A tragédia de Barcarena (PA): a água envenenada e a resistência ribeirinha[1]

Fotocronografias
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11 min readDec 22, 2018

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Cícero de Oliveira Pedrosa Neto[2]
Flávio Leonel Abreu da Silveira[3]

Resumo: O experimento fotoetnográfico que apresentamos resulta da pesquisa em andamento que o primeiro autor realiza na cidade de Barcarena (PA), visando a elaboração de sua dissertação de mestrado em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFPA), sob orientação do segundo autor. A nossa intenção neste ensaio é a de trazer ao debate o tema da catástrofe no contexto amazônico presente na mesorregião metropolitana de Belém. Trata-se, no entanto, de pensar o município em questão como um lugar de interseções complexas entre os mundos urbano e o rural no contexto amazônico contemporâneo, atravessado por grandes projetos que vinculam-se às formas de desenvolvimento predatórias, com forte influência de capital internacional.

Palavras Chave: Amazônia; Ribeirinhos; Catástrofe; Bacia de rejeitos; Água

Abstract: This photoethnographical experiment arises from a research in progress that the first author develops in the city of Bacarena (PA, Brazil), aiming the elaboration of his master’s thesis in Anthropology at Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFPA), under the guidance of the second author. Our intention in this essay is to bring on debate the theme of catastrophe in the Amazon context present in the metropolitan mesoregion of Belém. However, it concerns thinking of the municipality in question as a place of complex intersections between the urban and rural worlds in the contemporary Amazonian context, crossed by large projects that are linked to predatory forms of development with a strong influence of international capital.

Key words: Amazônia; Ribeirinhos; Catastrophe; Tailings basin; Water.

[1] O ensaio segue inspiração no trabalho de Bateson e Mead (1942), e contou para a sua elaboração com o apoio e as sugestões dos integrantes do NAVISUAL/UFRGS.

[2] Mestrando do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia/UFPA.

[3] Professor do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia/UFPA. Pesquisador do CNPq

Em fevereiro de 2018 fomos surpreendidos — ou melhor, constatamos o que parecia uma iminência — quando foi veiculada a notícia nas mídias alternativas sobre o vazamento de rejeitos de minérios junto aos mananciais hídricos existentes no referido município, o que atingiu diferentes vilas da cidade, territórios quilombolas e indígenas, além de prejudicar as formas de subsistência das populações ribeirinhas assentadas em diversas localidades.

Sabe-se que diante do processo desenvolvimentista de modernização do Brasil, empreendido pelos governos militares que tomaram o governo do país no ano de 1964, foram escolhidas algumas cidades brasileiras para sediar a concentração de investimentos em capital e infra-estrutura. Barcarena foi uma das cidades a receber tais incentivos por volta dos anos 80, através da implementação da indústria mineral de beneficiamento de bauxita em alumina e alumínio primário (Monteiro e Monteiro, 2007). Nestes termos, destaca-se um dos grupos corporativos mais importantes do mundo em se tratando da produção do alumínio, a empresa Alumina do Norte do Brasil S.A., mais conhecida como “Alunorte”, a qual depois das mudanças na composição de seu capital social e econômico, passou a pertencer ao grupo norueguês Norsk Hydro, sendo renomeada de Hydro-Alunorte S.A.

O processo de beneficiamento da produção do metal em questão é bastante complexo, e diante dos números tão expressíveis do processamento[4], é possível supor o “volume” de descartes produzidos no processo produtivo da cadeia do alumínio e, dada sua natureza poluente agressiva, os impactos que causam (ou podem causar) aos ecossistemas e ambientes humanos, se mal administrados. Há uma série de determinações e padronizações estabelecidas a partir de métricas internacionais que resguardam a prerrogativa da produção, neste caso, sob os preceitos da “responsabilidade ecológica”. No entanto, na madrugada do dia dezessete de fevereiro de 2018 as pessoas que vivem nos limites da empresa conheceram o potencial destrutivo das ações industriais nos seus lugares de pertencimento[5].

Ao amanhecer, moradores e moradoras, das comunidades do Bom Futuro e Burajuba, entraram em contato diretamente com os promotores de justiça através de seus celulares[6], que iniciaram os procedimentos de investigação do caso. O Ministério Público Estadual (MPE) e Federal (MPF), acionaram o Instituto Evandro Chagas (IEC) para que checasse as amostras coletadas pela equipe técnica demandada pelo Ministério Público, para mensurar os impactos e os riscos à saúde dos moradores, tendo a equipe chegado à região no dia seguinte. No dia vinte o IEC expediu uma nota técnica em que afirmava ter encontrado durante as coletas, “água de coloração avermelhada” que seria decorrente do vazamento da bacia de rejeitos[7].

Os técnicos do instituto também estiveram nas dependências da empresa durante uma visita guiada, na qual puderam perceber que um dos recipientes do DRS1 havia recentemente transbordado, uma vez que existiam resíduos de “lama vermelha” nas mantas de impermeabilização que circunscrevem toda a extensão do referido depósito. Além disso, puderam encontrar algo ainda mais grave, conforme relata a nota técnica[8]: um duto clandestino de emissão de efluentes não tratados, provenientes do DRS2, que extravasava seu conteúdo diretamente no entorno[9].

A empresa possui dois depósitos de rejeitos na região, denominados DRS1 e DRS2. Em razão dos laudos apresentados pelo IEC, o IBAMA e justiça do Estado do Pará, multaram a empresa em R$20 milhões e embargaram as atividades do depósito DRS2 por este também não possuir todas as licenças necessárias para seu funcionamento, conforme decisão da Justiça Federal exarada em abril de 2018, pelo Juíz Federal Arthur Pinheiro Chaves, da 9ª Vara. Também impuseram a redução das atividades da empresa em 50% no sentido de evitar novos vazamentos em prejuízo à população. Deste episódio resultou um problema transversal à tragédia ambiental, que foi o pronto estabelecimento do temor da demissão em massa ampliando o drama social instaurado e vivido em Barcarena.

Ora, estando em absoluta desvantagem, a empresa passou a jogar com o as vicissitudes da vida local aventando a necessidade da demissão, uma vez que a produção havia sido reduzida e o emprego dos trabalhadores nas funções que lhes cabiam, passava a não fazer sentido como antes. É nessa ocasião que se levanta o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas de Barcarena e Abaetetuba (SINDIQUIMICOS) contra as investidas protetivas estabelecidas pela justiça do Estado e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), mobilizando os trabalhadores contra as petições dos moradores atingidos pelo vazamento de rejeitos. Junto ao Sindicato, juntaram-se os comerciantes locais temendo a evasão de trabalhadores, a consequente perda de clientes e a ameaça da inadimplência[10]. A partir de conversas veladas sabe-se que ameaças começaram a ser feitas por trabalhadores à colegas de ofício, especialmente os que tinham parentesco com as lideranças que passaram a encabeçar a luta pela responsabilização da empresa quanto à catástrofe socioambiental que assolou a região, bem como aos danos causados aos ecossistemas e, diretamente, à saúde e bem estar dos coletivos humanos que habitam a área afetada, incluindo as vidas dos próprios trabalhadores e suas famílias. No momento, o dilema está instaurado e segue como um acirrado conflito de interesses num cenário que reatualiza as feições danosas do desastre de Mariana[11] em plena Amazônia.

[4] « Neste processo, são necessários de 4 a 5 toneladas de bauxita para se extrair apenas uma do metal ». (LIMA & MOTA, 2009).

[5] As pessoas « viram seus quintais e poços artesianos serem tomados por uma lama vermelha […] Chovia forte na região […] Houve o que eles temiam há muitos anos: o vazamento de rejeitos químicos das atividades de processamento da mineradora Hydro Alunorte, de capital norueguês, reconhecida como a maior refinaria de bauxita do mundo ». (BARBOSA, 2018a)

[6] Em razão de denúncias dessa natureza serem corriqueiras na região, alguns moradores possuem os telefones pessoais dos promotores de justiça.

[7] NOTA TÉCNICA SAMAM-IEC 002/2018, de 20 de fevereiro de 2018.

[8] « Nesta quinta-feira (22), o pesquisador em Saúde Pública da Seção de Meio Ambiente do IEC, Marcelo de Oliveira Lima, divulgou um laudo do resultado da coleta de amostragens de águas e efluentes que fez no igarapé Bom Futuro, confirmando que houve o vazamento de rejeitos da barragem da empresa Hydro Alunorte. Segundo o pesquisador do IEC, as amostras analisadas tinham níveis de chumbo, sódio, nitrato e alumínio, sendo que este último está 25% acima do permitido para a saúde humana […] “Ao contrário do que a empresa diz e afirma, houve, sim, transbordamentos. As bacias não estavam suportando a quantidade de chuvas”, disse Marcelo de Oliveira Lima, em coletiva de imprensa em Belém ». (BARBOSA, 2018a).

[9] A nota técnica informa «que nessas áreas de lançamentos clandestinos de efluentes clandestinos, existem nascentes de igarapés, cujas águas são usadas para lazer e pesca de subsistência pelas comunidades tradicionais que habitam aquela área. (Trecho da Nota Técnica do Instituto Evandro Chagas, expedida no dia 20 de fevereiro de 2018)

[10] O movimento depois ganharia força agregando outros sindicatos que atuam na região, culminando em uma grande manifestação de trabalhadores nas ruas da cidade de Barcarena, que ocorreu um dia após as declarações da empresa (3/10/2018) de que encerraria temporariamente suas atividades na cidade de Paragominas, de onde provém a matéria-prima do alumínio, a bauxita, assim como, em Barcarena, devido ao esgotamento da vida útil do depósito DRS1, fato que resultaria no prejuízo de mais de 40 mil pessoas, considerando-se a massa de trabalhadores e a estimativa do número de familiares. Os trabalhadores pediam a derrubada do embargo impetrado ao DRS2 com palavras de ordem: “não, não, não! Embargo não é solução!”. Lograram a liberação de um filtro (filtro prensa) capaz de fornecer uma sobrevida ao DRS1, que se encontrava nas dependências do outro depósito, portanto, também sob os efeitos do embargo (AMAZÔNIA REAL, 2018).

[11] O desastre de Mariana, em Minas Gerais, ocorreu devido ao rompimento da barragem de Fundão, pertencente a empresa “Samarco Mineração SA” e à “BHP Bilinton Brasil Ltda”. Conhecido como o maior desastre ambiental relacionado a atividade de mineração ocorrido no Brasil (JUSTIÇA GLOBAL, 2015), o rompimento da bacia fez com que “50 milhões de metros cúbicos de resíduos minerários foram despejados no ambiente. Este absurdo volume de rejeitos da mineração tomou a forma de uma ´avalanche de lama’, causando a destruição total e parcial de povoados mais próximos, como foi o caso de Bento Rodrigues, de Paracatu (distritos de Mariana-MG) e de Gesteira (distrito de Barra Longa-MG)”, conforme aponta o relatório do “Grupo de Estudos e Pesquisas em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento no Espírito Santo” (2017). O mesmo relatório diz ainda que 19 trabalhadores, em sua maioria terceirizados que atuavam na empresa, além de toneladas de peixes e outros animais, morreram em decorrência do desastre em questão.

PRANCHA I — Do idílico à catástrofe

PRANCHA II — O gigantismo da floresta ou gigantismo da catástrofe?

PRANCHA III — As cores do trágico

PRANCHA IV — Os igarapés envenenados

PRANCHA V — A luta dos invisibilizados

PRANCHA VI — O povo mostra resistência

PRANCHA VII — Através da água: veneno, corpo e medicalização

Referências Bibliográficas

ALVES, A. Os argonautas do mangue. Campinas: Ed. Unicamp, 2004.

AMAZÔNIA REAL. Ibama libera uso de equipamento pela Hydro Alunorte, mas embargo judicial continua. Agência Amazônia Real. [Manaus-Am], 08 de outubro de 2018. Acessado em 14 de outubro de 2018. http://amazoniareal.com.br/ibama-libera-uso-de-equipamento-pela-hydro-alunorte-mas-embargo-judicial-continua/ ;

BARBOSA, Catarina. Vazamento de rejeitos da Hydro Alunorte causa danos socioambientais em Barcarena. Agência Amazônia Real. [Manaus-Am], 23 de fevereiro de 2018. Acessado em 15 de julho de 2018a. http://amazoniareal.com.br/vazamento-de-rejeitos-da-hydro-alunorte-causa-danos-socioambientais-em-barcarena-no-para/ ;

BARBOSA, Catarina. Justiça e Ibama punem mineradora Hydro por vazamento em Barcarena. Agência Amazônia Real. [Manaus-Am], 28 de fevereiro de 2018. Acessado em 15 de julho de 2018b. http://amazoniareal.com.br/justica-e-ibama-punem-mineradora-hydro-por-vazamento-em-barcarena/ ;

BARBOSA, Catarina. “ O igarapé morreu, não tem mais peixe”, diz moradora sobre impactos em Barcarena. Agência Amazônia Real. [Manaus-Am], 21 de maio de 2018. Acessado em 15 de julho de 2018c. http://amazoniareal.com.br/o-igarape-morreu-nao-tem-mais-peixe-diz-moradora-sobre-impactos-em-barcarena/ ;

BATESON, G.; MEAD, Margaret. Balinese Character. A photographic analysis. New York: New York Academy of Sciences, 1942.

JUSTIÇA GLOBAL. Vale de Lama: Relatório de inspeção em Mariana após o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão. Disponível em: http://www.global.org.br/wpcontent/uploads/2016/03/Vale-de-Lama-Justi--a-Global.pdf Acesso em: 15 nov 2016.

LEONARDO, F.; IZOTON, J.; VALIM, H. CREADO, E. TRIGUEIRO, A. SILVA, B. DUARTE, L. SANTANA. N. Rompimento da barragem de Fundão (SAMARCO/VALE/BHP BILLITON) e os efeitos do desastre na foz do Rio Doce, distritos de Regência e Povoação, Linhares (ES). Relatório de pesquisa. GEPPEDES. 2017

LIMA, Dumara Regina de; MOTA, José Aroudo. A Produção do alumínio primário na Amazônia e os desafios da sustentabilidade ambiental. Boletim Regional, Urbano e Ambiental — IPEA, Brasília, n. 02, jan./jul. 2009.

MONTEIRO, Maurílio de Abreu; MONTEIRO, Eder Ferreira. Amazônia: os (des) caminhos da cadeia produtiva do alumínio. Novos Cadernos — NAEA, v. 10, n. 2, p. 87–102, 2007.

TAUSSIG, M. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

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