspeita de um artefato explosivo encontrado nas mediações da rua, o que mostra a situação de tensão coletiva desses meses de 2019. Mesmo depois de descobrirem que era apenas uma antiga panela que havia sido abandonada por moradores do centro histórico da cidade, a rua continuou interditada por um tempo significativo. Havia a necessidade de ser pontual e certeiro mesmo a presença de duas advogadas durante toda intervenção.

Contra o “Carvão de Troia” — como a mina popularmente tem sido chamada –, a repercussão midiática era o objetivo a ser alcançado e, por isso, a etnografia visual que eu pratico situacionalmente com esses grupos se tornou uma forma de fazer-ver imagens reprimidas que se levantam contra o silêncio. Uma das responsabilidades que recebi nesse dia foi de coordenar o final das atividades performativas logo que o material visual fosse captado. Por causa da incerteza da violência, fui convidado a registrar os bastidores da montagem da performance em que colaboradores vestiam macacão branco com máscaras de gás para simular “funcionários da mineradora” acompanhados da “Morte”.

Não conseguimos entrar no evento, mas, pelas imagens, fomos além.

Referências Bibliográficas

BECK, U. Risk Society: Towards a New Modernity. Londres: Sage, 1992.

DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: Artes de fazer (vol. 1). Rio de Janeiro: Petrópolis, 1994.

MOL, Arthur P. J. Globalização e a mudança dos modelos de controle e poluíção industrial. In: HERCULANO, S. et al. (Orgs.). Qualidade de vida e riscos ambientais. Niterói, EdUFF, 2000, p. 267–280.

SOARES, Ana Paula M. A outorga de direito de uso de recursos hídricos. 2011 Disponível em: <http://instituto-anthropos.blogspot.com.br/search/label/Publicações>. Acesso em: 07 de jun. 2019.

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